Depois de terem ajudado a comunidade internacional durante anos a combater o grupo extremista Estado Islâmico na Síria, os curdos esperavam que a sua vitória lhes permitisse consolidar a sua autonomia, estabelecida nas regiões do norte do país em guerra desde 2011, e lhes desse legitimidade perante aquela comunidade.
Mas em vez de os apoiarem, os seus aliados norte-americanos, à frente da coligação internacional anti-‘jihadista’, retiraram-se da região em causa, abrindo caminho ao lançamento de uma ofensiva turca contra as forças curdas a 9 de outubro.
O acordo concluído na terça-feira em Sochi entre o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, e o seu homólogo russo, Vladimir Putin, para acabar com a ofensiva define, segundo a agência France Presse, os contornos do desastre dos curdos, que até recentemente controlavam cerca de um terço do território da Síria.
“Para os curdos é o fim da Rojava, do seu sonho de autonomia”, resumiu Fabrice Balanche, geógrafo especialista em Síria, utilizando o nome dado pelos curdos à sua região autónoma.
A Turquia conquistou o direito de ficar destacada em setores incluídos numa “zona de segurança” e alvos da sua ofensiva.
A zona estende-se por 120 quilómetros e deve receber dois dos 3,6 milhões de sírios refugiados na Turquia, de acordo com os desejos de Erdogan, cujo país é aliado dos Estados Unidos na NATO.
A ofensiva foi possível com a retirada das forças norte-americanas destacadas junto à fronteira e que criavam uma “zona tampão” entre a Turquia e os seus aliados na luta anti-EI, as Forças Democráticas Sírias (FDS), dominadas pela milícia curda das Unidades de Proteção Popular (YPG).
As YPG são consideradas terroristas por Ancara, devido às ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, guerrilha ativa em território turco). Ancara teme que um núcleo de um Estado curdo junto à sua fronteira reforce as aspirações separatistas no seu solo.
A retirada dos norte-americanos obrigou os curdos a virarem-se para o regime sírio, apoiado militarmente pelo aliado russo desde 2015.
As forças pró-regime deslocaram-se rapidamente para o norte, recuperando território de onde se tinham retirado em 2012.
O acordo de Sochi exige a retirada das YPG até 30 quilómetros da fronteira turca e ao longo dos 440 quilómetros que separam o rio Eufrates do Iraque, que também faz fronteira com a Síria.
Prevê ainda que os curdos abandonem várias cidades que administram, com exceção de Qamichli, capital de facto da sua região.
“Em termos de território eles perdem tudo”, disse Balanche, assinalando que “Damasco recupera o que a Turquia não ocupa”.
Os curdos “evitam uma operação maior da Turquia, que teria podido expulsar a população curda da sua terra, como foi o caso em Afrine”, alvo de uma anterior ofensiva turca na Síria em 2018, adiantou Balanche.
A operação militar turca matou mais de uma centena de civis e mais de 250 combatentes curdos, segundo uma ONG síria.
Ancara anunciou a morte de oito dos seus soldados e de 20 civis em território turco.
Mazloum Abdi, chefe das FDS que dizem ter perdido 11.000 homens em cinco anos de combate ao EI, declarou preferir os “compromissos” a um “genocídio”.
Segundo o especialista em Síria Samuel Ramani, as YPG deverão incorporar-se no exército sírio, embora considere ser “muito cedo para dizer se vão perder todos os seus territórios”.
Para Damasco e Moscovo está fora de questão que a região em causa, rica em petróleo, escape ao controlo do regime de Bashar al-Assad.
A retirada norte-americana deu lugar às forças de Moscovo.
“A Rússia (…) quer reduzir o perímetro da presença turca no país e quer sobretudo assegurar o regresso de um máximo de áreas curdas ao controlo de Assad”, disse Ramani.
Comentários