No debate dos pequenos partidos que teve lugar a 20 de fevereiro fez-se notar a ausência de Renata Cambra, líder do Movimento Alternativa Socialista (MAS). Depois de uma prestação televisiva que a fez ganhar algum espaço público nas eleições de 2022, Renata Cambra está impedida de concorrer como cabeça de lista do partido. Os fundadores do partido, além de não lhe reconhecerem legitimidade para a apresentar a lista, querem, por seu lado, mudar o nome do MAS para Agora, tendo apresentado essa proposta ao Tribunal Constitucional (TC) no final de 2023. As duas propostas foram indeferidas (candidatura de Renata Cambra e novo nome) e o resultado é a ausência de ambas as fações do MAS dos boletins de voto nas eleições legislativas de 10 de março.
A história remonta a março de 2023, altura em que teve início uma guerra interna que opôs a ala de Renata Cambra, líder em funções, e Gil Garcia, fundador do partido. Mas, para percebermos de onde vêm os protagonistas, é preciso recuar mais uma década.
O MAS foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 458/2013 com data de 2 de setembro de 2013. “João Carlos de Gouveia Pascoal, Gil de Oliveira Garcia e André Pestana da Silva, melhor identificados nos autos — na qualidade de primeiros signatários de um requerimento subscrito por 9.650 cidadãos eleitores e instruído com projeto de estatutos, declaração de princípios e programa político, denominação, sigla e símbolo a adotar — vieram requerer, ao abrigo dos artigos 14.º e 15.º da Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), a inscrição, no registo próprio do Tribunal Constitucional, de um partido político denominado «Movimento Alternativa Socialista»”
Uma votação polémica e a saída de André Pestana
Um dos signatários referenciados é um nome que se tornou mediático no último ano e meio, mas não como fundador do MAS. Trata-se de André Pestana, líder do movimento S.T.O.P., que encabeçou o protesto de professores à margem dos sindicatos tradicionais, e que acaba por estar no epicentro de uma divergência que dividiu o MAS e que resultou também na sua saída do partido.
André Pestana foi membro do MAS até que a Comissão Nacional chumbou uma proposta de coligação com o movimento Juntos Vamos Mudar que, segundo a ala de Renata Cambra, estava a utilizar o partido como embrião para um novo projeto político.
“Diz que queremos utilizar o MAS como ‘barriga de aluguer’ para um novo partido político, mas isso é uma falácia. Ela devia dedicar-se a lutar contra a extrema-direita, mas toda a sua raiva é dirigida a André Pestana, porque, alegadamente, ele queria ser deputado. Quem me dera ter dez ‘André Pestanas’ no Parlamento”, afirmou na altura Gil Garcia.
O chumbo dessa proposta acicatou divergências internas e em julho de 2023 era André Pestana que saía do MAS. Num comunicado enviado afirmava que já não sentia ter espaço no partido. “Após mais de 10 anos de militância no MAS, que ajudei a fundar, verifico hoje que um grupo lançou uma ação destrutiva contra a liderança histórica do partido e contra militantes que têm estado na primeira linha das grandes lutas laborais, o que me leva a concluir, com tristeza, que no momento atual, este já não é o espaço onde me sinto útil para lutar”.
Tudo se precipita a partir daí e Renata Cambra traz então a público acusações contra Gil Garcia que terá, segundo as suas declarações, impedido o acesso dos membros da Comissão Nacional à sede do partido, às contas bancárias e a passwords de emails e de redes sociais.
Publicamente, Gil Garcia afirma não reconhecer os resultados do congresso que em junho de 2022 elegeu a lista de Renata Cambra e, por inerência, a sua legitimidade para agir em nome do partido.
A disputa pelo partido discute-se nos tribunais
A Comissão Nacional liderada por Renata Cambra apresentou queixa ao Tribunal Constitucional pelo impedimento de acesso à vida do partido. Numa primeira resposta, o Tribunal Constitucional decidiu não reconhecer razão aos queixosos, mas, segundo a informação prestada por Renata Cambra ao SAPO24, a situação pode ter um volte face.
“O Tribunal Constitucional, depois de ter arquivado o nosso primeiro requerimento, de 14 de julho de 2023, por considerar que não foi apresentado “em forma própria”, não emitiu, até à data, nenhuma decisão relativamente ao novo requerimento apresentado por nós a 27 de novembro de 2023, já com a ajuda da Dra. Leonor Caldeira, onde expomos as falsas comunicações que aí foram feitas por Gil Garcia, João Pascoal e André Pestana, sobre a composição dos organismos de direção do MAS, de maneira a garantirem o controlo ilegítimo e antidemocrático da organização, apesar de se encontrarem em minoria. No entanto, soubemos na última semana que o nosso requerimento começou agora a ser analisado e temos total confiança de que as provas comprovam cabalmente os factos que comunicamos.”
Na mesma resposta, enviada por email, Renata Cambra dá conta de outra novidade: a decisão de chumbo pelo TC do pedido dos fundadores do MAS para mudarem o nome do partido para Agora. “Vemos também como positivo que o Tribunal Constitucional tenha recusado na semana passada o pedido de Gil Garcia e João Pascoal de mudar o nome do Movimento Alternativa Socialista para Agora”, afirma Renata Cambra.
Contactado pelo SAPO24, os órgãos oficiais do MAS em exercício confirmam a recusa do Tribunal Constitucional na mudança de nome e imputam à demora na resposta a ausência do partido nas eleições de 10 de março.
“A deliberação do TC a que se refere é a deliberação de não aceitação da proposta aprovada no nosso VI Congresso de alteração de denominação, sigla e símbolo, por não estar explicito na Ordem de Trabalhos do referido congresso a alteração do Artigo 2º dos nossos Estatutos. Essa situação não afeta em nada o funcionamento e legalização do partido, pelo que, até novo Congresso o partido continuará com a mesma denominação, sigla e símbolo”, referem os responsáveis do MAS do grupo de fundadores que atualmente responde pelos órgãos oficiais do partido.
A ausência do MAS nos boletins de voto é atribuída à demora no processo de resposta por parte do TC. “O facto de estarmos ausentes nestas eleições legislativas de 10 de março é consequência de termos aguardado mais de dois meses por essa deliberação do TC e , à data de 26 de janeiro de 2024 ainda não termos essa deliberação do TC, e por consequência não termos resposta à deliberação do nosso VI Congresso”.
Mas, acrescentam os mesmos responsáveis, “hoje, após essa deliberação do TC tudo volta à situação de normalidade de funcionamento".
Há cerca de dois meses, Gil Garcia anunciou a intenção de mudar o nome do MAS para Agora, afirmando tratar-se de uma decisão para alinhar o partido com “as alterações do mundo”. Em entrevista ao DN referiu que “havia quem entrasse em sedes nossas a achar que eram sucursais do Partido Socialista. Não queremos ser confundidos com o PS. O Livre é mais próximo do PS do que nós”.
Dois sites, a mesma sigla
O confronto entre as duas fações arrastou-se durante 2023 e chegou sem resolução à convocatória de eleições legislativas antecipadas para 10 de março de 2024. Com esse cenário político, Renata Cambra apresentou candidatura pelo círculo eleitoral de Lisboa em que seria cabeça de lista, à semelhança das eleições de 2022 em que a líder do MAS duplicou a votação obtida em 2019, registando 6181 votos.
Só que a ala de Gil Garcia não concordou com a candidatura e apresentou, por sua vez, uma queixa ao Tribunal da Comarca, contestando a legitimidade da apresentação da mesma, alegando que não foi apresentada pelos órgãos legítimos do partido. O tribunal deu razão a esta queixa e a candidatura de Renata Cambra não pôde avançar.
As críticas à atuação judicial unem as duas fações em confronto. Também Renata Cambra considera que o grupo que lidera tem sido prejudicado, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional não ter dado seguimento à queixa apresentada na sequência da decisão do Tribunal da Comarca.
“Como foi tornado público, apresentamos recurso dessa decisão do Tribunal da Comarca ao Tribunal Constitucional, que decidiu não tomar conhecimento do mesmo - ou seja, decidiu ignorá-lo -, por considerar que teríamos que ter seguido outro procedimento legal antes, motivo pelo qual a lista ficou definitivamente excluída deste processo eleitoral”.
Dos acontecimentos relatados resulta que, à data de hoje, existem dois partidos com a sigla MAS.
Os fundadores mantém controlo sobre as estruturas de comunicação do partido, nomeadamente site e redes sociais. Consultando o site do partido não se encontra qualquer referência às eleições legislativas nem a mudanças em órgãos do partido. Existe informação sobre os órgãos do partido, mas não sobre quem os representa atualmente. A “manchete” do site é de 13 de dezembro de 2023 num artigo não assinado sobre Marcelo Rebelo de Sousa e o caso das gémeas.
O grupo afeto a Renata Cambra lançou uma campanha intitulada "Em Defesa do MAS", em que retratou a sua visão do que se passa no partido.
"O Movimento Alternativa Socialista (MAS) enfrenta atualmente uma crise sem precedentes. Um grupo minoritário de dirigentes, em flagrante violação dos nossos princípios democráticos e estatutários, apoderou-se dos meios de comunicação, recursos e património do MAS, desrespeitando a vontade da maioria dos militantes e dirigentes. A campanha "Em Defesa do MAS" pretende recuperar aquela que é a essência de um partido comprometido com os valores da justiça social e da transformação positiva. A maioria dos militantes e dirigentes está unida, pronta para enfrentar este desafio."
Nessa mesma página existem várias comunicações que refletem a cisão no partido como “o sequestro ilegítimo dos nossos meios”, “em defesa da democracia interna”, “pela restauração da direção legítima” e “devolvam-nos o MAS”. Existem ainda vários testemunhos sob o mote “queremos o nosso partido de volta”.
A página está agora integrada em "Legislativas24.partidomas.pt", site onde a dirigente tem um programa eleitoral disponível e apresenta-se como porta-voz do MAS. A 15 de fevereiro, já depois de conhecida a decisão do Tribunal Constitucional que reconhece legitimidade à direção de Gil Garcia e inviabiliza a candidatura de Renata Cambra pelo círculo distrital de Lisboa, foi publicado um texto sobre o programa do MAS no endereço alternativo do partido.
"Nestas eleições legislativas, o MAS apresenta-se com uma palavra de ordem clara: “Os ricos que paguem a crise”. A partir dela, colocamos a necessidade de controlar os preços dos bens essenciais e das rendas, taxar as grandes fortunas, nacionalizar os setores estratégicos e combater a corrupção e os privilégios das elites, de maneira a podermos recuperar o valor dos salários e das pensões, criar habitação pública, digna e acessível, reforçar os serviços públicos e avançar numa transição energética socialmente justa", pode ler-se.
MAS: que futuro?
Questionados sobre o futuro do movimento, ambos os grupos partilharam uma visão que coloca, como primeira opção, manter ou obter o controlo sobre o partido que existe desde 2013 registado no Tribunal Constitucional.
O MAS dos fundadores mantém intenção de mudar de nome e poder apresentar-se como Agora. “A deliberação de mudança de denominação, sigla e simbolo é um tema que já vinha sendo debatido no partido há cerca de 5 anos, aguardando melhor oportunidade política. A situação que levou à nossa deliberação de novembro de 2023 será avaliada em próximo congresso e, conforme deliberação do TC implica apenas a alteração do Artigo 2º dos Estatutos.”
O MAS da ala de Renata Cambra pretende recuperar o controlo do partido.
“Quanto à possibilidade de fundar um novo partido, esta nunca seria uma decisão que tomaria sozinha, porque, por mais que tentem pessoalizar a questão, a verdade é que sou só mais uma entre muitos militantes do MAS a lutar pela continuidade da construção do nosso partido. Neste momento, não esgotamos todas as possibilidades para recuperar o controlo da legalidade do partido junto do Tribunal Constitucional e é nisso que estamos focados, porque é realmente a única coisa que nos falta para termos um funcionamento totalmente regular”, responde Renata Cambra.
Um novo partido não está, para já, no horizonte, mas também não é descartado em absoluto. “Mas também é verdade que não podemos esperar eternamente e continuar a ser prejudicados pela falta de resposta do Tribunal Constitucional, como aconteceu nestas legislativas. Se, a seu tempo, o conjunto dos militantes do MAS decidir que está na hora de seguir por um novo caminho, estaremos todos juntos para aplicar a vontade da maioria e legalizar um novo partido, sendo que o projeto se manterá o mesmo, apenas com um nome diferente. Para já, não é esse o nosso objetivo”.
No que respeita à utilização do nome e da sigla do partido numa comunicação que está fora das estruturas oficiais. Renata Cambra afirma-se confiante no processo que estão a seguir.
“Estamos confiantes de que, quando finalmente o Tribunal Constitucional se debruçar sobre os factos e as provas que apresentamos, não haverá margem para dúvidas sobre qual a verdadeira composição dos organismos de direção do MAS e, consequentemente, sobre qual o conjunto de militantes que deve constar na certidão de registo do partido no TC, ter o controlo dos meios de comunicação e das contas, entre outros. Neste processo, temos a agradecer a ajuda da nossa advogada, a Dra. Leonor Caldeira, que nos tem orientado sobre como devemos proceder".
Sobre este ponto, o grupo dos fundadores considera que se trata de “usurpação” e pretende atuar, como deu conta nas respostas enviadas ao SAPO24.
“Tomámos conhecimento da existência de um site com a designação de 'partidoMAS' o que é uma tentativa de usurpação da denominação do partido legal Movimento Alternativa Socialista - MAS e, essa situação de ilegalidade será objeto de procedimento que já iniciámos.”
Como nasceu o MAS?
O MAS resulta da saída de duas organizações que integravam o Bloco de Esquerda – o Ruptura/FER, movimento trotskista que resultou da fusão da Frente da Esquerda Revolucionária (FER) e ativistas estudantis do Ruptura.
Em dezembro de 2011, Gil Garcia anunciou a saída do Ruptura/FER do Bloco de Esquerda, levando consigo cerca de 200 bloquistas. As razões invocadas foram críticas à direção do BE que Garcia acusava de estar "cada vez mais institucionalizado e parlamentarizado".
Em declarações ao Público, o mesmo Gil Garcia atribuía à direção do BE uma marginalização da sua ala mais à esquerda em consequência do desaire eleitoral das eleições de 5 de junho de 2011 em que o partido perdeu metade da bancada. "Nós fomos empurrados para fora, principalmente depois dos resultados eleitorais de 5 de junho [em que o Bloco perdeu metade dos 16 deputados que tinha e nem conseguiu reeleger o então líder da bancada, José Manuel Pureza, candidato por Coimbra]", afirmou então Gil Garcia.
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