É um dos maiores empregadores e não se limita a Portugal. No início eram cerca de 2300 pessoas, hoje são mais de 110 mil só na distribuição. Uma vez ouviu comentários menos bons sobre os frescos em algumas lojas do país e fez uma visita surpresa ao armazém, à meia-noite. Descobriu um "forrobodó" e que se jogava à bola com couves. Quando pensavam que não voltava, regressou às 7 horas da manhã. Despediu todos, incluindo o director.

No grupo Jerónimo Martins foi sucedido pelo filho Pedro e gosta de pensar que está reformado, mas é o patriarca da família e, por consequência, o trabalho na Sociedade Francisco Manuel dos Santos não pára. Actualmente os projectos vão muito para além dos negócios e estendem-se à área social. Agora há a ideia de criar uma nova fundação, desta feita para a a área da educação, liderada pelo ex-ministro Nuno Crato.

Sempre falou sem receios e chegou a dizer que só contrataria José Sócrates para trainee, provavelmente para o despedir depois (seria dos tais apanhados a jogar com a couve). É um homem livre, que fala com desassombro e talvez por isso nunca um político lhe tenha pedido opinião, apesar de ter construído um grupo que está prestes a atingir os 20 mil milhões em vendas.

Numa conversa que não era para ser uma entrevista, Alexandre Soares dos Santos, democrata cristão convicto – e que não se revê em nenhum partido político português - revela um pouco mais sobre como são feitas as escolhas do grupo e fala sobre as suas esperanças e receios.

O grupo tem hoje, além dos seus negócios, uma quantidade de projectos, que vão da Fundação Francisco Manuel dos Santos à Ocean Blue, passando pela Arco Maior. Quem vai pensando nestas organizações?

Em princípio é a empresa gerida por mim e pelos meus filhos, a Sociedade Francisco Manuel dos Santos. Ainda agora acabámos uma reunião por causa da nova fundação para a educação, que será presidida por Nuno Crato e que tem como elementos de fora, entre outros, o professor Miguel Poiares Maduro. Estamos a decidir quem vamos convidar e aquilo que entendemos exactamente por educação; se é ensinar a ler, se é ensinar o direito à cidadania, como exercer a cidadania... É um programa muito vasto, que tem como objectivo alterar a forma de pensar da sociedade portuguesa. No fundo, é a continuação do trabalho que, de certa maneira, temos vindo a fazer com a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Pensamos que chegou a altura de olhar para as coisas em termos profissionais, por pessoas que sabem e não apenas por ter uma ideia e, por isso, chutar para a frente. O mais difícil é encontrar pessoas que compreendam a missão, o que queremos fazer.

E o que querem fazer?

Estamos num mundo em mudança, transformações muito importantes e muito rápidas em que as pessoas não têm sequer tempo para reflectir. Quando começam a pensar sobre as coisas elas já aconteceram. Isto pode ser dramático, quer em termos pessoais, quer em termos familiares, quer em termos de business. E é isso que a família tem como grande preocupação e é sobre isso que estamos a trabalhar muito.

A família tem sido criticada pelos baixos salários que o grupo paga, por levar a sede da empresa para a Holanda, por enriquecer à conta dos outros. Como responde?

Sabe, a inveja é comum à sociedade portuguesa. E a esquerda portuguesa tem por hábito criticar-nos. Quando dizem que pagamos salários muito baixos, é mentira. Porque existe um salário em Portugal, um salário na Polónia e um salário na Colômbia. Estes salários são pagos em moeda local face ao mercado onde actuamos e quando se transforma tudo em euro é evidente que a média cai.

Qual é a média de salários praticada em Portugal?

A média dos salários em Portugal, para mim, não existe. Porque temos os quadros que fazem parte do Jerónimo Martins, os quadros que fazem parte do Pingo doce, os quadros que fazem parte do Recheio. O quadro do Jerónimo Martins é um quadro especial, com a responsabilidade dos países, e que viaja muito – o quadro de topo, a começar pelo presidente, está cerca de duas semanas fora. E temos de tomar em consideração que 70% a 75% do movimento do Jerónimo Martins é feito lá fora, como temos de tomar em consideração que em Portugal deixou de haver crescimento. Isto afecta, logicamente, a evolução dos salários. Mas posso dizer que o salário médio mais baixo, daqueles mais baixos, no Jerónimo Martins, é 800 euros, fora os prémios. E isto é gente não qualificada, mas tenho directores com salários altíssimos e de uma forma geral o quadro médio ganha no mínimo um ordenado que ronda os 3 mil euros, mais carro, mais uma série de regalias.

O que é têm na Holanda que não têm em Portugal?

Quem está lá fora é a Sociedade Francisco Manuel dos Santos, não é nenhumas das outras. E a razão principal é que era preciso acompanhar o crescimento do Jerónimo Martins, no qual a empresa tem uma posição maioritária. A Holanda dá-nos uma garantia de protecção do investimento no estrangeiro que Portugal não dá. Em segundo lugar, a burocracia na Holanda é muito menor. Para ter uma ideia, aqui há tempos escrevemos uma carta ao primeiro-ministro a perguntar como é que se explica que numa construção de um centro de logística em Valongo, onde estão 75 milhões de euros, ou de uma fábrica de leite que estamos a construir em Portalegre haja atrasos provocados pelas entidades oficiais que levam mais de dois anos. Porque não despacham.

Qual foi a resposta?

O Ministério do Ambiente não tem prazos para aprovar. Ora isto custa-nos dinheiro. Se avançarmos com a fundação da educação, também será feita na Holanda. Porque lá é assim, apresentamos um projecto e ele vai para a frente, ponto final. Aqui não, permitem-se discutir. O que eles não dizem é que entre a família e o Jerónimo Martins gastamos 35 milhões de euros por ano em responsabilidade social. O bispo do Porto, D. António [Francisco dos Santos], costumava dizer, quando era bispo de Aveiro, que não havia pobreza nem fome em Aveiro graças ao Pingo Doce. Também não houve um jornal que dissesse que distribuímos 25 mil refeições ao bombeiros nos incêndios de Pedrógão e só uma câmara escreveu a agradecer. Ainda outro dia o presidente da República foi a uma dessas localidades afectadas pelos incêndios visitar uma exploração com ovelhas que produzem o leite para fazer queijo da serra e as pessoas que lá estavam disseram: tudo quanto está aqui foi o Jerónimo Martins que ofereceu. Fomos comprar ovelhas a Espanha, construímos os estábulos, etc. Mas isto ninguém diz. Também não estamos interessados em ser conhecidos por isso, o que nos interessa é cumprir as directrizes que a família impõe. E a família impõe negócio e responsabilidade social. Gostava que me dissessem qual é a empresa que gasta 35 milhões de euros em responsabilidade social.

Fala em Nuno Crato para presidir a nova fundação, um homem muito criticado enquanto ministro da educação.

Eu discordo dessa opinião. Penso que o problema não é ele ter feito ou ter deixado de fazer, o problema são os obstáculos que o próprio Ministério da Educação coloca. Mas que ele era um homem que tinha uma visão, era. Contudo, existe uma Fenprof para deitar abaixo, a quem não se ouve dizer o que está mal e qual a solução. Querem manter todas as regalias e ninguém se pergunta que ensino precisamos para o futuro, seja ensino secundário, seja ensino universitário. Fui presidente do conselho geral da Universidade de Aveiro e gostava que me dissessem, se fizerem o favor, quais os projectos que as universidades apresentaram até hoje sobre o ensino de amanhã. Fala-se de quê? De propinas. Somos incapazes de, em conjunto, discutir um projecto para o país. Gostamos muito de dizer mal, mais nada. E vim-me embora porque as pessoas não estão interessadas, não estão interessadas num projecto sério.

Como se muda esta cultura?

Através da educação. Demora anos, mas tem de começar. Tem de começar. Os estudos que a Fundação Francisco Manuel dos Santos faz têm esse objectivo, o debate que fazemos na RTP3 tem esse objectivo. Mas, claro, estamos sozinhos.

Há pouco falou da esquerda enquanto principal crítico da família. Jaime Nogueira Pinto, por outro lado, afirmou que não há direita em Portugal. Concorda?

Nunca houve. Em Portugal existe individualismo, mais nada. Cada um quer tratar da sua saúde. Já tentei variadíssimas vezes criar associações empresariais a sério, com dinheiro para fazer estudos, nunca deu em nada. Lá fora é completamente diferente. E os sindicatos são um braço político dos partidos, não fazem nada. Aliás, nem percebem e nem se perguntam porque é que estão a perder tantos aderentes, mas por alguma razão as pessoas estão a deixar os sindicatos. Eu sou francamente favorável às comissões de trabalhadores, que, regra geral, têm interesse em defender a companhia onde trabalham, em defender o seu trabalho. Veja que a Intersindical vai meter-se na Autoeuropa e cria logo problemas. É o que é.

O conselho de administração da Jerónimo Martins é constituído na sua larga maioria por gente de fora, tem apenas duas pessoas da família. Como é feita a escolha das pessoas?

Não sou eu que escolho. Reunimos e, com seis meses de antecedência, pedimos às pessoas responsáveis pelas empresas que sugiram nomes. Concreto: em Março do ano que vem vai haver eleições para a administração da Jerónimo Martins e está na altura de o presidente do conselho apresentar a lista. Essa lista é levada à Sociedade Francisco Manuel dos Santos, que tem um comité de nomeação, examina os candidatos e propõe sim ou não. A mesma coisa em relação à Polónia. Fora isso, são os próprios conselhos que nomeiam. Normalmente – e isto é muito importante - procuramos que sejam pessoas que percebam o mundo, de preferência que vivam lá fora. Porque a Jerónimo Martins é hoje uma empresa multinacional, de maneira que tem de ter pessoas que percebam o que está a acontecer  - e mesmo assim já nós não percebemos, agora imagine os outros.

Que mais fazem para compreender o mundo e para passar isso aos quadros do grupo?

Para nos ajudar a compreender o mundo fazemos duas conferências anuais, uma da fundação, que este ano tem como tema o trabalho, e outra para os quadros do grupo, a que chamamos changers: convidamos grandes nomes internacionais da economia, da sociologia, da política e de outras áreas para nos apresentar um problema e a sua visão para o futuro. São conferências de dois dias em que se discute abertamente os problemas e retiram-se as conclusões necessárias. Quem escolhe os oradores é a comissão executiva da Fundação Francisco Manuel dos Santos, depois de um briefing com a família. Outra coisa: é tradição dos conselhos do grupo Jerónimo Martins, que são rigorosamente independentes, dizer o que se pensa e não aquilo que se espera que seja agradável ouvir, que é uma mania muito portuguesa: tomamos tudo como uma crítica pessoal.

Qual é a visão da família para o grupo?

A família tem determinados princípios de que não abdica. Primeiro: não vamos vender seja o que for, fazemos parcerias se forem de interesse para o grupo. Segundo: a empresa é para ser gerida por competentes. Terceiro: membros da família só podem entrar se apresentarem currículo; ou feito internamente, e para isso têm de ter experiência internacional, ou feito lá fora, com uma experiência adquirida que justifique serem convidados. E nós temos acordos com professores e acordos com institutos para assumirem a responsabilidade da formação em management. Isto independentemente de outros cursos que vamos organizando.

Em Portugal sempre houve a tradição, chamemos-lhe assim, de os bancos terem participações em empresas não financeiras. Uma boa política?

Viu-se o resultado. Isto é uma terra de primos e os primos passaram a vida a fazer jeitos uns aos outros. Depois estouraram-se todos, estouraram os bancos e os primos. Isto acabou com a banca em Portugal, hoje não há dinheiro no país para ter um banco.

Faliram vários. Vamos continuar a injectar dinheiro na CGD, no Novo Banco e noutros ou aprendemos alguma coisa?

Em Portugal não se aprende nada. Veja o défice, é sistematicamente a mesma coisa. E são sempre os mesmos. Este é um país que se dá ao luxo de ter os melhores lá fora, porque se algum vier para cá para presidir um banco, uma empresa, começam logo por insultá-lo pelo ordenado. Quer dizer, querem bons à borla. Não há disso. Temos lá fora uma série de gente competentíssima para gerir bancos e que não trabalha em Portugal porque Portugal não dá condições. A seguir vem o Estado, e também quer interferir. Isto não vai lá, não vai. Depois fica este clube fechado, que deu cabo, por exemplo, do BCP, e um Banco Espírito Santo que quer ser dono de tudo, um BPI praticamente para amigos, e o resultado vê-se. Como é possível uma Caixa Geral de Depósitos comprar coisas que não têm nada a ver com ela? Quando a Compal foi posta à venda, tínhamos uma parceria com a Heineken, concorremos e concorreram três ou quatro empresas, quase todas com os mesmos preços, embora não tivesse havido conversa nenhuma. Quem ganhou? A CGD. O que é que o banco tem a ver com a Compal, com refrigerantes? Mas isto é assim mesmo.

Qual o papel do Banco de Portugal enquanto regulador, enquanto supervisor, em tudo isto?

Devia ser controlar, estar ciente das circuntâncias em que os bancos estavam e actuar. Mas nunca actuou e quando actuou era tarde. E tudo porque o senhor do banco xis vai falar com o primeiro-ministro, dá-se uma instrução para ali e acabamos sempre nesta panelinha. Não há coragem. Em Inglaterra nacionalizaram os bancos que estavam mal e à medida que foram recuperando foram voltando ao mercado. Veja-se o Lloyd's, como está e como estava. Aqui o BPI já é espanhol, o BCP é chinês e angolano...

É assim tão importante a proveniência do capital?

A diferença é a seguinte: a banca estrangeira é boa, ninguém discute isso, o problema é que se eu precisar de um empréstimo, o empréstimo é discutido noutro país. Quando falhei no Brasil, estrondosamente, quem me deitou a mão a sério foi um banco português chefiado pelo Eng. Jardim Gonçalves, que eu nem conhecia. E o Eng. Jardim Gonçalves foi verdadeiramente impecável, percebeu qual tinha sido o problema no Brasil, percebeu o projecto e nós recuperámo-nos. Uma banca nacionalizada ou uma banca de amigos não fazia isto. Eu cheguei a ser convidado para almoços no BES em que do outro lado da mesa estavam empresas estrangeiras que me pretendiam comprar. Beneficiando de quê? Não sei. Simplesmente enganaram-se com quem encontraram pela frente. Isto é um jogo complicado, por isso é que não nos metemos em nada, não participamos em nada. Temos as nossas empresas e hoje até já somos accionistas de uma empresa na Alemanha, começámos a entrar lá fora a comprar percentagens em algumas empresas, como investimento da sociedade Francisco Manuel dos Santos.

Como gostaria de ser lembrado?

Está a fazer-me uma pergunta que, creio, nunca me fiz [pausa]. A melhor resposta é que peguei no Jerónimo Martins, então com 300 pessoas no comércio e duas mil na indústria, e hoje tem na distribuição 110 mil pessoas e está a caminhar para os 20 mil milhões em vendas. Penso que é uma herança bonita. E gosto muito, por exemplo, da obra social. Só na Arco Maior, no Porto, dirigida pelo professor Joaquim Azevedo, da Universidade Católica, são 170 crianças que tirámos da rua, que ensinamos e ajudamos a tirar o 12.º ano. Há tempos o presidente Marcelo Rebelo de Sousa quis conhecer a obra e foi lá almoçar – um almoço feito por eles. Depois alguns miúdos contaram-lhe as suas experiências, como uma rapariga de 16 anos que a mãe pôs na rua aos sete. Conheci um rapaz que me disse: "Não me pergunte quem sou nem o que fiz, porque já fiz tudo quanto há de errado". Arranjou-se um emprego no Pingo Doce e o rapaz ia tão bem, tão bem... Outro dia veio ver-nos dizendo que ia para o Luxemburgo. Porquê? "Porque a malta da droga não me larga". E foi isso que me levou a ter uma conversa com o padre Tolentino de Mendoça: saber como passar valores. Criamos rapazes a quem ensinamos a ler, a ter um lugar, mas há o problema da transferência de valores. Um dia marquei uma reunião plenária com eles – avisaram-me logo para não me espantar, que eram capazes de se levantar a meio e sair – e comecei a conversa a dizer quem era, que tinha sete filhos e agora estava ali para conversar. Não houve um que saísse, um que fosse malcriado e ainda ficámos a falar na rua. Parece-me que são bons motivos para se ser lembrado.