Combinámos falar por telefone já tarde, ontem, e mal faço a primeira pergunta chega o aviso de que Kamala Harris vai discursar. Desligamos para retomar minutos depois.
"Esteve muito bem, como sempre. Admitiu a derrota, que é uma grande diferença entre os ditadores e os democratas, mas não baixa os braços, lembra que é hora de arregaçar as mangas", resume Ana Gomes, diplomata e política.
"Num sistema em que os ultra ricos não pagam impostos e é a classe média e os trabalhadores que pagam está tudo mal"
"O resultado não foi o que queríamos, aquele por que lutámos", disse Kamala Harris. Por que motivo os democratas ficaram tão aquém do esperado?
É preciso que os democratas, nos Estados Unidos e na Europa, ponham a mão na consciência e aceitem que as políticas neoliberais em que embarcaram a reboque de republicanos e conservadores, como Reagan e como Thatcher, são um desastre total. E são, no fundo, a verdadeira razão não apenas do desencanto das classes trabalhadoras, da falta de esperança das classes trabalhadoras, mas também da subida dos partidos da extrema-direita.
Não podemos continuar com estas políticas ultraliberais, que desregulam a economia, acentuam desigualdades e geram um forte sentimento de exclusão de grandes segmentos das classes trabalhadoras, que se sentem marginalizadas, porque foram. Num sistema em que os ultra ricos não pagam impostos e é a classe média e os trabalhadores que pagam impostos está tudo mal. É isso que explica a situação actual, é isso que os democratas têm de perceber e é isso que explica que tanta gente trabalhadora na América tenha votado num burgesso como Trump.
"A Europa tem, obviamente, de pagar a sua própria segurança"
Com Trump no poder a política de Defesa da União Europeia vai ter mudar?
Há séculos que na Europa se discute isso. Estive 15 anos na sub-comissão de Segurança e Defesa do Parlamento Europeu, toda a vida falámos da imperatividade da autonomia estratégica da Europa, para não andarmos a reboque dos Estados Unidos - se coincidirmos nos interesses, muito bem, trabalhamos em sinergia, se não, trabalhamos nos nossos interesses. Nada foi feito.
Porquê?
É evidente que aí têm imensa responsabilidade todos os establishments que foram poder, de direita e de esquerda, e os próprios militares, que alinharam num discurso americano que às segundas, quartas e sextas dizia que a Europa devia pagar a sua parte na NATO, às terças, quintas e sábados dizia vamos à prateleira americana buscar os equipamentos de que precisamos.
Os americanos nunca prescindiram de ter o chamado Buy American Act [exige que as agências federais adquiram materiais e produtos nacionais], designadamente para o armamento.
Esses líderes foram muito responsáveis por nos terem posto nesta situação de total dependência no quadro da NATO. É evidente que, a partir de certa altura, já no fim da administração Bush filho, se começaram a dizer as coisas que Trump diz e Obama também disse, a Europa tem, obviamente, de pagar a sua própria segurança.
"Se um agressor do tipo de Putin não é derrotado militarmente na Ucrânia, vem por aí fora para destruir a Europa"
Agora a Europa está numa situação terrível, em que o que está em causa na Ucrânia é, no fundo, a segurança e a defesa da Europa. Porque, não tenho a mais pequena dúvida, se um agressor do tipo de Putin não é derrotado militarmente na Ucrânia, vem por aí fora, porque o objectivo dele é destruir a União Europeia. E a Europa está mais do que nunca dependente dos americanos, quando não devia estar. Há muito tempo que não devia estar.
Uma consequência não desejada, mas positiva, da eleição de Trump é que os europeus, finalmente, têm de ser confrontados com a absoluta indispensabilidade de investirem em segurança e defesa e fazerem o que é preciso.
O que é, exactamente, fazer o que é preciso?
Fazer o que é preciso é gastar dinheiro, ter equipamentos, pôr homens e mulheres ao serviço de uma estratégia de derrota militar do agressor da Ucrânia, que se chama Vladimir Putin. Ajudar a Ucrânia a defender-se é defender a Europa.
"Não há autonomia estratégica da Europa sem uma base industrial e tecnológica autónoma"
Não estou a falar de um exército europeu, até porque isso não se faz num estalar de dedos, é todo um processo. Estou a falar em trabalhar em conjunto com os exércitos nacionais, pô-los em articulação. E não é só o exército, é muito mais, as forças armadas, as forças de segurança, investimento em cibersegurança.
Parte dos ataques de que vamos ser vítimas, de que já estamos a ser vítimas, são ataques a infra-estruturas ciber, nem sequer são a infra-estruturas militares. São, por exemplo, ataques a infra-estruturas relacionadas com os transportes, com os hospitais, com a banca. Temos absolutamente que investir na cibersegurança, temos de investir em ciberdefesa, temos de investir em tudo o que contrariar os projectos de desinformação que estão a ser manipulados por parte dos agressores, designadamente russos, mas não só. Temos de nos articular e trabalhar conjuntamente.
Para isso é preciso dinheiro...
Temos de ter um orçamento para a Defesa muito superior ao que existe, temos de ter equipamentos produzidos na Europa. Não há autonomia estratégica da Europa sem uma base industrial e tecnológica autónoma. Mais esses equipamentos são hoje, necessariamente, de utilização dupla, para efeitos civis e militares. Temos de assumir isso, tem de ser um projecto europeu, de cooperação europeia.
A questão da segurança e da defesa é absolutamente prioritária para a Europa e para a democracia na Europa. Portanto, temos de expurgar e de nos livrar dos cavalos de Troia que temos dentro da Europa, designadamente aquele que Orbán representa; não pode haver mais contemporizações com tipos como ele.
Agora, é preciso ter uma liderança capaz, e não tenho a certeza de que neste momento a Europa tenha uma liderança capaz. Ou mudamos isso ou amanhã somos todos súbditos de Putin.
"Nós europeus precisamos de ter objectivos e de ter definidos os nossos interesses de forma muito clara. E normalmente não temos"
Uma das promessas de Trump é aumentar as tarifas aduaneiras?
Trump pode ter uma forma incisiva, mais vocal, mas a administração Biden também teve políticas proteccionistas, todas as administrações americanas tiveram sempre que lhes convinha, voltamos ao Buy American Act, Os europeus é que são uns tolos, que foram naquela conversa do chamado free trade [comércio livre], que não é nem free [livre] nem fair [justo].
Uma vez mais, nós europeus precisamos de ter objectivos e de ter definidos os nossos interesses de forma muito clara. E normalmente não temos.
"Precisamos de liderança europeia esclarecida, que vá à luta, seja com os chineses, seja com americanos"
Trump fala no aumento das tarifas aduaneiras, que, evidentemente, é completamente absurdo quando temos um processo de comércio globalizado, de interdependência, não só a nível transatlântico, mas a nível global, com a China e outros. Evidente que esse tipo de políticas proteccionistas não vai funcionar. Precisamos de um sistema que dê ganhos a uns e outros e que seja gerível de acordo com regras, ou não vão funcionar a favor de ninguém, vai agravar tudo e causar miséria e recessão para todos.
A Europa tem de ter bom senso, não pode ir atrás dos Estados Unidos para tudo e para nada, não pode comprar a lógica do free trade quando, por exemplo, tem a nível europeu um país, que é a Alemanha, que estava completamente alinhado com uma lógica mercantilista, porque tinha o privilégio de ter não só fornecedores baratíssimos, como era a Rússia no petróleo e no gás, como mercados privilegiados, como a China, em detrimento de outros países europeus, porque aceitavam essa conversa oca e estúpida do free trade em seu próprio detrimento. Todos têm de ser ganhadores, ou ninguém ganha.
Por isso, precisamos de liderança europeia esclarecida, que vá à luta, seja com os chineses, seja com americanos, exigindo uma base de reciprocidade. Os Estados Unidos aplicam tarifas de 20%? Ok, nós aplicamos tarifas de 20% também.
E temos o fenómeno BRICS.
Estamos numa época de mudança da ordem internacional, designadamente no plano económico. O fenómeno BRICS não pode ser desvalorizado, sobretudo quando tem a amplitude que está a ter, por razões diversas.
O que neste momento é central para os BRICS não é que vão fazer uma moeda única, como o euro, não é nada disso que está em causa. O que já estão a fazer é a arranjar um sistema de pagamentos que ultrapasse os Estados Unidos, o sistema americano. Um sistema de pagamentos que permita que as trocas entre eles dispense os Estados Unidos e não fique dependente do tipo de sanções que os EUA podem impor. Isso já está a acontecer.
Não podemos estar agarrados aos velhos modelos do passado, que não funcionaram ou funcionaram em grande benefício de uns e em detrimento de outros. A globalização, que é inevitável e que não pode ser demonizada, tem de ser regulada, é por isso que precisamos de governos e de Estados capazes, para identificarem o que são os nossos interesses e para negociarem, para encontrarem soluções pacíficas para a resolução dos conflitos.
Penso que precisamos absolutamente de uma Europa reguladora. Agora mais do que nunca, que os Estados Unidos vão entrar em total regabofe, na área das plataformas tecnológicas, que foram tão instrumentais neste processo de desinformação - o que também explica os resultados de Trump.
Isto é muito culpa dos democratas americanos, que recusaram sempre a regulação, porque, no fundo, estavam capturados pelos interesses financeiros, em particular da Califórnia, de Silicon Valley. Essas empresas de Silicon Valley, agora, puseram-se todas atrás de Trump, porque não querem pagar impostos e porque não querem regulação e porque quererem e têm projectos não de democracia, mas de distopia, como é o projecto de Elon Musk, por exemplo.
Trump está refém de Elon Musk?
Num primeiro momento sim, mas não excluo que rapidamente, depois de estar na Casa Branca, voltemos a ver aquilo que vimos antes, que é conflitos de Trump com os seus próprios colaboradores. Muitos deles vêm agora denunciá-lo como fascista. Ele vai ter imensos conflitos. E não excluo que os principais conflitos, não sei quando eclodirão, serão com Elon Musk e com o vice-presidente J.D. Vance, que é uma versão muito mais sofisticada do oportunismo e do popularismo de Trump e que está ali ao serviço de interesses dos grandes empresários tecnológicos.
Portanto, acho que isso vai ser muito provável, ver este conflitos eclodir. Até porque Trump é hoje um homem diminuído em termos cognitivos relativamente ao que era e já era mau e fraco antes. Por isso, mais do que nunca a Europa precisa de ser forte e de identificar a regulação também como um aspecto essencial. Se a Europa regular a nível europeu, isso tem um impacto a nível global. Se puder fazê-lo também com os Estados Unidos, muito bem, mas duvido que se possa fazer em articulação com uma administração Trump.
O que é que aconteceu com o RGPD [Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados]? Foi uma regulação europeia que estabeleceu um padrão ao nível global. Os americanos acabaram por admitir que é indispensável e estão a vir atrás, de alguma maneira. A Europa tem de se chegar à frente e fazer o trabalho que os Estados Unidos não estão a fazer e menos farão com uma administração Trump.
Com a maioria no Senado, o controlo do Supremo Tribunal, os checks and balances estão comprometidos?
"Não excluo que os principais conflitos de Trump serão com Elon Musk e com o vi-presidente J.D. Vance"
Não sabemos o que se vai passar na Casa dos Representantes, mas o facto de a administração Trump ter um Supremo Tribunal de Justiça que controla, ter um Senado que controla é mais de meio caminho andado para os checks and balances não funcionarem. Imagino que possa haver o último reduto, a Casa dos Representantes, mas se também ficar na mão dos republicanos, vai ser muito mais difícil o trabalhos dos democratas que vão resistir nesta linha que Kamala acabou de anunciar [no discurso de derrota].
Isso é mau para a democracia americana, evidentemente, mas os eleitores americanos terão o que merecem, sem dúvida nenhuma. E é mau para a democracia no mundo, porque, obviamente, só vai encorajar os autocratas, os ditadores por todo o mundo.
A democracia só é boa quando é a nossa, quando tem os resultados que nós queremos?
Pois, é preciso ver que a democracia nunca é só eleições, a democracia é o respeito pela liberdade de imprensa, de informação, pela liberdade de expressão. E suponho que os checks and balances não funcionam quando estão todos na mão de um partido que não se ensaia nada em ter uma actuação totalitária - foi Trump quem disse inclusivamente que não era preciso mais eleições se votassem desta vez, foi ele que disse que tinha listas, que se ia vingar, não fui eu que inventei.
"Os democratas fizeram montes de erros. O pior erro é a Palestina"
Kamala Harris perdeu agora, como Hillary Clinton perdeu no passado. Foi pelas ideia, pela forma ou por ser mulheres? Os Estados Unidos estão preparados para ter um mulher na presidência?
Claro que não estão. Não tenho dúvida nenhuma que aqui dominou o efeito patriarcal, que foi muito disseminado através das redes sociais, com aquelas figuras defensoras do anti-feminismo tóxico, com complexos de masculinidade, com complexos de inferioridade, que sublinham isso de uma forma completamente incapaz de aceitar uma mulher na presidência, ainda por cima mulher e negra. Não tenho dúvida que esse foi um aspectos que funcionou e que fez muito jovens machos, de todas as cores, incluindo negros, votarem Trump.
Ela [Kamala Harris] fez muito bem a campanha, nas condições extremamente difíceis em que teve de a fazer, com muito pouco tempo. E vai ter um grande futuro, é sem dúvida a figura de referência do Partido Democrata.
Os democratas não tiveram tempo de se organizar, não tinham tido já a experiência de Trump?
Com certeza, os democratas fizeram montes de erros. Para mim, o pior erro dos democratas é a Palestina. Agora, a única pessoa que vejo com capacidade de pegar nos cacos dos democratas é Kamala.
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