O livro “Morte à PIDE!”, publicado este mês, está composto por duas partes. Na primeira, o dia 25 de Abril, os dias seguintes e as perseguições aos 'pides' procurando encontrar, segundo o autor, as diferentes vozes de que é feita “uma revolução vivida”. Na segunda parte, debruça-se sobre a “justiça feita ou não feita” aos antigos funcionários da antiga PIDE/DGS, incluindo os trabalhos da Comissão de Extinção da ex-polícia política do Estado Novo.
“Devemos proceder ao levantamento do 25 de Abril, desapaixonado, e perceber que o golpe é feito por um conjunto de capitães mas que, logo no próprio dia, precisam de generais, e os generais tinham a consciência, sobretudo Costa Gomes, da necessidade de manter a DGS [Direção-Geral de Segurança, designação da PIDE desde 1969] ou pelo menos uma estrutura de informações para apoio ao esforço de guerra, porque um dos mitos que existem é a de que a Guerra Colonial terminou no dia 25 de Abril, o que não é verdade”, disse à Lusa o historiador António Araújo.
Por isso, no livro “Morte à PIDE!”, o historiador propõe, entre outros aspetos, a discussão sobre a ausência de um plano sobre a polícia política, no quadro golpe de Estado de 1974, e as dificuldades no processo de extinção do corpo, no contexto revolucionário.
O historiador refere o “Relatório das Sevícias”, nome por que ficou conhecido o "Relatório da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares", e que viria a ser publicado pela Presidência da República (general Ramalho Eanes), em novembro de 1976, assim como expõe os pontos essenciais de um documento da Cruz Vermelha, inédito, sobre a forma de tratamento dos ex-agentes da PIDE/DGS, nos anos que se seguem à revolução.
“Procuro não sobrevalorizar o ‘Relatório das Sevícias’, mas utilizá-lo para ilustrar o facto de juristas independentes e democratas como Francisco Sousa Tavares ou Ângelo Almeida Ribeiro terem descoberto uma série de atropelos às regras elementares do Estado de Direito. Não me interessa fazer qualquer juízo sobre a revolução, nem é isso que está em causa, mas sim mostrar que houve problemas na efetivação do Estado de Direito no pós-25 de Abril, e esses problemas tiraram alguma legitimidade para que os agentes da PIDE fossem julgados de uma forma exemplar”, afirma.
O historiador nota que têm surgido recentemente alguns trabalhos “sobre aquilo que só pode ser escondido por envolvimento ideológico”, e que se referem a factos ocorridos a seguir ao 25 de Abril, como prisões sem culpa formada e outros atos atentatórios dos Direitos Humanos.
“Nada disto significa fazer um juízo de valor sobre a revolução ou sobre o processo revolucionário. O que não podemos aceitar é esconder factos que são históricos e que foram anotados na altura por instituições como a Cruz Vermelha [documento cedido para a presente edição pela historiadora Filipa Raimundo] ou por personalidades independentes como Francisco Sousa Tavares ou Almeida Ribeiro sobre terem existido factos atentatórios dos Direitos Humanos como aconteceu com os ex-agentes da PIDE/DGS que estiveram presos muito tempo, um ano ou mais, sem uma acusação”, frisa António Araújo.
Para o historiador, o facto de a PIDE/DGS ter sido uma “polícia torcionária e bárbara” não legitima os comportamentos que se verificaram após o Golpe de Estado e que, “de certa forma”, retira a legitimidade sobre a realização de julgamentos.
Segundo o historiador, o processo de julgamento dos agentes da PIDE/DGS acompanha as “vicissitudes” do processo revolucionário e, sobretudo a seguir ao 25 de novembro de 1975, a ideia sobre “alguma reconciliação nacional”.
Torna-se quase contraditório e “caricato”, afirma, que, por um lado, os principais responsáveis políticos do antigo regime - como o antigo Presidente da República Américo Thomaz, o ex-presidente do Conselho Marcello Caetano e outros ministros - tivessem saído para o Brasil, e que apenas as estruturas intermédias da PIDE/DGS fossem julgadas, quando os máximos dirigentes políticos tivessem sido poupados.
“Mais tarde o general Ramalho Eanes faz um apelo ao regresso e, portanto, toda essa ideia de reconciliação pós-revolucionária também inibiu muito a reabertura de cicatrizes de um ‘pretérito imperfeito’ que era o passado da ditadura”, refere sublinhando o contexto político da época.
A conturbação do processo revolucionário, em que havia riscos de golpe de Estado e guerra civil, nacionalizações, reforma agrária, ocupações, cerco à Assembleia Constituinte, fez com que o julgamento dos ex-agentes da PIDE/DGS não fosse uma prioridade nacional.
“É verdade que se vivia um clima de Guerra Fria e, não estando sedimentados conceitos de Justiça Universal, Justiça Histórica, [embora já tivesse] havido os julgamentos de Nuremberga [1945/1946] e Tóquio [1946/1949], [não havia nada] que se parecesse com o Tribunal Penal Internacional, nos anos 1990”, considera o historiador.
“Houve muito a ideia de se tratar os ex-agentes da PIDE/DGS como eventuais criminosos, em que estavam previstas grandes penas. Foi feita legislação nesse sentido, mas não havia a ideia de Justiça Histórica como hoje temos", afirmou, sublinhando que, também neste aspeto, é preciso enquadrar os acontecimentos à luz da época.
“Havia legislação criminal sob a qual muitos agentes foram julgados e condenados, e muitos cumpriram penas que a nós nos podem parecer relativamente curtas, mas temos de nos situar no contexto da época e tomarmos em conta o facto de os altos dirigentes do regime não terem sido julgados, e de muitos dirigentes da PIDE/DGS terem fugido”, diz o historiador à Lusa, referindo-se à misteriosa fuga dos agentes presos no Porto, logo a seguir ao 25 de Abril.
“É um dos mistérios do 25 de Abril. No Porto a força comandada por Carlos Azeredo ocupa a sede da DGS e depois civis como Virgínia Moura [PCP] entram nas instalações. Dezenas de ‘pides’ são colocados em camiões militares e, a dada altura do percurso, são autorizados a fugir dezenas de funcionários da PIDE, inclusivamente António Rosa Casaco [inspetor envolvido no assassinato de Humberto Delgado], que diz ter sido ele o autor da ideia. Para mim é muito pouco credível”, recorda António Araújo.
António Araújo destaca bloqueios do PS e PCP no desmantelamento da PIDE
O PCP e o PS usaram a memória da PIDE como peças de um jogo político, dificultando o trabalho da Comissão da Extinção da polícia política portuguesa, disse à Lusa o historiador António Araújo, autor do livro “Morte à PIDE!”.
“Não podemos esquecer que a memória da PIDE/DGS se torna numa peça de um jogo político entre o Partido Socialista e as forças mais à direita, e o Partido Comunista Português: o PCP a reclamar o monopólio da oposição à ditadura, o PS a não querer que se soubesse que havia nuances na ação da PIDE/DGS, e que os seus militantes não tinham sido alvo de espancamentos e torturas” sistemáticos, disse à Lusa o historiador António Araújo.
António Araújo recorda que, tal como já foi referido pelo coronel Rodrigo de Sousa e Castro, então presidente da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, o PCP deu ordens aos militantes para não prestarem depoimentos à comissão, significando que os acusadores não tinham testemunhas.
“Uma vez que os comunistas tinham uma posição quase hegemónica na oposição à ditadura, não havia testemunhos que pudessem atestar sobre os males sofridos. A esse nível o trabalho foi muito dificultado porque é o mesmo que pensar, hoje em dia, que o Ministério Público acusa alguém e depois as testemunhas se recusam a falar”, diz António Araújo.
O historiador sublinha que o PCP alegou na altura, pela voz do então secretário-geral Álvaro Cunhal, que os militantes já tinham sofrido às mãos da PIDE/DGS e “não tinham que sofrer duas vezes”.
Segundo o historiador, o PCP não queria afastar-se da “lógica” do próprio partido sobre a “narrativa do passado ditatorial”, e que escapava ao seu controlo ao passar para os tribunais essa mesma narrativa.
“Por outro lado, a abertura de grandes processos poderia revelar, como eu refiro no livro, factos do passado autoritário que, por um lado, eram questões relacionados ‘sobre quem falou e sobre quem não falou na PIDE/DGS’, e que sempre marcaram muito o PCP”, defende, acrescentando os aspetos que diferenciavam os comunistas de outras figuras da oposição.
Para o historiador, esses processos podiam mostrar que havia uma grande seletividade social na ação da PIDE/DGS, em que os advogados oposicionistas da baixa lisboeta, ou mesmo fações ligadas aos republicanos e aos socialistas, não eram alvo de torturas sistemáticas como acontecia com os militantes do PCP e, mais tarde, com estudantes ou suspeitos de integrarem grupos de luta armada.
“Havia uma seletividade social e até ideológica na ação da PIDE/DGS e isso não interessava às forças políticas do pós-25 de Abril: que a fachada da oposição ao regime fosse completamente posta em causa e que se começasse a ver que havia várias nuances na ação e no trabalho da polícia política e na tortura”, referiu.
Por outro lado, o livro trata das questões relacionadas com o golpe militar, cujo plano não previu a neutralização da sede da polícia política, em Lisboa, talvez pela indefinição quanto à continuação do conflito nas colónias.
“O destino da Guerra Colonial, quando se dá o golpe de Estado, não está definido, e havia a necessidade de manter o esforço de guerra ou pelo menos de contenção de tropas e de proteção de tropas nos territórios africanos. Sendo assim, [o general] Costa Gomes manteve a ideia de manutenção de uma estrutura de informações nas colónias”, defende António Araújo, que considera igualmente as relações entre os militares e os serviços de informações no contexto da guerra.
“Havia também uma série de cumplicidades e laços entre os militares, que combatiam na Guerra Colonial, e as estruturas de informação da PIDE/DGS, nos teatros de guerra”, diz.
No livro, o autor escreve que, mesmo no dia 25 de Abril, “no dia inicial inteiro e limpo”, o destino da PIDE/DGS não foi isento de problemas e que, “aparentemente”, terá havido, da parte dos principais estrategas do golpe, um erro de cálculo ou de planeamento ao não eleger a sede da polícia política como alvo, onde os disparos dos agentes causaram a morte a quatro civis.
Em síntese, para o historiador, houve um Golpe Militar, o estratega foi Otelo Saraiva de Carvalho e o grande operacional foi Salgueiro Maia e, logo a seguir, desencadeou-se um movimento popular nas ruas de Lisboa e também do Porto, que decorre de uma forma inorgânica e muito espontânea, muitas vezes com traços de alguma violência.
“Nada disso significa manchar o 25 de Abril – é uma revolução e é natural que isso tenha ocorrido: que populares tenham ‘caçado’ e agredido agentes da PIDE. É natural que se tenha invadido as instalações da Censura e também outros movimentos de cariz menos político, como a tentativa de assaltos a supermercados, lojas e partir montras”, recorda.
O livro “Morte à PIDE! – A Queda da Polícia Política do Estado Novo”, de António Araújo (Tinta da China, 204 páginas), chegou às livrarias este mês, mas vai ser apresentado pelo autor no próximo mês de setembro.
António Araújo, jurista e historiador, mestre em Ciências Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e doutorado em História Contemporânea pela Universidade Católica Portuguesa, é também o autor de "Matar o Salazar - O Atentado de Julho de 1937", que aborda os mecanismos iniciais da ditadura do Estado Novo e analisa a situação do oposicionismo, à época.
*Pedro Sousa Pereira, da agência Lusa
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