Antes de 2014, a Azovstal era principalmente conhecida por ser uma das maiores siderúrgicas da Europa, sendo capaz de produzir 4.3 milhões de toneladas de aço por ano. No entanto, se nesse ano o complexo industrial foi usado pelos seus trabalhadores para se protegerem dos ataques dos separatistas aquando do início da Guerra do Donbass, agora volta a ter um papel fulcral na invasão russa da Ucrânia.

Situada no mar de Azov, Mariupol é um dos principais objetivos dos russos no esforço para obter controlo total da região de Donbass e formar um corredor terrestre, no leste da Ucrânia, a partir da península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014.

No entanto, aquilo que impede os russos de anunciarem o controlo total de Mariupol é este enorme complexo fabril, de 10 quilómetros quadrados, composto por portas de aço, grossas paredes de betão desenhadas para aguentar altas temperaturas, fornos de carvão e zonas de segurança reforçadas no subsolo, ligadas por uma extensa rede de túneis, caminhos de ferro e outros sistemas de comunicação. É aquilo que Yan Gagin, conselheiro das forças separatistas pró-russas de Donetsk, descreve como “uma cidade sob uma cidade”, desenhada para aguentar uma guerra nuclear.

É, sem surpresa, o local ideal para as forças ucranianas que permanecem em Mariupol fazerem a derradeira defesa da cidade, dada a visibilidade reduzida para os atacantes e a facilidade de fazer emboscadas nas suas labirínticas secções, além da dificuldade dos bombardeamentos penetrarem as densas camadas que revestem o complexo. “Não é possível bombardeá-la, é preciso limpá-la por baixo. Isso levará tempo", admitiu na semana passada Eduard Basurin, um dos representantes dos separatistas de Donetsk.

Criada pela União Soviética nos anos 30, a gigante fábrica foi reconstruída após a ocupação nazi de Mariupol entre 1941 e 1943. A natureza de guerrilha que o espaço proporciona tem merecido comparações com os intensos combates na fábrica de aço "Outubro Vermelho" e na fábrica de tratores de Volgogrado durante a famosa Batalha de Stalingrado (1942-1943) que decorreu na Segunda Guerra Mundial. Defendendo estes complexos, os soviéticos usaram as redes de túneis e esgotos para flanquear os atacantes nazis.

Todavia, não obstante as vantagens táticas, a defesa da Azovstal está a tornar-se cada vez mais difícil. O jornal The New York Times conseguiu contactar alguns dos defensores através de uma videochamada de WhatsApp. “Estamos cercados, estão a bombardear-nos com tudo o que têm. O nosso único plano é que as nossas forças quebrem o cerco para nós fugirmos daqui”, disse um soldado que dá pelo nome de Gasim, pedindo aos repórteres do NYT: “Digam à América para ajudar-nos”.

Os relatos divergem, mas ao todo estarão entre 1.000 e 2.000 civis escondidos na Azovstal, mantida pelas poucas forças ucranianas que restam em Mariupol — onde se incluem a 36.ª brigada de infantaria da Marinha e elementos do Batalhão Azov, unidade de pendor nacionalista de extrema-direita. A maioria são crianças, mulheres e idosos, além de trabalhadores da fábrica que nela se refugiaram. 

Já do lado russo, um comandante militar dos separatistas de Donetsk, Eduard Bassurin, afirmou na televisão russa que nenhum civil estava na zona industrial. A 11 de abril, quando declarou o controlo da zona portuária de Mariupol, o chefe da autoproclamada República Popular de Donetsk, Denis Pushilin, disse que milhares de soldados ucranianos ainda combatiam em Azovstal. “O número referido nos nossos relatórios refere-se entre 1.500 e 3.000 pessoas”, afirmou.

Isolados dentro da Azovstal — não só os soldados são incapazes de sair devido aos constantes bombardeamentos e tiros de artilharia, como Mariupol está totalmente bloqueada —, os resistentes estão a ficar sem munições e sem mantimentos para alimentar soldados e civis, apesar dos preparativos mantidos desde 2014.

De acordo com uma porta-voz da Metinvest — a empresa que detém a fábrica que pertence a Rinat Akhmetov, o homem mais rico da Ucrânia e dono do clube de futebol Shaktar Donetsk — “desde a primeira invasão que se manteve os bunkers em bom estado e abastecidos de comida e água”. Com espaço para até 4.000 pessoas e com mantimentos para três semanas, a Azovstal, em teoria, teria capacidade para aguentar mais tempo. No entanto, a representante disse ao NYT que há civis alojados nas suas instalações desde o início do cerco a Mariupol, há sete semanas. O exército ucraniano tentou levar a cabo duas operações para fornecer munições e víveres àqueles assolados no complexo, mas não é possível apurar se tiveram sucesso.

Os riscos, neste momento, são vários: tanto os refugiados dentro da Azovstal podem ser forçados a sair por falta de mantimentos ou se a Rússia optar por um ataque químico — algo que reiteradamente recusa —, como podem ficar encurralados nas zonas subterrâneas em caso da estrutura colapsar. Os serviços secretos ucranianos adiantam que as forças russas estão a considerar usar bombas de três toneladas para obliterar o complexo e que Moscovo “não irá hesitar pelo facto de haver civis no local”.

Também aqui, porém, tem havido uma guerra de propaganda. Nos últimos dias, a Rússia tem feito sucessivos ultimatos para forçar a rendição dos resistentes, sendo que o último foi emitido esta manhã. "Apesar da total irresponsabilidade dos oficiais do regime de Kiev, para salvar os seus militares, as forças armadas russas, guiadas por princípios puramente humanos, voltam a oferecer combatentes dos batalhões nacionalistas e mercenários para cessarem os combates e pousarem as armas às 14:00 horas locais [12:00 em Lisboa]", disse o responsável pelo Centro Nacional de Controlo da Defesa russo, o coronel-general Mikhail Mizintsev.

A Rússia alega que os soldados ucranianos recusam-se a depor as armas por medo de represálias, já que “exigem persistentemente a autorização oficial de Kiev para se renderem, mas em resposta recebem ameaças de execução” e que o governo ucraniano continua “a enganar o seu próprio povo, convencendo-o da alegada ausência de capacidades de evacuação".

No entanto, os soldados que falaram com o NYT disseram que, apesar da situação desesperada em que se encontram, se recusam a capitular perante os russos. As notícias da suposta rendição de defensores ucranianos também tem sido alvo de versões contraditórias. Se Moscovo anunciou a 14 de abril que 1.160 militares ucranianos já tinham deposto "voluntariamente" as suas armas em Mariupol, a Ucrânia apenas confirmou que "alguns" dos militares foram "capturados" pelos russos e, embora não tenha revelado o número de soldados feitos prisioneiros, foi afirmado que eram “muito menos de mil”.

As tentativas de, pelo menos, garantir a retirada dos civis sitiados em Azovstal têm saído goradas, com o estabelecimento de corredores humanitários a falhar sucessivamente por falta de acordo entre as partes. No entanto, esta manhã, a vice-primeira-ministra ucraniana, Iryna Verechtchuk, confirmou que Kiev e Moscovo chegaram a um ”acordo preliminar” para formar um corredor humanitário “para mulheres, crianças e idosos”.

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