De acordo com a acusação, a que a Lusa teve acesso, é forçosa a conclusão indiciária de que ocorreu a instrumentalização da rede comercial do grupo BES, para a apresentação de ativos tóxicos a clientes, e que assim foi capturada por um grupo de sujeitos que se congregou para a prática de ilícitos, e cujo sucesso dos seus atos assentava na boa reputação construída com o caráter secreto das várias dimensões dos seus comportamentos criminosos”, alegou o MP.
Segundo o documento, depois de alterações legais, que obrigaram ao desinvestimento dos Fundos ESAF, foi tomada “a decisão de fazer bascular para os clientes de retalho a dívida que havia sido adquirida até então pelos Fundos ESAF, e uma vez que a rede comercial do grupo BES, mormente a institucional, estava saturada, sem condições de absorver os volumes de dívida que a ESI [Espírito Santo International] não conseguia recomprar”, lê-se no documento. Esta ‘holding’ do BES estava, de acordo com o MP, insolvente desde 2009, e em 2013 tinha capitais próprios negativos de 2,7 mil milhões de euros.
Assim, e com o apoio do BESI, “precipitou-se em meses a conceção de programas de papel comercial que inundaram a rede comercial do BES em apenas dois meses e meio (setembro ao final de novembro de 2013)”, defende o MP.
O produto foi uma estratégia de Amílcar Pires, alega o MP, antigo administrador do BES e que foi constituído arguido no âmbito do processo e estiveram ainda envolvidos os também arguidos Isabel Almeida, Francisco Machado da Cruz e José Castella (entretanto falecido).
O produto foi apresentado, lê-se no documento, “com taxas de juros inigualáveis por comparação aos outros produtos de poupança, incluindo depósitos a prazo; produtos de subscrição curta; indução, por tudo isto, de uma perceção de risco inexistente”.
“Com argumentário preparado sob a responsabilidade de Amílcar Pires esta solução permitia explicar aos clientes que teriam que desinvestir nos Fundos ESAF por razões regulamentares, mas que ainda assim manteriam níveis de rendimento similares nas suas poupanças”, alega o Ministério Público.
Em dias, o DGP (Departamento de Gestão da Poupança) e o 'marketing' “colocaram em marcha a colocação de papel comercial ESI e RIOFORTE (cujas contas omitiam a exposição desta entidade ao grupo ESI, insolvente, em valores ascendentes a 900 milhões de euros, tornando-a patrimonialmente, também insustentável)”, defendeu o MP.
Os administradores e responsáveis das redes de retalho disseram, no âmbito do processo, que desconheciam a situação do grupo na altura em que começaram a vender estes instrumentos.
“João Mello Franco, com assento em comités transversais, e com responsabilidade no marketing, afirmou que toda a estrutura confiou na bondade dos documentos que foram juntos aos programas de emissão de dívida GES. Foi mesmo um dos lesados, vindo a apresentar reclamação no Fundo PATRIS criado para o apoio aos lesados do papel comercial”, exemplifica o MP.
Na acusação, o MP deu ainda o exemplo de Mafalda Dutschke, responsável pela articulação da rede ‘private’ com o DGP, que “afirmou que o papel comercial foi reservado para os melhores clientes. Era ‘um rebuçado’ que era dado, pelo juro que pagava, prazos curtos de investimento e a associação ao nome Espírito Santo, com as credenciais do BES. Declarou ser inimaginável o que se veio a perceber mais tarde”, lê-se na acusação.
Depois de recolher depoimentos de vários gestores e responsáveis da rede do banco, o MP sublinha “o caráter inconcebível [para estes profissionais, nessa altura] de que os responsáveis do BES pudessem estar a usar a rede comercial para contaminar as posições dos clientes, com papel de entidades insolventes”.
Os gestores negaram ainda “ter realizado investimentos à revelia da vontade dos clientes queixosos e que “tivessem sofrido pressões adicionais para a colocação de produtos que se venderam naturalmente pela atratividade intrínseca ao juro e à reputação Espírito Santo”, dando ainda conta da existência de uma relação de confiança com os clientes, que permitiu acelerar a colocação destes instrumentos.
“Afirmaram que, se soubessem que a ESI tinha contas falsificadas ou que estava insolvente, não teriam, obviamente, vendido dívida aos clientes que acompanhavam, alguns dos quais amigos pessoais e familiares que se tiveram que concertar numa ‘pool’ para poderem subscrever o valor mínimo de entrada no produto, muito acima dos valores normais para retalho”, indica o Ministério Público.
“Aliás, um dos fatores de sucesso da rede comercial do BES e do sentimento de confiança dos seus clientes foi consequência das visitas anuais de Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo [ambos arguidos] às 35 direções regionais, onde recebiam e conversavam com uma média de 400 clientes por direção regional, fazendo fé nas declarações do próprio prestadas em sede de conselho “superior”, no dia 07.11.2013”, revelou o MP.
A acusação decidiu por isso, parcialmente, pelo “arquivamento dos autos, abrangendo todas as denúncias apresentadas contra gestores, e respetivas direções intermédias, no contexto da subscrição de dívida GES, aos balcões de entidades do Grupo BES, por clientes de retalho e private”.
O ex-presidente do BES Ricardo Salgado foi na terça-feira acusado de 65 crimes, incluindo associação criminosa, corrupção ativa no setor privado, burla qualificada, branqueamento de capitais e fraude fiscal, no processo BES/GES.
Segundo a acusação, Ricardo Salgado foi acusado de um crime de associação criminosa, em coautoria com outros 11 arguidos, incluindo os antigos administradores do BES Amílcar Pires e Isabel Almeida.
Está também acusado da autoria de 12 crimes de corrupção ativa no setor privado e de 29 crimes de burla qualificada, em coautoria com outros arguidos, entre os quais José Manuel Espírito Santo e Francisco Machado da Cruz.
A defesa de Ricardo Salgado considera que a acusação "falsifica" a história do BES sublinhando que o antigo banqueiro "não praticou qualquer crime", refere um comunicado assinado pelos advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce.
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