A 7 de agosto de 2006, Lula da Silva, na altura presidente, aprovou a lei Maria da Penha, que entrou em vigor a 22 de setembro do mesmo ano. A mulher que deu nome à lei, Maria da Penha Maia Fernandes, sofreu em 1983 dois atentados pelo próprio marido: um tiro nas costas e uma tentativa de eletrocussão. Durante 15 anos lutou para conseguir resolver o processo, sendo para isso necessário denunciar o país ao Centro de Justiça, ao Direito Internacional, ao Comité Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher e à Comissão Internacional de Direitos Humanos. Assim, fez-se ouvir e deu voz a todas as mulheres brasileiras.
Embora haja um encorajamento para que as mulheres — e toda a sociedade — denunciem os agressores e exijam que a lei se cumpra, tal ainda não acontece em todos os casos. 12 anos passaram e o Brasil continua a testemunhar casos de violência contra as mulheres. De acordo com o Estadão, isto deve-se em parte ao facto de a sociedade não ter sido “educada a encarar a violência doméstica e familiar como um problema familiar e como um problema social e, principalmente, como um ato criminoso”.
No caso concreto da Lei Maria da Penha, são também referidas a violência patrimonial, sexual, física, moral e psicológica como integrantes da violência doméstica e familiar. Segundo o documento, “toda [a] mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar [a] sua saúde física e mental e [o] seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”. Por isso, devem ser asseguradas à mulher “as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte [desporto], ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.
Segundo o relatório “Visível e invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil” (2017), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “para 73% da população brasileira a violência contra a mulher aumentou nos últimos 10 anos. Entre as mulheres, essa perceção eleva-se para 76% e, entre aquelas que foram vítimas de algum tipo de violência nos últimos doze meses, para 79%”.
No que diz respeito a casos diretos de violência, apenas “29% das mulheres reportaram ter sofrido ao menos algum dos tipos elencados”, sendo referida a violência física, verbal ou sexual. É também adiantado que “a vitimização sobressai entre as [mulheres] mais jovens, sobretudo as de 16 a 24 anos, cuja taxa chega a 45%, assim como entre as mulheres negras (31%) em relação às brancas (25%). E as solteiras são mais vitimadas do que as casadas”, lê-se.
Quanto ao agressor, “verifica-se que na maioria são pessoas conhecidas da vítima (61%)”, numa faixa etária entre os 35 e os 44 anos (77%).
Este relatório conclui ainda que “na maioria dos casos as mulheres não tomam atitude frente à violência sofrida, visto que 52% reportaram que não fizeram nada”, embora a gravidade do problema no país seja percetível pelos números.
Para apoiar as vítimas, foi criada em 2005 no Brasil a linha Ligue 180, pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, para servir de canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país. A ligação é gratuita e a porta principal de acesso aos serviços que integram a rede nacional para enfrentar a violência contra a mulher, sob amparo da Lei Maria da Penha.
No que diz respeito ao feminicídio — “crime contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” —, foi aprovada a 9 de março de 2015 por Dilma Rousseff a lei nº 13.104, que “alterou o código penal e qualificou o feminicídio como crime hediondo no Brasil”.
Segundo o documento, a lei “foi criada a partir de uma recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM)", que investigou a violência contra as mulheres entre março de 2012 e julho de 2013, tendo também a Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW) da ONU recomendado aos estados brasileiros que “reforçassem a legislação nacional para punir assassinatos violentos de mulheres e meninas em razão do género”. Em 2016, a ONU revelou que a taxa de feminicídios no Brasil era a quinta maior do mundo. Dados posteriores apontam um número de oito homicídios de mulheres por dia entre março de 2016 a março de 2017.
Na lei, a definição do crime inclui “a violência doméstica e familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, sendo também ampliadas as penas relativas ao crime estipuladas pelo Código Penal.
Para definir esta punição, a lei determina que sejam considerados alguns fatores, como “a faixa etária da vítima, o facto de estar grávida ou ter tido bebé recentemente – caso o crime ocorra nos três meses posteriores ao parto –, a presença de descendentes ou ascendentes no momento do crime e condições de saúde, para as vítimas com deficiência”. Caso alguma destas circunstâncias seja verificada, a pena do feminicídio é aumentada.
O caso de Tatiane Spitzner
Segundo o G1, o conflito entre Tatiane Spitzner e o marido teve início a 21 de julho, noite do aniversário de Luis Felipe Manvailer, celebrado com amigos e familiares até à madrugada de dia 22. Estavam casados desde 2013, mas Tatiane terá dito nessa noite que queria o divórcio.
As câmaras de videovigilância do prédio onde moravam registaram vários momentos, desde a chegada do casal de carro ao momento da queda da varanda. Antes de as imagens serem divulgadas, o responsável pela investigação, Bruno Miranda Maciozeki, tinha já referido que estas registam “agressões brutais e cruéis contra a vítima”.
Dentro do carro, vê-se que o marido agride Tatiane, continuando a fazê-lo quando saem do carro. No parque de estacionamento continuam as agressões e Tatiane corre para tentar fugir pelo elevador. Todavia, Luis Felipe agarra-a e consegue entrar com ela, impedindo-a de sair quando esta tenta escapar novamente.
Já no quarto andar, as imagens mostram Tatiane caída no corredor, sendo novamente agredida pelo marido antes de entrarem no apartamento. Segundo a polícia, foram depois ouvidos gritos vindos do interior. Mais tarde — cerca de 15 minutos depois — as câmaras registam a mulher a cair da varanda. A polícia referiu a existência de marcas no pescoço da vítima, revelando que terá sido estrangulada, havendo também quebra do pescoço. Contudo, os exames ainda não foram conclusivos quando à causa da morte, esperando-se o resultado de mais testes.
Dois vizinhos do casal prestaram depoimento e afirmam que, de madrugada, ouviram gritos de socorro e foram à janela ver o que se estava a passar, tendo visto Tatiane debruçada na varanda a chorar. Não há qualquer registo, no entanto, de que a mulher tenha sido empurrada ou de que se tenha atirado.
Testemunhas viram ainda Luis Felipe a recolher o corpo da mulher do exterior do edifício. O marido terá colocado as mãos na cabeça e questionado o porquê do sucedido. Na sequência das imagens de videovigilância é possível ver-se o homem a arrastar o corpo para o elevador, até chegar a casa, onde o depositou. Depois saiu e limpou os vestígios de sangue existentes, tendo de seguida trocado de roupa e saído no carro da vítima.
Quando a polícia se deparou com o caso emitiu um alerta de captura, tendo o homem sido encontrado e preso preventivamente depois de sofrer um acidente em São Miguel do Iguaçu, a 340 km do local do crime. Em declarações à polícia, a 23 de julho, Luis Felipe referiu ter perdido o controlo do carro por não conseguir esquecer a imagem da mulher a saltar da varanda.
Dúnia Serpa Rampazzo, procuradora do Ministério Público do Paraná, referiu que as investigações apontam para uma “relação abusiva”. É também referido que o relacionamento era exibido nas redes sociais de uma forma muito diferente da realidade. “Era uma relação de muita opressão masculina em relação à esposa, em relação à mulher nessa situação. Uma violência de género muito gritante”, refere.
A defesa da família da advogada divulgou também conversas de WhatsApp entre Tatiane e uma amiga, em que esta relata o estado da relação com o marido, dizendo ter medo dele.
O caso tem marcado os últimos dias no Brasil, tendo sido criado nas redes sociais o movimento “Todos por Tatiana Spitzner”. As páginas, a cargo da irmã de Tatiane, Luana Spitzner, pretendem incentivar a luta contra o feminicídio. Até à manhã de 14 de agosto, a página de Facebook registava mais de 44 mil likes. No Instagram, já chegou aos 123 mil seguidores. O objetivo é contar a história que levou à morte de mais uma mulher no Brasil, incentivando à denúncia de qualquer caso de violência.
Os responsáveis por feminicídio que ficam impunes no Brasil
Segundo um estudo divulgado em junho de 2018, o Brasil deixou de julgar 10.786 casos de assassínios de mulheres em 2017 porque a quantidade de casos ultrapassava a capacidade da justiça brasileira em punir os responsáveis pelos crimes.
“O volume de processos é maior que a capacidade da Justiça de julgar responsáveis pelos crimes. O ano de 2017 terminou com 10,7 mil processos de feminicídio sem solução da Justiça”, lê-se no relatório “O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha – 2018″, elaborado pelo Conselho Nacional (CNJ) de Justiça.
O estudo revelou, porém, que em 2017 os esforços dos juízes para aplicar a lei nos casos relacionados com assassínios de mulheres geraram mais sentenças relativamente ao ano anterior. Com base em informações fornecidas pelos 27 tribunais no Brasil, 4.829 sentenças relacionadas com este tipo de crime foram emitidas, mais do que os 2.887 processos julgados em 2016.
No entanto, embora o número de sentenças praticamente fosse o dobro, o estudo mostrou que persiste ainda uma lacuna notável no número de ocorrências não resolvidas.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é responsável por 40% dos crimes de feminicídio na América Latina e ocupa o sétimo lugar no mundo entre as nações onde mais mulheres são mortas em casos relacionados com a violência de género.
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