A sala do Senado, a câmara alta do Congresso, assemelha-se mais a uma arena onde os galos – ou as víboras, dependendo do ponto de vista – se digladiam sem quartel. Na verdade, poucos têm a consciência tranquila e a questão não é a justiça, ou o país, ou este o aquele partido, mas como sobreviver a este período com o menor estrago pessoal possível. Sobre mais de metade dos senadores existem suspeitas (47 em 80), baseadas em investigações e em denúncias, que os podem levar a julgamento; e só não foram ainda porque o Supremo Tribunal Federal (STF) tem de autorizar, uma vez que usufruem do chamado "foro privilegiado" – isenção de indiciamento judicial sem aval do STF.
Por exemplo, o Presidente do Senado, Renan Calheiros, contra quem pesam várias acusações baseadas em denúncias credíveis, teve um encontro com o seu amigo e Presidente interino, Michel Temer, o que levantou imediatamente comentários do senador petista Lindbergh Farias. Ao que o senador Magno Malta lembrou que ele, Lindbergh, que também está na comissão do impeachment, se encontrou várias vazes com a Presidente suspensa, Dilma. Diariamente, as trocas de acusações e até, os insultos, cruzam-se na mais alta câmara da nação. Um espectáculo que pouco faz pelo prestígio da coisa pública, seguido em directo por muitos brasileiros.
O julgamento final do impeachment começou na sessão do Senado de quinta feira, dia 25. Hoje, dia 29, Dilma Rouseff tem a oportunidade de fazer a sua derradeira defesa, em meia hora, podendo cada senador questioná-la por cinco minutos. Amanhã, dia 30, será a votação final mas, como todos podem falar dez minutos, presume-se que só terminará na madrugada de quarta.
Até ao dia 25 a contagem indicava que 48 senadores eram a favor do impeachment, mas esse número ainda não é definitivo, à medida que se vão negociando contrapartidas e desviando pressões, chantagens, etc. Contudo, a grande maioria dos analistas acha que Dilma será derrotada.
A outra questão candente, e essa até com resultados mais profundos no panorama político a longo prazo, tem a ver com a possibilidade das Procuradorias Federais nos Estados – nomeadamente a do Paraná, do Juiz Sérgio Moro, onde está a ser processada a operação Lava Jato – continuarem a ter os instrumentos necessários para julgar e condenar os delinquentes.
O instrumento mais eficaz do arsenal de que dispõem esses juízes é a famosa delação premiada, ou seja, a denúncia de outros delinquentes, compensada por uma redução de pena. De delação premiada em delação premiada, o Juiz que preside à Procuradoria de Curitiba, começou com a prisão dum simples cambista e já conseguiu penas pesadas para grandes figuras do PT e do Estado, em operações como a do "Mensalão". Quanto à Lava Jato, foi iniciada em Março de 2014 para investigar desvios e lavagem de dinheiro envolvendo a empresa estatal Petrobras. A Polícia Federal avalia em 19 mil milhões de reais (5,5 mil milhões de euros) as perdas da petrolífera com corrupção, e esta admitiu 6,2 mil milhões no ano passado.
Segundo os investigadores, as grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam luvas a directores e gerentes da empresa e a outros agentes públicos. Os delatores dizem que as comissões chegavam a 3% dos contratos. Em 17 etapas até agora, a Lava Jato já cumpriu centenas de mandados judiciais, que incluem prisões preventivas, temporárias, busca e apreensão e "condução coercitiva" (detenção). Até Julho de 2015, o Ministério Público tinha denunciado 125 pessoas.
As investigações policiais e do MPF podem resultar ou não na abertura de acções na Justiça. O juiz federal Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato na primeira instância do judiciário, tinha aceite, até o início de julho, denúncia contra 114 suspeitos. Ao todo, 24 ações penais e 5 ações civis públicas foram instauradas na Justiça Federal do Paraná.
Contudo, à medida que as investigações se alargam, surgem novos suspeitos e – o que é mais importante – suspeitos de outros partidos que não o PT. Esse alargamento da corrupção a toda a classe política e não apenas aos ligados ao Partido dos Trabalhadores corresponde à percepção que a população tem de que o roubo é generalizado, mas ao mesmo tempo retira aliados políticos ao Judiciário.
É neste quadro de enormes pressões que o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, desautorizou na semana passada uma delação premiada importantíssima, pois chegava a Lula e a políticos de várias cores. Tratava-se do empreiteiro Élio Pinheiro e, segundo corre, as suas denúncias ainda são mais contundentes do que as do empreiteiro Marcelo Odebrecht. Ora, segundo publicou a revista Veja, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli seria um dos denunciados. Tanto bastou para que Janot invalidasse a delação, o que levanta um precedente gravíssimo para o prosseguimento das investigações. Simultaneamente, o STF tem uma proposta do Ministério Publico, avalizada por mais de dois milhões de assinaturas populares, chamada "10 Medidas contra a corrupção", que está parada há semanas e que se pensa que nunca será aprovada.
Por outro lado ainda, há uma espécie de contra-proposta – embora não tenha sido apresentada como tal – no Senado para limitar os poderes dos investigadores, procuradorias e Polícia Federal, que praticamente impediria as delações premiadas. Uma das alíneas dessa proposta consiste precisamente em acabar com a delação premiada. Outra, modificar a presente lei que dá trânsito em julgado caso haja prisão efectiva na segunda instância. Sem a ameaça da prisão efectiva, podendo esperar pelo recurso ao Supremo em casa, os condenados não terão razões para fazer denúncias.
Certamente que o resultado do impeachment de Dilma terá alguns reflexos nesta guerra travada dentro do judiciário, mas é impossível saber quais. A única certeza é que o sistema que tem permitido até agora aos juízes federais dos Estados – Sérgio Moro à cabeça – combater a corrupção, está em perigo. Muitos brasileiros acham que a pressão dos corruptos sairá vencedora. Muitos mais têm esperança de que não.
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