A hora da entrevista foi sendo alterada para acomodar uma visita ao Instituto Português de Oncologia, em Lisboa, e à chegada à redação do SAPO 24 a líder do Bloco de Esquerda desabafou que não há médicos, não por falta de emprego, mas porque os concursos lançados pelo governo ficam vazios. Diz que faltam 18 mil médicos ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), sem contar com os que se vão reformar. Um dos motivos é que "o SNS paga mal", outro o numerus clausus para Medicina: "Não concordamos com o sistema de numerus clausus como está, que não corresponde nem às vocações das pessoas nem às necessidades do país". Para mudar isso, "falta mudar o sistema de avaliação, acabar com as propinas, ter residências universitárias para os alunos poderem escolher onde estudar".

Mas esta foi a conversa de corredor. Ao longo da entrevista que se seguiria, Catarina Martins, que faz hoje 46 anos, fala do programa do Bloco de Esquerda, que destaca a emergência climática, a economia para toda a gente, o pagamento da dívida interna e o investimento na igualdade e coesão, os direitos contra o conservadorismo e o preconceito e uma política externa que defenda os interesses do país.

Na última legislatura aliou-se ao PS, porque como estava "não era sustentável". A solução foi aceitar, mediante condições, um acordo à esquerda e viabilizar um governo híbrido, que conduziu Portugal nos últimos quatro anos. E estava disposta a fazer tudo outra vez.

Em 2011 o Bloco de Esquerda teve 5,17% dos votos, em 2015 quase duplicou o resultado e subiu para 10,19%. Dia 6 de outubro os eleitores vão decidir se há motivos para celebrar.

O que quer para Portugal e para os portugueses?

Bem, achamos que é preciso olhar para os grandes problemas que temos e ter resposta para eles.

Temos um país de salários muito baixos, um país muito desigual e com muita precariedade

Que grandes problemas temos?

Temos um país de salários muito baixos, um país muito desigual e com muita precariedade.

Qual é a resposta?

Tem de haver uma alteração da legislação do trabalho que proteja os salários, porque o que vemos é que só o crescimento da economia não chega. Quando a economia começou a crescer, as principais empresas do país aumentaram os ordenados dos seus administradores em 40%, mas deixaram estagnados os ordenados dos seus trabalhadores. Sabemos que para haver uma correta redistribuição da riqueza tem de haver uma legislação laboral mais forte, que valorize os salários. Não estou a falar simplesmente dos salários que o governo pode determinar por orçamento do Estado - os da Função Pública - ou do salário mínimo nacional - determinado por decreto.

Está a falar de quê mais?

Estou a falar de uma legislação laboral que, ao consagrar mais direitos, nomeadamente sobre os horários, sobre as carreiras, sobre a contratação coletiva, a forma como o trabalho evolui ao longo da vida obrigue a uma subida de salários geral no setor privado, desde logo dos salários médios, que são muito baixos. Depois há outras coisas associadas à legislação laboral, à forma como olhamos o trabalho, que têm a ver, por um lado, com questões como alterações das licenças de parentalidade ou a forma como tratamos os doentes crónicos, as pessoas com deficiência, como lhes permitimos, por um lado, os cuidados de que necessitam e, por outro, a integração no trabalho nas condições em que podem fazê-lo.

O trabalho será então uma das prioridades do Bloco de Esquerda?

O mundo do trabalho é muito importante para a democracia, porque é o mundo onde se jogam as igualdades, e isso é um problema em Portugal: a discriminação das mulheres, a precariedade... E há outra matéria, que é o acesso à reforma. Fazemos um caminho determinado para que aos 60 anos de idade, com quarenta anos de carreira contributiva, as pessoas estejam em condições de ter a sua reforma por inteiro - porque 40 anos é uma vida de trabalho, de contribuições para a Segurança Social, e porque é muito bom para a economia, permite uma substituição de gerações no trabalho, importante para a qualidade de vida e direitos de cada um e de cada uma, e para a qualificação da economia. Depois, há questões que têm a ver com a fragilidade do país.

Quando fala em trabalho, não posso deixar de lembrar a quantidade de precários que trabalham para o Estado, que é quem devia dar o exemplo...

E que estamos a combater com o PREVPAP [Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública, de 2017]. Há cerca de 100 mil precários no Estado, não só a recibos verdes, e uma parte tem a ver com as autarquias e não conseguimos fazer no Parlamento uma lei por eles, por causa da autonomia do poder local que alguns partidos evocaram, mas conseguimos uma lei que permite a integração de cerca de 30 mil pessoas. Desses, 10 mil já vincularam, faltam 20 mil e nós já denunciámos - ainda outro dia estive no IPMA [Instituto Português do Mar e da Atmosfera], e uma das áreas que está mais atrasada é a da investigação, dos laboratórios do Estado. Inaceitavelmente, o governo lançou até um despacho que não permite que se avance mais e que isto acabe nesta legislatura.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Antes de avançarmos queria perguntar-lhe: estamos melhor do que há quatro anos?

Estamos melhor do que há quatro anos, os dados são evidentes: há mais rendimento disponível, há mais emprego, que é importantíssimo, a economia está mais forte, o PIB aumentou, tudo isto são bons sinais. Mas os sinais não são coisas abstratas, depois há a vida das pessoas. Compreendemos que em Portugal, embora tenha havido uma recuperação, as pessoas continuam a fazer ginásticas incríveis para chegar ao fim do mês, e há pessoas que fazem opções terríveis na sua vida porque não têm rendimento suficiente para o que precisam.

As pessoas continuam a fazer ginásticas incríveis para chegar ao fim do mês

Falou nas fragilidades do país. Onde o vê mais frágil?

Temos serviços públicos que, tendo tido mais investimento agora do que há uns anos, estão muito frágeis. Repare, se temos cinco vidros partidos, podemos até ter deixado de partir vidros e ter colocado dois novos, mas ainda há três por substituir. Estamos a investir mais nos serviços públicos, mas depois da terrível destruição feita ainda temos muito por fazer, precisamos de investir nos serviços públicos. Reformaram-se muitos funcionários públicos, um dos problemas é a falta de pessoal. Por exemplo, as pessoas esperam muito tempo pela sua reforma: o Centro Nacional de Pensões, com aquela regra do "só entra um por cada três que saem", perdeu tanta gente que não há pessoas para fazer os cálculos das pensões.

Perguntas à queima-roupa

O que fazem ou faziam os seus pais?

O meu pai e a minha mãe são professores, neste momento estão os dois reformados. O meu pai foi professor, sobretudo no ensino secundário, mas não só; fez muitos projetos sobre vários tipos de ensino, deu aulas a pessoas muito excluídas de várias formas. A minha mãe teve experiência também no ensino secundário, depois passou para a universidade.

Quem são os seus amigos?

A maior parte dos meus amigos mais próximos são amigos que tenho há muitos anos e que mesmo distantes - até porque já estivemos separados por países e mesmo continentes - mantivemos sempre a proximidade e sabemos sempre que estamos lá uns para os outros.

Quem foi o pior primeiro-ministro de todos os tempos?

Não sei.

Qual o seu maior medo?

Que se perca a esperança de que é possível sempre ter soluções para se viver melhor. Que se perca a empatia, saber que o cuidar do outro faz de nós humanos.

Qual o seu maior defeito?

Ser teimosa.

Quem é a pessoa que mais admira?

Admiro muitas pessoas.

Qual a sua maior qualidade?

Talvez ser teimosa, também.

Qual a maior extravagância que já fez?

Não sei... Uma vez vi um meme que dizia que eu tinha comprado um relógio que custava mais de 20 milhões de euros. De facto, não o fiz, mas foi a maior extravagância alguma vez anunciada.

Qual a pior profissão do mundo?

Qualquer profissão em que a pessoa seja humilhada em vez de valorizada por aquilo que faz.

Se fosse um animal, que animal seria?

Não sei, talvez um gato. Gosto de gatos.

Qual a virtude mais sobrevalorizada?

Hmmm, não sei se há virtudes sobrevalorizadas... Acho que o pior, o pior é a sobrevalorização das virtudes.

Quem não merece uma segunda oportunidade?

Toda a gente merece uma segunda oportunidade.

Quem foi o melhor presidente de sempre?

Não sei.

Se fosse uma personagem de ficção, que personagem seria?

Não faço a mínima ideia. Gostava muito da Mafalda, quando era pequenina.

Que traço de perfil obrigatório tem de ter alguém para trabalhar consigo?

Frontalidade.

Qual o seu filme de eleição?

Há muitos... Sou daquelas pessoas que não é capaz de dizer o filme da vida, o livro da vida, a música da vida, porque tenho vários, e aquele que escolho depende da altura.

O que a deixa feliz?

A sensação de estar a fazer o que tem sentido a cada momento.

O que a faz perder a cabeça?

Hmmm, a sonsice.

Um adjectivo para Marcelo Rebelo de Sousa?

Afável.

Como gostaria de ser lembrada?

Estou preocupada de mais com coisas para estar a pensar nisso.

Com quem nunca faria uma aliança?

Com a direita.

Descreva a última vez que se irritou.

[Pensa um pouco] Eu sou mãe de adolescentes, e às vezes os quartos fazem uma pessoa irritar-se um bocadinho.

Tem uma comida de conforto ou de consolo? Qual?

Não tenho propriamente uma... Gosto de chocolate preto, às vezes.

Se fosse eleita primeira-ministra, qual a sua prioridade - o que mudaria imediatamente quando chegasse ao governo?

Recuperar salários e serviços públicos.

A que político compraria um carro em segunda mão?

Eu nunca comprei um carro novo [ri]. Não sei...

Faltam funcionários públicos ou estão mal distribuídos?

Não há gente, neste momento não há mesmo gente. Cortámos muito, tanto, que ficámos sem gente.

Gente ou meios?

Temos os dois problemas: falta de meios, porque se dizia que era preciso cortar nos custos intermédios - e esqueceram-se de que os custos intermédios é ter um sistema informático que funcione e responda às pessoas, ter os produtos necessários para todos os dias, do tonner da impressora aos produtos de limpeza - e cortou-se em tudo, e falta de pessoas - claro que há serviços com mais falta de pessoas do que outros, o Serviço Nacional de Saúde é uma das áreas em que mais precisamos de contratar.

Nos próximos quatro anos vão reformar-se entre 80 mil e 100 mil funcionários públicos

Quantos funcionários públicos faltam?

O que nos dizem os estudos é que precisamos de pelo menos mais 18 mil pessoas no Serviço Nacional de Saúde. E como durante muito tempo não contratámos, se não fizermos nada muito rapidamente dentro de pouco tempo vamos ter um problema ainda maior, porque nos próximos quatro anos vão reformar-se entre 80 mil e 100 mil funcionários públicos. Se já estamos a precisar de mais 18 mil só no SNS e ainda vai reformar-se esta gente toda... E não estou a falar na escola, no Centro Nacional de Pensões, nas forças de segurança, onde há uma enorme falta de efetivos.

Que estudos indicam que são precisas todas estas pessoas?

São as pessoas que os serviços precisam para funcionar, nós sabemos isso, o país não está em autogestão. Por exemplo, aumentou-se o número de profissionais no SNS, ainda assim não tanto quanto é necessário, e o SNS está a dar mais resposta do que dava. Agora, percebe-se que não chega. Na verdade, dos países que fizeram serviço nacional de saúde, o nosso é dos que tem a cobertura mais universal, que chega a mais gente e que não nega a pessoas sem recursos dos tratamentos mais caros e mais inovadores do mundo. Não estou com isto a dizer que não temos nada para fazer e que ficamos contentes com o que há, estou a dizer que o nosso SNS tem esta característica extraordinária, embora precise de ser reforçado para que o que corre mal passe a correr bem.

Sou utente do SNS e falo por experiência: a Unidade de Saúde Familiar que cobre a minha área de residência telefona-me a dizer que está na altura da vacinação das minhas filhas

É utente do SNS?

Sou utente do SNS e falo por experiência: a Unidade de Saúde Familiar que cobre a minha área de residência telefona-me a dizer que está na altura da vacinação das minhas filhas, por exemplo, assim como telefona a todos os utentes. Não conheço muito mais serviços que façam isso. Pode dizer-me que nem todos os utentes do SNS têm médico de família, é verdade, mas têm hoje mais do que tinham. Sou do Porto, como sabe, moro em Gaia e estou em Lisboa por causa das responsabilidades que tenho e do Parlamento, por isso, divido a minha vida entre um sítio e outro, mas a minha médica de família é a mesma há muitos anos e conhece-me e à minha família como ninguém. Posso não poder recorrer a ela numa urgência porque estou em Lisboa e ela em Gaia, mas nesse caso ligo para a Linha de Saúde 24, explico a situação e eles encaminham para onde acharem melhor.

Apesar disso, há hoje mais queixas do que nunca sobre o estado caótico a que chegou o SNS.

Quando a direita não tem um projeto para o país, que é o que acontece agora, cavalga muito as falhas dos serviços públicos. Penso que há uma diferença entre identificar o que falha e temos de resolver num serviço público e cavalgar falhas para matar o serviço público. A direita tira o dinheiro, os profissionais, a capacidade e depois diz que o Estado falhou e, por isso, é preciso contratualizar com privados. A seguir vamos dar imenso dinheiro a privados, que vivem de dizer que estão no mercado, quando na verdade é o Estado que lhes paga tudo. Em Portugal, a maior parte destes setores vive de rendas garantidas pelo Estado, vive à sombra do Estado.

Vemos que grandes grupos, que eram grandes investidores em obras públicas, se direcionaram para a saúde quando as obras públicas deixaram de dar

É tudo uma estratégia da direita, é isso?

Foi organizada, de forma consequente, uma degradação dos serviços públicos para fazer uma contratação maior a privados. Vemos que grandes grupos, que eram grandes investidores em obras públicas, se direcionaram para a saúde quando as obras públicas deixaram de dar. E os mesmos grupos vivem agora das rendas do Estado para a saúde. É uma economia predatória.

O que fez o Bloco de Esquerda a favor das medidas que agora reclama ou defende?

O Bloco de Esquerda ainda não teve votos para ser governo, quando tiver votos para ser governo, fará.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Não foi governo, mas fez um acordo que viabilizou um governo PS.

Fizemos um acordo e negociámos com o Partido Socialista os orçamentos e dossiers essenciais para haver um projeto diferente para o país. E eu acho que ainda bem que o fizemos, não nos arrependemos nem um bocadinho.

Qual foi a ação do Bloco de Esquerda?

Penso que as pessoas preferem pagar menos IRS do que pagar mais, e nós conseguimos isso. As pessoas preferem que o salário mínimo seja mais alto, e nós fizemos isso. Acho que as pessoas preferem que as pensões sejam descongeladas a que sejam cortadas, que era o que a direita prometia, ou congeladas, que era o que queria o PS. Quando fizemos o acordo foi porque estávamos perante duas possibilidade para o país: ou mantinha-se PSD-CDS no governo, que aliás tinham ganho as eleições, ou se encontrava outra maioria no Parlamento para ter um governo diferente.

Afirmou que os indicadores mostram que o país está melhor, mas, segundo o INE, o PIB está a cair (sobe per capita porque há menos população), Portugal está em 21.° na UE, a dívida pública e privada atingiu um nível recorde (cada português deve cerca de 25 mil euros) e temos a carga fiscal mais elevada de sempre: 35,4% do PIB. Em que ficamos?

Temos vindo a assistir a um processo de recuperação desde 2016. O PIB está a subir, há mais emprego e a economia está mais forte. A recusa da austeridade imposta pelo Bloco e pelo PCP à governação, e as medidas adoptadas para reverter os cortes de direitos e rendimentos, permitiram começar uma viragem no país. Provou-se que a austeridade não era a solução e que a alternativa, uma economia a favor das pessoas, era possível. A taxa de risco de pobreza atingiu o valor mais baixo desde 1995 e há uma diminuição significativa do número de crianças e jovens em situação de pobreza. Relativamente às desigualdades, todos os índices registam uma diminuição: a distância entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres diminuiu, valor que se torna mais significativo por ser o mais baixo registado em Portugal desde 2003.

propomos a descida do IVA da eletricidade e do gás, que é a medida de baixa de imposto que chega a toda a população

Temos a maior carga fiscal de sempre...

O programa do Bloco prevê que sejam repostos mais escalões de IRS, porque houve um enorme aumento de impostos que foi feito pelo anterior governo e que ainda só foi desfeito em parte. E propomos a descida do IVA da eletricidade e do gás, que é a medida de baixa de imposto que chega a toda a população. O aumento da receita fiscal não se deve a aumento de impostos (as taxas de IRS e IVA tiveram descidas e os maiores aumentos de receita); aumentou porque a economia melhorou. As contribuições para a segurança social aumentaram mais de 2 mil milhões de euros, porque há mais criação de emprego e recuperação de rendimentos. De facto, o rendimento disponível em Portugal aumentou 8,2%, acima da média da OCDE.

O investimento tem de ser o grande desafio do próximo governo

Quais são, então, os desafios que agora se colocam?

Penso que temos de aprender com o que aconteceu em Portugal: ou achamos que temos de cortar, e quando cortamos ficamos com uma economia cada vez mais frágil, ou compreendemos que temos também a responsabilidade sobre a nossa economia e não ficamos só à espera do que vem de fora. É por isso que o investimento tem de ser o grande desafio do próximo governo, para a economia ficar mais forte. E temos outro problema, é que normalmente chama-se investimento privado a qualquer operação financeira, mesmo que não haja investimento. Por exemplo, quando a Altice compra a PT não investe absolutamente nada no país; há uma empresa que já existia e outra que ficou com ela e até foi lá buscar dinheiro para pagar a compra. Diz-se que foi investimento privado estrangeiro, mas não foi, ficámos mais pobres, ficámos pior. Os privados compraram os CTT e alguém há-de dizer que foi investimento privado, mas não foi, porque os CTT davam lucro todos os anos ao Estado e neste momento estão a distribuir aos acionistas privados mais do que o lucro das empresas, ou seja, a estragar o património que foi construído, a depauperar, a roubar o património que foi construído com investimento público. Aconteceu o mesmo quando vendemos a Fidelidade à Fosun: a Fosun comprou a Fidelidade por mil milhões de euros e, logo a seguir, tirou mil milhões de euros da Fidelidade. Tentou fazer daquilo um  negócio de curto prazo, vendeu o imobiliário que tinha, e temos centenas de famílias a serem despejadas por todo o país. E há quem chame a tudo isto investimento privado. Nós chamamos a isto depredação da nossa economia. Queremos investimento privado, mas investimento com direção para a economia, e para isso é preciso que também haja investimento público com direção para a economia.

Que investimento é esse, em quê?

Queremos investimento na reconversão energética - precisamos de ter energias limpas - por exemplo, energia fotovoltaica, aproveitando uma das vantagens do nosso país. Para que este investimento seja feito, e não fiquemos reféns da REN e da EDP e das suas rendas, é preciso mudar muitas regras do mercado, mas propomos essa alteração. Precisamos de mudar a forma como nos movemos - não acreditamos nas políticas que se dizem verdes porque cobram um imposto a mais no gasóleo de quem não tem um transporte público e só pode mesmo usar o seu carro. Temos um plano ferroviário nacional para ligar todas as capitais de distrito por ferrovia e que incluem outros planos de mobilidade ferroviária. Precisamos de mudar o país. É preciso investir na habitação, não só para garantirmos o direito à habitação das pessoas, mas para garantir a eficiência energética - em Portugal há muito pobreza energética.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Aceitaria, mais uma vez, apoiar um governo de António Costa, fazer novo acordo com o PS?

O Bloco nunca faltará à negociação do que deve ser um governo, sobre as políticas, sobre propostas concretas. Muitas vezes fazem-me a pergunta como se isto fosse negociar cadeiras.

E não é?

Nós, no Bloco, não queremos negociar cadeiras nem lugares, queremos disputar o projecto de futuro para o país, o que queremos fazer com o país. O que é apoiar o governo PS? Quando o governo PS quis que o conselho de administração da Caixa Geral de Depósitos não apresentasse as declarações ao Tribunal Constitucional, obrigámo-los a mudar o conselho de administração, porque não aceitamos que não haja transparência. Quando o PS tentou quebrar o acordo e descer a contribuição das empresas para a Segurança Social, pondo em causa o rumo de sustentabilidade e do aumento das pensões, recusámos isso no Parlamento. Quando o PS quis entregar o Banif aos privados, não foi com o voto do Bloco de Esquerda que contou, foi com a direita - para fazer uma operação absolutamente lesiva para o interesse público. Não é o apoio, é o compromisso que se faz em nome do país. E faremos sempre tudo o que estiver ao nosso alcance para melhorar a vida do nosso país.

É claro que não ter existido no acordo maior clareza sobre a trajetória do investimento foi um erro

O que se arrepende de não ter feito?

Depois de estar tudo feito é fácil dizer. É claro que não ter existido no acordo maior clareza sobre a trajetória do investimento - e dizer, por exemplo, qual é a percentagem do PIB que deve estar na saúde, na educação, etc. - foi um erro e fragilizou [o acordo]. Mas quando em 2015 fizemos o acordo, diziam-nos que o simples facto de descongelarmos as pensões ou de aumentarmos o salário mínimo nacional ia trazer a tragédia, o diabo e o descalabro das contas públicas. Fez-se o acordo que foi possível com a relação de forças que tínhamos e com a conjuntura que existia. Hoje é fácil identificar áreas em que teria sido importante irmos mais longe.

O que mudaria, seguramente?

Ter objetivos de investimento em percentagem do PIB, que é uma coisa que traçamos neste programa do Bloco de Esquerda, para áreas centrais como a saúde, a cultura, a educação, a ciência... É uma forma fundamental de olhamos para o país que somos e para onde queremos ir. E também de perceber isto: então num país que é tão pobre apareceram de repente 17 mil milhões para a banca, que nunca os devolveu, e para a saúde, a educação, onde é tão preciso, andamos sempre a contar tostões e não é possível ter um compromisso em percentagem da riqueza que geramos? Temos de ser capazes de assumir estes compromisso coletivos e puxar por aquilo que é de todos.

Foi uma desfeita, o comentário de António Costa e a forma como descartou o Bloco de Esquerda?

Também já disse isso em 2011 e em 2015, diz sempre a mesma coisa. A disputa eleitoral faz com que as pessoas às vezes digam determinadas coisas para despertarem para o seu próprio partido.

Como vê a relação entre o presidente da República e o governo?

Penso que é uma relação próxima por escolha de ambos.

Há uma convicção que temos: achamos que as maiorias absolutas não foram boas para o país

O Bloco de Esquerda quase duplicou o número de votos entre as legislativas de 2011 e as de 2015. Que resultado espera em outubro?

Aguardamos muito serenamente o que as pessoas decidirem. Há uma convicção que temos: achamos que as maiorias absolutas não foram boas para o país.

A abstenção é alta e uma das questões mais apontada para a resolver é a reforma dos sistema eleitoral. Porque é que a Assembleia da República não a faz?

Os partidos não têm todos a mesma posição. Normalmente existe da parte dos grandes partidos, PSD e PS, uma vontade de alterações legislativas que criem em Portugal um sistema de bipartidarismo como há noutros países europeus, ou seja, que feche a porta a outros partidos e a outras forças.

Qual a posição do Bloco de Esquerda, devíamos ter outro sistema eleitoral?

Temos problemas de representatividade para resolver. Mas temos de ter muito cuidado com a forma como o fazemos, porque há áreas do país que neste momento elegem dois deputados, ou seja, são praticamente esquecidas. Há experiências interessantes, mas não é uma proposta que façamos agora, porque a abstenção não tem só a ver com isto, tem a ver com questões da democracia.

Que questões?

Há instâncias de decisão regionais que ninguém elege - as decisões do fundos europeus são tomadas pelas CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional], as entidades intermunicipais têm competências crescentes - e isto leva-nos a pensar que, então, mais vale as pessoas escolherem quem toma essas decisões - e o debate da regionalização é importante para o Bloco de Esquerda enquanto condição da democracia. Mas, a visão que temos é que normalmente há mais transparência quando há mais forças políticas representadas. Agora, as questões da democracia e do combate à corrupção têm a ver também com duas coisas que para nós são essenciais: por um lado, a separação entre o poder político e o poder económico. Quando temos eleitos que estão ao mesmo tempo no Parlamento e a trabalhar para grandes interesses económicos, as pessoas ficam com a sensação correta de que eventualmente o seu voto não vale aquilo que deve valer, porque há outras forças que acabam sempre por ter mais poder e tomar as decisões. Portanto, decisões como a exclusividade, períodos de nojo, registo de interesses são importantes.

E o que faz o Bloco de Esquerda nesta matéria?

Nesta legislatura conseguimos aprovar uma medida muito importante, e que só entra em vigor na próxima legislatura porque os outros partidos arrastaram, arrastaram, arrastaram, que é a criação da Entidade da Transparência.

Isso não é só mais um organismo, mais lugares?

Embora o Tribunal Constitucional tenha a Entidade das Contas, que fiscaliza as contas dos partidos, a Entidade das Contas não tinha os meios suficientes - e por iniciativa do Bloco foi aprovado o aumento da dotação orçamental para a Entidade das Contas poder fazer o seu trabalho - nem a competência para verificar os registos de interesses dos titulares de cargos políticos. Criada a Entidade da Transparência, o Tribunal Constitucional vai ter, através dela, a competência para analisar estes conflitos de interesse.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

As contas dos partidos deviam estar no Tribunal Constitucional ou no Tribunal de Contas, que é quem fiscaliza as contas das entidades públicas?

O Bloco tem apresentado as suas contas anuais e das campanhas eleitorais à Entidade das Contas, do Tribunal Constitucional, como é dever de todos os partidos. E tem sido o partido das contas certas: em 2015 (último ano sobre o qual a Entidade já concluiu a apreciação) foi o único partido que não foi multado, dado não haver nenhuma irregularidade nas suas contas.

Há 21 partidos candidatos às eleições legislativas, no entanto, nem todos têm as mesmas oportunidades de dar a conhecer os seus programas. São justas, as regras que definem financiamento, campanha, cobertura jornalística?

O Bloco de Esquerda tem proposto sempre debates com todos e a presença de todos em nas reuniões com a comunicação social, e também propôs na lei outras garantias que não ficaram. Dito isto, a nossa posição não é a posição maioritária, e achamos que não devemos recusar participar nos debates ou acabamos também por não conseguir explicar o nosso programa.

Fomos o único partido que apresentou como proposta o fim da isenção do IMI sobre o património imobiliário dos partidos

O Bloco tem no programa - e falou nisso no frente a frente com Assunção Cristas, na RTP - acabar com uma série de benefícios fiscais. Os partidos políticos devem ter isenções fiscais? 

Fomos o único partido que nas anteriores eleições legislativas apresentou como proposta o fim da isenção do IMI sobre o património imobiliário dos partidos, proposta que veio a ser chumbada e que voltaremos a apresentar.

Esta poderia quase ser uma entrevista de aniversário, faz 46 anos a 7 de Setembro. Fale-nos um pouco de si...

É verdade. Faço 46 anos, tive uma experiência de vida muito preenchida. Os meus pais eram professores, saltitavam de escola em escola e, portanto, quando era pequenina vivi em muitos sítios. A determinada altura, decidiram ser professores cooperantes, e fiz primeira classe, agora primeiro ano, em São Tomé, e a segunda e terceira em Cabo Verde. Foram experiências muito fortes e interessantes, que me enriqueceram muito. Voltei para Portugal, fiz o liceu em Aveiro e fui para a universidade em Coimbra estudar Direito. Percebi que não era o que eu gostava e mudei. Sempre tive ligação com a atividade artística e as artes, os meus pais sempre participaram em cooperativas culturais, tive o privilégio de, tanto em Portugal como no Mindelo, em Cabo Verde, onde havia uma vida cultural muito ativa, contactar com muita gente extraordinária, daquelas pessoas que marcam gerações. Acho que também por isso acabei por decidir que queria fazer teatro profissionalmente, e dirigi uma companhia durante muitos anos.

Sou mãe, tenho duas filhas adolescentes, mulheres autónomas e exigentes, e isso orgulha-me imenso

Mas voltou à universidade...

Gosto muito de estudar e acabei por voltar para a universidade, licenciei-me em Línguas e Literaturas Modernas e depois fiz um mestrado em Linguística. Tentei fazer o doutoramento, mas a atividade política já não permitiu, não consegui conciliar tudo. Sou mãe, tenho duas filhas adolescentes, mulheres autónomas e exigentes, e isso orgulha-me imenso. Sou casada com o Pedro há muitos anos, já não sei quantos [riso].

E de onde vem o gosto pela política?

Tive atividade política a vida toda, porque cresci num contexto em que era assim mesmo, em que os meus pais se organizavam na escola, no sindicato, na cooperativa de habitação, na cooperativa cultural. E a politica é isso, não é só atividade partidária, muito menos institucional. Penso que há uma mentalidade errada quando se diz que há um descolamento entre aquilo que os políticos pensam e o que dizem. Acho que não há.

Para terminar, disse em entrevista ao Observador que o programa do BE é social-democrata. Rui Rio diz que o PSD não é de direita... São todos do centro?

Há medidas que foram historicamente defendidas pela social-democracia, como o salário mínimo nacional ou o pagamento em dobro das horas extraordinárias, e que o Bloco apresenta no seu programa. O horizonte de transformação que propomos é, como toda a gente sabe, muito mais vasto.