A ex-refém da guerrilha das FARC, Ingrid Betancourt, disse ontem sentir "um alívio muito grande, como o final de um pesadelo" e considerou que a assinatura do acordo de paz nesta segunda-feira em Cartagena "é um momento extraordinário". "Sinto um alívio muito grande, como o final de um pesadelo. Felizmente terminou!", disse Betancourt por telefone à AFP.
Ingrid Betancourt assistiu pela internet à cerimónia de assinatura do acordo de paz que pôs fim a 52 anos de conflito com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). "Não há euforia, já que há muito cansaço. Foi longo! Mas também há um sentimento de que o trabalho foi feito, de que se fez o que se tinha que ser feito". Betancourt disse ter refletido muito, mas optou por não comparecer à cerimónia na Colômbia. "Ainda há muitas emoções contraditórias, dor", explicou a ex-refém. "Eu não queria contaminar a felicidade dos outros", acrescentou.
Ingrid Betancourt, de 54 anos, era a candidata do partido ecologista colombiano quando foi sequestrada, em 2002. Passou seis anos refém das FARC, até ter sido libertada, junto com outros quatro reféns, numa operação do Exército. Atualmente vive entre Oxford (Inglaterra), onde está a fazer doutoramento em Teologia; Paris e Estados Unidos, onde reside o seu filho. O complexo conflito armado na Colômbia deixou mais de 260 mil mortos, 45 mil desaparecidos e 6,9 milhões de deslocados.
"Bem-vindos à democracia"
Por tudo isto, ontem foi um dia de emoções fortes na Colômbia. Um dos momentos emblemáticos teve lugar durante o discurso do presidente do país, Juan Manuel Santos,em Cartagena, após firmar o acordo de paz que acaba com meio século de conflito armado no país. "Bem-vindos à democracia", disse aos membros da guerrilha das FARC. "Membros das Farc, hoje, quando empreendem o seu caminho de volta à sociedade, quando começam o seu trânsito para se converter num movimento político sem armas, seguindo as regras da justiça, verdade e reparação contidas no acordo, como chefe de Estado desta pátria que todos amamos, dou-vos as boas-vindas à democracia". No seu discurso, Santos declarou que prefere "um acordo imperfeito que salve vidas a uma guerra perfeita que continue a semear morte e dor no nosso país, nas nossas famílias".
Por seu lado, o líder máximo da guerrilha das FARC, Rodrigo Londoño "Timochenko", antecipou uma "nova era de reconciliação e de construção da paz" na Colômbia. "Renascemos para promover uma nova era de reconciliação e de construção da paz", disse Rodrigo Londoño, garantindo que a guerrilha passará "à política sem armas". No mesmo discurso, Londoño pediu desculpa pelas vítimas do conflito na Colômbia: "em nome das Farc-EP, peço sinceramente perdão a todas as vítimas do conflito por toda a dor que causámos nesta guerra".
Foi com uma cerimônia solene que a Colômbia firmou nesta segunda-feira, na cidade de Cartagena, o histórico acordo de paz com a guerrilha das FARC. O presidente Juan Manuel Santos e o principal líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia assinaram o pacto anunciado a 24 de agosto, após quase quatro anos de negociações em Cuba. Quase 2 500 pessoas vestidas de branco, de acordo com o protocolo, incluindo líderes mundiais e 250 vítimas do conflito, acompanharam os discursos daqueles que, inimigos por décadas, conseguiram o que parecia impossível: acabar com a violência fratricida entre guerrilhas, paramilitares e agentes do Estado.
A cerimónia contou com a presença de 15 chefes de Estado, entre eles o cubano Raúl Castro, anfitrião das conversações de paz, que também foram mediadas pela Noruega, Venezuela e Chile; o chefe da diplomacia americana, John Kerry; o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon; o rei emérito de Espanha, Juan Carlos, e vários representantes de organismos internacionais.
"Advogamos para que esse acordo seja a oportunidade para uma paz definitiva e com justiça social", disse a Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), pedindo "a construção da equidade" na Colômbia.
O acordo de paz, um texto de 297 páginas que essencialmente procura mudar "balas por votos", promovendo o desarmamento da guerrilha e a sua transição para a vida política legal, foi assinado com uma caneta esferográfica montada com balas do conflito armado.
O dia começou com uma homenagem à força pública, a quem Santos agradeceu "o seu sacrifício e seu valor". Na Igreja de San Pedro Claver, o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano e enviado do Papa Francisco para o ato, presidiu "uma oração pela reconciliação de todos os colombianos", que se repetiu em todos os lugares de oração do país.
Em Bogotá, centenas de pessoas assistiam desde as 14H00 local a um "espectáculo pela paz" na praça central de Bolívar, de onde puderam acompanhar a assinatura numa tela gigante. "É um acordo muito completo, e implementar o que foi negociado na reforma agrária, na luta contra o narcotráfico, na inclusão dos ex-guerrilheiros em processos políticos, e na aplicação da justiça transicional vai exigir muita liderança", afirmou à AFP o chanceler norueguês, Borge Brende.
O pacto foi ratificado na sexta-feira passada pela FARC - que nasceu de uma revolta camponesa em 1964 e atualmente conta com 7000 combatentes - após uma inédita conferência nacional guerrilheira autorizada pelo governo e aberta à imprensa em El Diamante, área remota do sul do país.
"Acabou a guerra, vamos todos construir a paz", escreveu Timochenko no Twitter, citando as conclusões do encontro.
A paz ainda não está completa
Para entrar em vigor, o acordo deve ser aprovado numa votação convocada para 2 de outubro. As sondagens mais recentes indicam a vitória do 'sim'. O pacto negociado com as FARC é, porém, fortemente criticado pela oposição liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, que nesta segunda-feira acompanhava em Cartagena um protesto que rejeita a assinatura.
A paz na Colômbia não estará completa, no entanto, enquanto permanecer ativo o Exército de Libertação Nacional (ELN), segunda maior guerrilha do país, também criada em 1964. O ELN e o governo anunciaram em março a intenção de criar uma mesa formal de diálogos similar a das FARC, mas isto ainda não foi concretizado perante as reticências do grupo armado em abandonar a prática do sequestro, condição imposta por Santos.
A guerrilha guevarista anunciou uma trégua unilateral, vigente de 30 de setembro a 5 de outubro, para facilitar a participação cidadã" na votação. "Um gesto positivo" segundo o governo.
O calendário do dia D
"O dia D é hoje", destacou Humberto de la Calle, chefe negociador do governo nos diálogos com a guerrilha, em entrevista com a AFP. A importância de definir qual é o Dia D é que a partir dessa data devem começar a desocupar corredores para que os guerrilheiros avancem até as zonas de concentração previstas para a deposição das armas e posterior reinserção na vida civil. Aos cinco dias do Dia D, as FARC têm que entregar à ONU, que supervisionará o desarmamento, informações sobre as suas armas e, aos dez, colaborar com dados dos seus depósitos de armas artesanais.
Para os 60 dias do Dia D o armamento artesanal tem que estar destruído, aos 90 dias 30% dos guerrilheiros entregarão suas armas em contentores vigiados pela ONU, outros 30% aos 120 dias e os 40% restantes aos 150 dias. Aos 180 dias do Dia D, a ONU retirará os contentores das zonas e considerará finalizado o desarmamento. Mas os dirigentes das FARC insistem em que a concentração de guerrilheiros não será iniciada até que seja aprovada a lei de amnistia, que o governo se comprometeu a apresentar ao Congresso logo que o acordo fosse ratificado pelos colombianos.
"Sem a lei de amnistia e indulto, é difícil que a guerrilha comece o movimento de seus efetivos para as áreas de paz ou para os pontos transitórios de normalização", disse há alguns dias para a emissora CNN o chefe negociador das FARC, Iván Márquez. Mas De la Calle descartou que haja qualquer problema nesse sentido. "Ontem (domingo) tivemos uma conversa que rendeu bons frutos", disse. "Creio francamente que aqui não há uma grande preocupação". Indicou que o governo prepara as leis que deverão ser aprovadas no Congresso, entre elas a de amnistia. "Prefiro ater-me ao que está escrito, é a recomendação que Nelson Mandela fazia: 'Fixe-se nos textos'", apontou. "Parece-me que os textos são claros e o que há aqui é uma necessidade de sincronizar ações mútuas".
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