Quando se fala do futuro do jornalismo, esta é a discussão que porventura condiciona todas as outras: como é que vai ser financiado, seja na televisão, na rádio ou nas plataformas digitais?
Para responder a esta pergunta, o 5º Congresso dos Jornalistas sentou à mesa, num painel dedicado ao audiovisual, António José Teixeira (RTP), Mário Galego (RDP), Nuno Santos (TVI), Pedro Leal (Rádio Renascença) e Ricardo Costa (SIC). E foi este último quem melhor terá resumido o que está em causa: “não há uma solução, há várias e em alguns casos não há solução. A ideia de que se vai encontrar uma solução única é absurda, não é exequível". E, acrescenta, nos casos em que não há solução, ou são casos de que arrastam há décadas, ou são casos em que não houve capacidade de dar resposta a problemas de fundo.
Aceitar a ideia de fim de linha, seja por incapacidade de gestão, por não adesão da audiência a uma determinada proposta editorial é, claramente, um dos temas não consensuais entre a classe jornalista.
Mas que soluções são essas? Maria Flor Pedroso, jornalista e moderadora deste painel, deixa um apanhado das múltiplas propostas que populam a discussão: mecenato, consignação de impostos (à luz do que acontece com a possibilidade de consignação de 0,5% do IRS a IPSS), compra de assinaturas por parte do Estado, campanhas públicas de apoio, benefícios ficais para cidadãos que subscrevam serviços noticiosos, redução de impostos nas despesas de contexto do setor para as empresas, obrigar as big tech a pagar pelo conteúdo que usam, garantir o acesso gratuito dos órgãos de comunicação social aos conteúdos produzidos pela agência Lusa, mais campanhas publicitárias do Estado no privado, apenas para nomear algumas.
Para Pedro Leal, diretor de informação da Rádio Renascença, a discussão, todavia, deve ser feita não apenas a montante, mas a jusante: "é preciso ouvir a sociedade, o mercado, perceber o que querem de nós, para assim percebermos o caminho a seguir". E, garante, “há uma parte que depende de nós: sermos melhores, para conquistarmos uma quota de mercado maior". Até porque, continua, "além da crise financeira, há também uma crise editorial, estamos distantes das audiências e por vezes não chegamos às pessoas e temos um posicionamento majestático à espera que venham ter connosco”. "Temos de ser bons, temos de ser escrutinados, não podemos ter dinheiro só por existirmos", conclui.
De forma complementar, mas já no painel seguinte sobre financiamento na imprensa e digital, Carlos Rodrigues, da Media Livre (ex-Cofina), apresentou aqueles que são, na sua perspetiva, os quatro erros principais do jornalismo: “auto-suficiência temática, com repetição de agenda entre canais; um jornalismo vítima da alienação da vida do público; a secundarizacao dos desafios tecnológicos e ainda o abcesso das redes sociais", já que "os leitores pretendem do jornalismo uma coisa fundamentalmente diferente daquilo que as redes sociais oferecem". No que à auto-análise diz respeito, defende que "a principal diferença entre democracia e jornalismo é que a democracia de quatro em quatro anos coloca a opinião nos eleitores em primeiro lugar”.
Também João Vieira Pereira, diretor do Expresso, faz uma análise crítica ao setor, que "acordou tarde" para o facto de ser sustentável informar gratuitamente e que pratica uma política de concorrência que "fomenta o dumping", prejudicando "quem precisa de manter negócios sustentáveis". Acresce a isto, "o roubo indiscriminado de conteúdo" entre órgãos de comunicação social e a pirataria, que afeta sobretudo a imprensa escrita.
O Estado deve pagar às empresas de informação?
Foquemos-nos então nas soluções. Uma das mais amplamente discutidas tem sido a dos apoios do Estado e a forma como se podem revestir.
“Recuso-me a pensar financiamento dos média sem condições”, afirmou Pedro Leal, apelando a um maior escrutínio dos órgãos de comunicação social. "Gestores e diretores de informação deviam ter de atestar a sua idoneidade". E sobre apoios diretos do estado à comunicação social é perentónio — "não, porque citando Manuela Ferreira Leite, quem paga, manda".
Miguel Pinheiro, diretor do Observador, deixou alertas no mesmo sentido: “até admito que agora surja um esforço de um apoio do Estado, mas haverá um dia em que esse apoio vai desaparecer". E, mesmo que não desapareça, pode significar manter órgãos de comunicação social reféns de interesses políticos, ressalvou. Portanto, "dar lucro é importante, porque se queremos ser livres e autónomos não podemos estar dependentes de ninguém. E isso faz-se conseguindo ser um negócio lucrativo."
O diretor da Media Livre também mostrou reservas no que respeita aos apoios diretos do Estado. “Toda e qualquer intervenção do Estado deve fugir à intervenção nos conteúdos", começou por dizer. Pois, "se houver um sistema de apoios que lança suspeita de que é o Estado a financiar o jornalismo, damos um passo em direção ao abismo”, reiterou.
A par, defendeu que deve ainda "ser debatido o estatuto da RTP", nomeadamente a possibilidade de o serviço público de rádio e televisão ser financiado "unicamente" pelo Orçamento do Estado, o que colocaria mais dinheiro no mercado. Recorde-se que, atualmente, cerca de 80% das receitas da RTP assentam na Contribuição Audiovisual (CAV) e 20% são provenientes de publicidade, o que coloca serviço público em concorrência com o privado.
Inês Cardoso, diretora agora demissionária do JN, considera que “tudo o que é apoios diretos [do Estado] é de afastar o mais possível, mas apoios de forma indireta podem funcionar". Neste contexto, "medidas de coesão num país com tantas assimetrias podem fazer sentido, sobretudo no caso da imprensa", garantindo por exemplo o direito de acesso aos jornais a todos os cidadãos, mesmo nas zonas mais remotas do país. Ainda no que diz respeito a apoios específicos, Inês Cardoso pede que se olhe com mais atenção para a situação dos correspondentes, fundamentais para retratar um país "com boa parte do território em deserto mediático".
O diretor da TVI, Nuno Santos, tem uma opinião diferente. Não discorda de apoios diretos a órgãos de comunicação social, à semelhança do que aconteceu durante a pandemia, mas "as regras têm de ser claras. Ninguém espera que SIC e TVI sejam apoiadas para fazer programas de entretenimento", exemplificou. Todavia, reitera, "é possível encontrar uma matriz e soluções".
António José Teixeira, diretor da RTP, tende a concordar: “Não é a mesma coisa falar de media noticiosos e não noticiosos, apesar de as empresas terem essas várias dimensões, e isso é relevante do ponto de vista da transparência”.
Mas os apoios diretos são apenas uma das formas possíveis. Consignação de impostos, como já se faz atualmente para projetos sociais, é outra das ideias que tem sido discutida.
“A participação do público no financiamento deve ser representativa de alguma forma. A consignação, como acontece com 0,5% do IRS, por exemplo, parece-me um dos meios que mais permite isto”, afirmou Mário Galego, diretor da RDP.
Ricardo Costa é nesta matéria taxativamente contra: “Não acredito na solução dos 0,5%. Faz sentido colocar os contribuintes no dilema moral de escolher se apoiam os autistas ou órgãos de comunicação social?", questionou, alertando que haverá sempre a noção, do ponto de vista moral, de que uma instituição precisa mais dessa contribuição.
A Lusa deve ser gratuita?
A disponibilidade gratuita dos serviços da agência de informação Lusa é outra das soluções que tem estado a ser avaliada e que está, aliás, no centro da discussão sobre o colapso da Global Media, após o negócio falhado da compra pelo Estado dos 45,7% da agência Lusa pertencentes à Global Media e à Páginas Civilizadas. Mas também não é um tema consensual entre jornalistas.
Miguel Pinheiro considera que uma solução como esta vai matar os jornais mais frágeis que, perante um caudal ilimitado de informação vão, "com o tempo, fazer contas e pensar se vale a pena enviar um jornalista a uma conferência de imprensa" quando podem ter via Lusa. Não só o lugar dos profissionais pode estar em causa, como, defende, perde a pluralidade de informação e prejudica-se gravemente o papel de escrutínio ainda mais essencial, por exemplo, na imprensa local.
Luísa Meireles, diretora da Lusa, tem outro olhar: "a Lusa devia ser gratuita para todos os órgãos de comunicação social, porque é uma fatia importante da sua despesa". A medida iria ‘chutar’ "para os 22 milhões de euros o investimento do Estado", mas permitiria a todos os meios, sobretudo os mais pequenos, libertar os seus jornalistas do trabalho de agenda e dedicar estes recursos à produção de informação que os distingue.
A par, acrescenta, "estamos a meio de uma revolução tecnológica" e também a agência nacional de informação precisa de um valor significativo para fazer essa transição. Luísa Meireles considera que “a Lusa é básica em relação ao jornalismo português. Se não houvesse a Lusa não havia comunicação social em Portugal”, e, acrescenta, sem a rede de correspondentes da agência, "haveria regiões do país das quais nunca se falaria", pelo que o seu serviço é também um garante de coesão do território nacional.
Sobre as consequências de ter caído a compra pelo Estado da fatia acionista da Global Media na agência noticiosa, a diretora da Lusa deu conta do seu desânimo. “Lamento que não tenha havido um entendimento de regime para o negócio avançar, porque isso impediu o passo seguinte que seria de dar a Lusa gratuitamente aos órgãos de comunicação social” .
Ricardo Costa resumiu a sua visão sobre as várias propostas em análise: “Lusa gratuita acredito que tenha algum impacto, publicidade do Estado tem de ser um processo bem feito, as contas têm de estar bem auditadas, e pode haver apoios especiais para a profissão, para contratação ou no âmbito da reconversão tecnológica”, enumerou.
Nuno Santos também vê com bons olhos a ideia de um apoio à transição digital, já que “estamos no meio de uma mutação tecnologia que condiciona toda a nossa atividade" e acrescenta à equação apoios específicos também para jovens jornalistas em início de carreira.
O diretor da TVI avalia também de forma positiva a solução de um serviço da Lusa gratuito: “se não tiver de pagar à Lusa, obviamente esse dinheiro vale para mim alguma coisa". Acrescenta ainda que há incentivos fiscais que podem fazer sentido para apoiar a atividade jornalística — "e há benchmark sobre isso feito sobre isso à escala europeia". Há também margem para um maior investimento do Estado em publicidade institucional, com campanhas dirigidas aos cidadãos, que podem reverter como receita publicitária para os media, defende.
António José Teixeira considera que "em matéria fiscal temos muito a fazer, tanto ao nível das empresas, quer ao nível dos profissionais do setor" e há ainda que "investir na literacia de média e facilitar o acesso à informação", por exemplo assegurando o acesso a assinaturas por parte dos mais jovens.
No fundo, reitera Nuno Santos, não faltam soluções nem exemplos, mas "nós em Portugal somos muito dados à discussão e pouco à ação" — e "o que se passa no jornalismo não é novo". Assim, é chegada a altura, até pela agenda política que temos pela frente, de confrontar a classe política sobre estas soluções, defendeu.
E a ação política não se esgota em apoios no lado da oferta (apoios às empresas) ou da procura (benefícios aos consumidores), estando também em discussão o papel do Estado, tanto a nível nacional como europeu, para aquilo que Ricardo Costa considera ser "a questão mais séria".
“O que está a acontecer ao jornalismo é uma revolução tecnológica, a mais rápida, mais abrangente, mais simultânea em todo o mundo”, afirmou. Neste contexto, “a questão mais séria são as plataformas tecnologias, que capturaram, entraram no negócio do jornalismo no lado da oferta, procura e intermediação - e arbitragem, porque decidem o preço da publicidade programática. Não tenho a mínima dúvida que é aí que está o dinheiro que pode ser devolvido aos órgãos de comunicação social”.
Como lidar com as empresas tecnológicas que usam conteúdos à borla?
Este é um tema que reuniu consenso entre os participantes: Google, Facebook, Microsoft (ou mais recentemente o OpenAI, empresa-mãe do ChatGPT) devem pagar pelo uso dos conteúdos jornalísticos que são um dos recursos que usam para oferecer – e ganhar dinheiro – com os seus serviços e plataformas.
“A informação continua a ser um bem valioso e esse bem acabou por ser apropriado indevidamente, sem retribuição em relação aos custos de produção desses bem e direitos de autor. E essa é uma questão muito relevante, o cerne na nossa história. Em cima disto, estas empresas não pagam impostos ou pagam pouco impostos. E este é um problema que tem de ser resolvido ao nível da empresa, do país e da União Europeia", enlencou António José Teixeira. “O New York Times processou a OpenAI, que está a usar artigos do jornal para afinar a sua ferramenta de inteligência artificial. Isto é um processo em tribunal, porque não é admissível”, exemplificou.
“Taxar as tecnológicas devia ser o foco. Deve ser feito rapidamente esse caminho”, corroborou Inês Cardoso.
Quem é dono dos media?
O tema da propriedade dos meios de comunicação social foi incontornável num congresso que decorreu num contexto de crise global do setor e da situação particular da Global Media.
“As transferências de propriedade como aconteceu na Global Media não podem acontecer num setor tão sensível como este, sem estarem acauteladas questões de idoneidade”, defendeu António José Teixeira. "O jornalismo independente é um valor fundamental para todos, por isso o escrutínio e a transparência são muito relevantes".
Mário Galeno, subscreve: "Tem de haver transparência para saber quem está por detrás das rádios e televisões".
Às questões presentes junta-se o histórico do setor, como recordou Ricardo Costa. “Não podemos esquecer que o Álvaro Sobrinho foi dono de um jornal quando já toda a gente sabia quem era o Álvaro sobrinho. É preciso lembrar que foi por um triz que Isabel dos Santos não foi dona de meios de comunicação social em Portugal”.
O diretor da SIC deixou ainda um conselho: “não nos adianta dizer que a nossa profissão é muito diferente das outras. Se queremos ganhar essa batalha temos de mostrar que é ultra relevante para o país e para a democracia. Para olhar para isto da forma certa temos de envolver acionistas, gestores, diretores e jornalistas, assumindo que o trabalho que se lhes exige hoje é diferente de há dez anos, por força da revolução tecnologia em curso".
É possível as empresas de comunicação social darem lucro?
A saúde financeira das empresas de comunicação social e os meios para alcançar essa sustentabilidade foram um tópico obrigatório na discussão.
“Nos últimos tempos parece que é problemático dizer que damos lucro. O que quero sublinhar é que nem o facto de ter resultados positivos sustentados nos últimos anos evitou chegarmos à situação em que estamos agora. Se nem isso nos protege, então há uma forte reflexão que temos de fazer", diz Inês Cardoso. No caso do Jornal de Notícias, detalhou, 50% de receitas é proveniente da circulação, papel e digital. A outra metade vem da publicidade, sendo que 50% disso tem origem no digital.
A importância da publicidade, mesmo quando se discute a diversificação do financiamento não pode ser descurada. "As décadas de ouro do jornalismos foram sustentadas a publicidade, a ideia de que se deve abdicar da publicidade é um suicídio coletivo”, diz Ricardo Costa.
Depois há que investir em novos produtos. No caso do JN, "o vídeo tem sido um dos motores essenciais", diz Inês Cardoso. Também João Vieira Pereira partilhou que a diversificação de receitas possível graças a novos produtos editoriais "tem sido o que nos tem permitido continuar a ser um negócio rentável. Se não fosse isso seria uma situação complicada"
David Pontes, diretor do Público, defendeu que “ir ao encontro do público com novos produtos é muito exigente para as redações, mas não nos podermos dar ao luxo de não o fazer. Olhamos para estas novas oportunidade de informar como uma obrigação de estar lá, de estar perto dos nossos leitores. Sobre se isso os traz sustentabilidade, ainda não estamos lá, mas a caminhar”.
O que reforça, todavia, é que haja "uma preocupação constante com a relevância e qualidade da informação que fazemos". Sim, a Internet veio mudar as coisas, mas "há que reconhecer que nós, imprensa, em muitas coisas perdemos utilidade para a vida das pessoas", notou.
Referindo-se à situação do jornal detido pelo grupo Sonae, o diretor do Público refutou a ideia que de a sobrevivência do título se deva ao facto de ter donos "que não se importam de perder dinheiro", como muitas vezes se diz.
"O Público nasce da vontade de uma série de jornalistas que encontraram na Sonae a capacidade financeira e uma tolerância infinita para aguentar pressões sem interferir no nosso mister. Aquilo funciona quase como uma fundação, sem ter esse nome. Evidentemente, não sendo na verdade uma fundação, a pressão de o jornal ser sustentável é uma constante. Até porque sabemos que quanto melhor estivermos em termos financeiros, mais dinheiro conseguimos investir na nossa redação, melhor jornalismo produzimos e mais livre somos, independentemente de quem forem os patrões”.
O site do Observador, um dos meios de comunicação social generalistas mais recentes no setor, deu lucro em 2020, 2021 2022, segundo o seu diretor, mas ainda não chega para sustentabilidade, sobretudo porque a seguir ao site, o grupo editorial decidiu lançar uma rádio.
A mais recente aposta, todavia, é nos podcasts que "neste momento não dão um dinheiro extraordinário, mas tudo indica que com a evolução venham a dar", uma vez que as pessoas estão lá. O novos produtos não só podem ter um impacto na receita como podem ajudar as marcas de informação a chegar a novos públicos. "Se chegarmos às pessoas onde elas estão agora, o dinheiro virá. Se é suficiente? Se vamos regressar a um cenário em que o jornalismo será rentável ou se esta é uma crise mais profunda? Teremos de ver. Mas temos mesmo de conseguir fazer o dinheiro que precisamos para sobreviver, caso contrário seremos livres por pouco tempo”.
Em jeito de síntese, ficaram as palavras do diretor do Expresso, João Vieira Pereira: “se não lutarmos juntos morremos sozinhos".
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