Portugal está entre os países da OCDE em que os cidadãos perdem mais tempo com as obrigações fiscais. Algumas começam já e é importante não perder o calendário de vista, pelo menos aquele que marca os primeiros meses do ano.
Até dia 15 de fevereiro o contribuinte deve comunicar à Autoridade Tributária (AT) qualquer alteração do agregado familiar (nascimento, divórcios, filhos com 26 anos, óbitos). Ainda em fevereiro, até dia 26, deverá ser feita a validação de faturas de todo o agregado familiar no Portal das Finanças, através do e-fatura.
A senda continua e a 1 de abril termina o prazo para reclamação das faturas de despesas gerais e familiares, para o que é necessário consultar no Portal das Finanças as despesas gerais e as despesas com direito a dedução de IVA comunicadas à AT. A 30 de junho termina o prazo para entregar a declaração do IRS.
A propósito da relação entre os contribuintes e o Estado, e da recém criada Associação Portuguesa de Contribuintes, o SAPO24 entrevistou Paulo Carmona, presidente da organização, que considera que o esforço feito no pagamento de impostos não é compensado em serviços do Estado: "Há uma degradação muito grande a nível dos serviços prestados ao cidadão".
Uma realidade que pode e deve ser comparada com a de outros países, nomeadamente da União Europeia. Para dar um exemplo, há países onde o Estado, como o contribuinte, é obrigado a compensar particulares e empresas pelo seu atraso nos pagamentos.
E também tem de prestar contas pela forma como aplica o dinheiro que é dos contribuintes, mesmo que sejam fundos vindos de Bruxelas. Por exemplo, recentemente a Alemanha foi obrigada a alterar dinheiro europeu que o governo decidiu canalizar para o ambiente, quando o âmbito das verbas era a Covid-19.
Em Portugal cobram-se certidões que não implicam qualquer custo para o Estado. Só no Orçamento deste ano estão previstos 126 milhões de euros. Mas há mais: um estudo recente encomendado pela Confederação Empresarial de Portugal (CIP) revelou que "há mais de 4000 taxas e taxinhas" cobradas país fora, "algumas com uma receita de 350€ por ano".
O contribuinte recebe em serviços do Estado aquilo que paga em impostos?
Não. Parece que o resultado está à vista. Na associação somos relativamente 'agnósticos' em relação ao peso do Estado na economia, ou seja, ao nível de impostos que pagamos. Porque são os cidadãos eleitores que escolhem nas urnas uma de várias propostas. O que fazem com os nossos impostos acontece na consequência disso.
O que estamos a ver é que há uma degradação muito grande a nível dos serviços prestados ao cidadão. Vê-se isso diariamente, nas questões ligadas à saúde, à escola, à justiça, aos transportes e por aí fora. Nem vamos mais longe; somos um país culturalmente próximo da Espanha, que tem um nível de impostos relativamente semelhante ao nosso — o peso no PIB ronda os 39% —, e os níveis dos serviços de que falei são completamente diferentes, há uma diferença abissal.
Por exemplo?
A emissão de um passaporte, por exemplo. Cá pagamos 65€ e o passaporte tem uma validade de cinco anos. Em Espanha custa 40€ e a validade é de dez anos.
Isto é um imposto escondido de cinco em cinco anos. Só para tirar o passaporte. Mas o mesmo acontece com certidões seja do que for, como a de nascimento. Que são digitais, portanto, não têm custos para o Estado. Muita da digitalização já está feita e foi feita com fundos comunitários. Mas uma certidão pode custar seis euros, dez euros ou vinte euros. Quando, como disse, não implica custos. No fundo, o Estado está a taxar um serviço que lhe custa zero.
O Estado não tem de lucrar à conta dos cidadãos. Impõe determinadas regras, nomeadamente exigindo certidões, e depois cobra-as. É um centro de lucro. No Orçamento de Estado para este ano estão inscritos 126 milhões de euros que o Estado vai arrecadar em certidões.
Existe alguma lógica na cobrança de certas taxas, de certos impostos?
O Simplex até foi feito, isto das Loja do Cidadão funciona, mas a digitalização é um processo, tem de evoluir.
O Estado cobra porque precisa de ir buscar dinheiro, mas sem qualquer lógica ou coerência. A lógica está pervertida. O Estado tem necessidades em função daquilo que os cidadãos dizem que o Estado deve fazer. E as necessidades são cada vez maiores. E há sempre mais uma, como a reconstrução da Ucrânia.
Só que o Estado português é muito prático nisto; é muito mais fácil taxar e aumentar os impostos do que olhar para dentro e fazer a sua reconfiguração, os seus ganhos de eficiência. Acaba por ir a todo o lado, e os impostos indiretos são impostos escondidos. Um rico e um pobre têm de pagar certidões, independentemente do que cada um recebe. E isso é injusto. O caso das certidões é absurdo.
A Autoridade Tributária tem evoluído nos últimos anos?
A Autoridade Tributária evoluiu, no sentido em que é muito mais fácil responder às obrigações fiscais. Apesar de Portugal ser o quarto ou o quinto país da OCDE que perde mais tempo a preencher as suas obrigações fiscais. Os particulares perdem um pouco menos de tempo do que as empresas.
Mas as regras nem sempre são transparentes. A interpretação da lei depende quase de serviço de finanças para serviço de finanças.
E há algo que é transversal a todos os serviços públicos, que é a excessiva litigância. As pessoas contestam (e ganham, na grande maioria dos casos), mas o Estado tem quase como instrução litigar até às últimas consequências. Porque se for condenado a pagar na primeira instância e parar por aí, pode vir a ser acusado de estar a favorecer um privado e não estar a defender o Estado.
Defender o Estado é trazer o mais possível de recursos, que são dos contribuintes, para a litigância contra os próprios cidadãos. E não devia acontecer assim, não é assim que acontece noutros países. Devia haver uma regra segundo a qual, por exemplo, o Estado não pode perder mais de metade dos casos sem uma consequência. Mas não há.
Tem de se reequilibrar a relação entre o contribuinte e o Estado, porque, na prática, os contribuintes estão a ser penalizados, mas o Estado também. Porque há esta coisa, que é a síndrome do Terreiro do Paço; quando os governantes chegam estão cheios de ideias, de sonhos, mas de repente apercebem-se de que 90% do seu tempo é perdido a apagar fogos, entres aspas. Não sobra muito tempo para fazer aquelas reformas que fazem sentido e não podem ser deixadas para o jogo partidário.
Qual vai ser o papel da Associação Portuguesa de Contribuintes nessa relação?
É exatamente aqui que queremos estar, não é numa perspetiva dos contribuintes contra o Estado, é numa perspetiva de tornar o Estado mais eficiente e de reequilibrar a balança. Construir uma relação mais saudável e de menos desconfiança entre pagadores de impostos e cobrador de impostos.
Falou da Espanha. A carga fiscal em Portugal é muito diferente da dos restante países da Europa?
Portugal tem uma carga fiscal muito semelhante à dos outros países da Europa. O grande problema é que para um país da nossa dimensão estamos a pagar muito mais impostos sobre o rendimento do trabalho do que os outros países, de um modo geral. Se pagar 50% sobre um salário médio de 1500€, sobram 750€. Se pagar 50% de 3.500€, o salário médio de qualquer cidadão dos países com quem nos queremos comparar, sobram 1.750€. Não é a mesma coisa.
Porque, repare, temos salários da Roménia e um custo de vida que é muito semelhante ao do resto dos países da União Europeia. Estou a falar daquilo que é a conta de supermercado, de energia, de habitação. Tirando os serviços não transacionáveis, como cabeleireiro ou restaurantes, tudo o resto é comparável com os preços pagos lá fora. Sobra muito pouco dinheiro depois da carga fiscal.
Mas isto não é para discutir o peso do Estado na economia, é para discutir o que o Estado nos pode dar e aquilo que podemos suportar em termos de Estado social. Dentro daquilo que as pessoas escolhem nas urnas.
Para escolher nas urnas é preciso conhecer. A OCDE diz que os portugueses estão em último lugar em termos de literacia financeira e fiscal.
Isso preocupa-nos. Foi chumbada [pelo PS e pelo Bloco de Esquerda] no parlamento uma proposta que podia ser uma oportunidade. Era uma recomendação para ter a disciplina de literacia financeira nos currículos escolares.
Os problemas que surgiram no crédito à habitação tiveram muito que ver com esta falta de literacia financeira. Somos o país da Europa com mais taxas variáveis nos empréstimos. As pessoas não conhecem os riscos. E isto preocupa-nos porque, em última análise, as consequências recaem no contribuinte.
Do lado oposto da receita temos a despesa do Estado. E o despesismo. Isso também preocupa a APC?
As nossas congéneres têm os black books [livros negros] sobre o despesismo do Estado, que vai desde a câmara que abre um buraco para pôr um cabo de alta tensão e passados dois meses abre o mesmo buraco para pôr outro cabo qualquer à forma como um ministério gasta o dinheiro do PRR.
Os nossos congéneres alemães recentemente puseram o Estado alemão em tribunal, porque estava a utilizar um fundo do Covid-19 para a Transição Ambiental, que custa dinheiro, como é óbvio. Aquilo subiu ao Tribunal Constitucional, que deu razão aos contribuintes e disse que se aquele fundo foi criado para o Covid, tem de ser utilizado no combate ao Covid. E, como eles têm 18 fundos fora do orçamento, o Tribunal Constitucional fez ainda umas recomendações para acabar com os chamados sacos azuis.
Portanto, também aprendemos com a experiência das nossas congéneres.
Qual é a prioridade da Associação Portuguesa de Contribuintes, neste momento?
Queremos ajudar a fazer uma reforma fiscal, temos essa ambição. Temos uma perspetiva colaborativa com o Estado, não queremos ser antagónicos. E temos o desejo de conseguir em três ou quatro anos um lugar como parceiro na Concertação Social, onde o contribuinte não está representado, com a legitimidade e representatividade que nos for dada pelos nossos associados.
Estes e outros assuntos serão debatidos hoje no Centro de Congressos de Lisboa (Alcântara), a partir das 15:00, onde estarão, entre outros oradores, o presidente da Associação de Contribuintes Europeia, o alemão Michael Jaeger, e o economista António Nogueira Leite.
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