Nos últimos meses são vários os crimes reportados na Europa em que a arma envolvida é uma arma branca (uma faca, por exemplo) e não uma arma de fogo, como é mais comum noutros países, como o Estados Unidos da América.
No Reino Unido, o ataque em Southport que esteve na origem dos motins do início de agosto foi realizado com recurso a uma arma branca e o atentado planeado no concerto da cantora Taylor Swift, em Viena, também seria com recurso a este tipo de armas. São dois exemplos recentes e com maior presença no espaço mediático de outros que têm ocorrido na Europa e em Portugal.
Em entrevista ao SAPO24 sobre este fenómeno observado nos últimos meses, Iris Almeida, psicóloga forense e professora na Egas Moniz School of Health & Science e com currículo em estudos sobre violência, sublinha que "comparando com estudos que existem sobre homicídios, posso dizer que a aquisição de armas de fogo acaba por ser mais restrita, com critérios claros que estão plasmados na lei e isto, sem se poder dizer que é a relação direta, pode ser um fator para se preferir armas brancas".
Na realidade, de acordo com a Lei nº 5/2006, é proibida a posse de uma faca de lâmina com comprimento igual ou superior a 10 centímetros, salvo em situações excecionais e justificadas. Já a posse de armas de fogo é mais restrita, estando geralmente associadas a licenças de caça ou de uso e porte de arma.
Assim, segundo a psicóloga, a arma branca é "muito mais acessível a qualquer um". "Uma arma branca pode ser desde uma faca da cozinha a uma catana. Além disso, existe um fator problemático nos últimos anos pós-pandemia que aumentou este tipo de fenómenos, que é a saúde mental".
Neste ponto, acrescenta que "estes problemas de saúde mental já existiam antes da pandemia, mas vieram a exacerbar-se com os confinamentos e as dificuldades económicas. Isto pode não ser uma relação direta, mas é uma possibilidade".
Em exemplos concretos, recorda momentos anteriores de dificuldades económicas no nosso país, por exemplo, no tempo da troika (entre 2011 e 2014), quando existiu um aumento da violência no geral. "Estas questões foram atenuadas com o aumento do nível de vida nos anos seguintes, mas nos últimos anos pós-pandemia e com o início da guerra na Ucrânia estão piores. A pobreza leva também ao aumento do consumo de substâncias e a que as pessoas possam desenvolver outro tipo de patologias". "A crise económica é global, e por isso todos estes fatores podem ser observados no mundo inteiro", destaca.
Recentemente, os fenómenos de violência com recurso a armas brancas multiplicam-se. No Reino Unido, esta segunda-feira, um homem foi detido após esfaquear uma menina em Leicester Square, isto dias depois de um atacante armado com uma faca ter matado três crianças, uma delas portuguesa, numa escola em Southport, também com recurso a uma faca.
Em França, só desde o início do ano, os ataques com arma branca repetem-se. Em fevereiro, registou-se um ataque na Gare de Lyon, em Paris, com pelo menos três feridos, e outro na mesma cidade em julho, quando os agentes foram chamados por um segurança privado depois de um homem com uma faca ter entrado numa loja Louis Vuitton, acabando por ferir um polícia.
Em abril, também a cidade de Bordéus teve um ataque com um homem a esfaquear duas pessoas, uma delas que acabou morta, sendo o atacante abatido pela polícia.
Esta semana, na Catalunha, também o pai da jovem estrela do futebol espanhol Lamine Yamal foi esfaqueado na cidade de Mataró, cerca de 30 quilómetros a norte de Barcelona, acabando em estado grave no hospital.
Nos crimes planeados entretanto gorados, existe ainda recentemente a tentativa de atentado num concerto da cantora norte-americana Taylor Swift em Viena, onde o suspeito, um jovem de 19 anos, também pretendia usar armas brancas.
Por cá, os exemplos são vários, desde um homem suspeito de homicídio na forma tentada em Ourém, no distrito de Santarém, no início deste mês, ou a detenção por tentativa de homicídio, esta terça-feira, na cidade do Porto, de um homem de 57 anos, que atacou a vítima com um objeto contundente.
Também no norte, no centro comercial Norteshopping, uma facada vitimou, a 28 de junho, um jovem de 18 anos. E em Lisboa, um jovem de 22 anos morreu no dia 24 de julho à noite, depois de ter sido esfaqueado no pescoço durante uma desordem, entre cerca de 20 jovens, no parque de estacionamento do bar Grande Onda, em Carcavelos.
Em Albufeira, também o Tribunal de Portimão condenou em julho a 10 anos de prisão a jovem acusada de matar uma outra em 2023, à porta de uma discoteca em Albufeira, e absolveu o seu então namorado por tentar ocultar a faca.
O crime com arma branca é mais violento?
Em números, nos crimes registados nas Estatísticas da Justiça por tipo de arma, verifica-se um aumento dos crimes com uso de arma branca de 7% nos últimos cinco anos (entre 2018 e 2023) e de 0.4% no último ano (2023).
Além disso, de acordo com o último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), as armas brancas a par das armas de fogo são os meios mais utilizados para a prática de crimes de homicídio, a representarem 35.5% e 20.9% só no ano passado, respetivamente.
Neste aspeto, a psicóloga forense sublinha que o uso de armas brancas "tende a resultar num crime muito mais violento". "Requer um comportamento mais impulsivo, mais violento e mais agressivo. É também um comportamento em que se usa a força física, por isso a ligação com eventuais perturbações mentais", reforça.
Tendo em atenção as novas substâncias sintéticas, estas podem também ser um fator de risco: "Existem consumos de novas substâncias sintéticas que muitas vezes ainda não conhecemos os efeitos nos comportamentos das pessoas. É uma realidade que estamos a acompanhar", garante a especialista.
"Estamos a dirigir-nos para um caminho muito perigoso"
Tal como em outros países, em Portugal o crescimento de forças associadas à extrema-direita também se tem observado, nomeadamente com a formação de partidos e organizações ligados a ideias mais radicais.
No Reino Unido, por exemplo, nas recentes manifestações violentas em diversas cidades, os tumultos nas ruas foram associados grupos de extrema-direita como a English Defence League (Liga de Defesa Inglesa), criada há 15 anos, cujas ações contra a imigração têm sido frequentemente marcadas por explosões sociais. Além disso, Nigel Farage, atual deputado e líder do Reform UK, partido de extrema-direita que ficou em terceiro lugar nas eleições de há um mês, também não se mostrou contra estas movimentações e pediu uma sessão parlamentar extraordinária para debater o tema da violência e do racismo.
Para Iris Almeida, este é um fenómeno que observa com "preocupação" a nível nacional e internacional. "As dificuldades que as pessoas estão a passar ao nível de desemprego e pobreza leva a revolta e comportamentos de violência", acrescenta.
Existe depois a questão da legitimação da violência por parte dos políticos. "Isto é uma bola de neve. Agressividade leva a agressividade. Quanto mais agressiva é a sociedade mais agressividade as pessoas vão demonstrar, por isso é necessária outra perspetiva daquilo que é a violência. Estamos a dirigir-nos para um caminho muito perigoso", aponta a psicóloga.
Estes discursos surgem depois de, segundo a especialista, Portugal ter vindo a desenvolver um trabalho desde o 25 de abril para eliminar a violência, algo que com este tipo de narrativa tende a piorar."Os discursos políticos que vamos ouvindo são cada vez mais direcionados para o uso da violência, e o que tem acontecido nas escolas não é incentivar as pessoas à não-violência, mas sim estes discursos políticos assustadores e que levam as pessoas a ter comportamentos agressivos legitimados por políticos", destaca.
Prevenir a violência? Sim, mas é uma tarefa cada vez mais complicada
Segundo a especialista, as instituições não estão a trabalhar na prevenção primária, ou seja, a educação nas escolas através da transmissão, desde o infantário, de normas e valores de não-violência.
"Nós temos disciplinas nas escolas básicas de cidadania, mas não servem para isto. Não estamos a formar cidadãos com uma cultura de não-violência e as situações de violência aumentam, quer na família quer em outras situações", refere Iris Almeida.
Além disto, as novas formas de violência online estão "hoje em dia banalizadas", segundo a especialista.
Para prevenir a violência, é necessária "uma colaboração entre a escola e a família para quebrarmos o ciclo geracional de violência", algo que não está ainda a ser feito e deve ser tentado a nível global, de acordo com a psicóloga da Egas Moniz School of Health & Science. "O fenómeno da violência não é algo de um país, é algo a nível mundial, e há muitos fatores inter-relacionados", termina.
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