No início de maio, três ataques e agressões a imigrantes no Porto, na zona do Campo 24 de Agosto, na Rua do Bonfim e na Rua Fernandes Tomás, feitos por vários grupos, chamaram a atenção para a existência de crimes de ódio no país. Dias depois, a alegada agressão a uma criança nepalesa, numa escola na Amadora, continuou a discussão.
Mas estes não serão casos únicos e estima-se que os crimes de ódio estarão a aumentar ao longo dos anos — mas a verdade é que Portugal não tem forma de contabilizar todas as ocorrências.
O que são crimes de ódio?
São considerados crimes de ódio todos aqueles que são cometidos "pelo pelo facto de a vítima pertencer a determinada raça, etnia, cor, origem nacional ou territorial, sexo, orientação sexual, identidade de género, religião, ideologia, condição social, física ou mental", explica a APAV no seu site.
Desta forma, "os crimes de ódio são diferentes de outros crimes pelo facto de serem dirigidos não apenas a um indivíduo, mas antes a um determinado grupo com determinadas características específicas".
Em que situações concretas podem ocorrer?
Segundo a APAV, "os grupos alvo dos crimes de ódio podem sentir que não são bem-vindos, que não se encontram seguros numa determinada vizinhança, comunidade, escola ou local de trabalho". A ameaça começa por ser perpetrada junto de uma comunidade inteira e, "sendo membro desta comunidade, pode existir um sentimento coletivo de insegurança e medo".
"Vários são os relatos que chegam à APAV de pessoas vítimas de algum tipo de crime de ódio motivado por discriminação racial, étnica, da orientação sexual, discriminação em torno da nacionalidade, da identidade de género, por ideologias e credos particulares", é descrito.
Os crimes de ódio estão a aumentar?
São várias as instituições que afirmam que a onda de intolerância e violência impulsionada por um discurso de ódio tem conduzido a um aumento exponencial dos crimes de ódio contra as minorias, em diversos países.
Contudo, em Portugal não há forma de se contabilizar todos os crimes de ódio que acontecem. Joana Menezes, gestora da Rede de Apoio a Migrantes e Vítimas de Discriminação (UAVMD), explica ao SAPO24 que a nível nacional não se faz "uma recolha oficial de dados acerca de discriminação ou de crimes de ódio", pelo que, "não tendo dados estatísticos relativamente a anos anteriores, é difícil dizer concretamente se houve um aumento ou não" ao longo do tempo.
Mesmo assim, é verdade que se tem "assistido a uma série de situações que têm acontecido, como ataques violentos e violência física dirigida a pessoas migrantes que não parece que fosse uma realidade anteriormente, ou pelo menos não chegava ao conhecimento da sociedade e que é uma realidade preocupante".
Apesar disto, dados recolhidos em fevereiro junto da PSP e da GNR revelaram que o número de crimes de ódio em Portugal aumentou 38% em 2023, em comparação com 2022.
No total, as autoridades registaram 347 crimes de discriminação e incitamento ao ódio em 2023, mais 77 casos do que no ano anterior, um aumento que é mais evidente na área tutelada pela GNR.
Por sua vez, sabe-se também que o Ministério Público (MP) abriu 792 inquéritos de 2020 a 2023 relativos a crimes de ódio, mas deduziu apenas 14 acusações naquele período, segundo dados da Procuradoria-Geral da República (PGR) divulgados este mês.
De acordo com a informação disponibilizada, entre 2020 e 2022 foram instaurados 530 inquéritos e só foram proferidos três despachos de acusação em cada ano. Em 2023 foram instaurados 262, mas apenas cinco deram origem a acusação, segundo a PGR, acrescentando que os dados dizem respeito a crimes com base ou agravante “ódio”.
Entre 2020 e 2023 foram arquivados 630 processos relativos ao mesmo crime.
Contudo, a PGR esclarece que o “total de inquéritos abertos referem-se a investigações a crimes consumados e tentados e que a partir de 2022 o sistema informático permitiu alargar a recolha de informação estatística ‘a um maior número de realidades relacionadas com este fenómeno’”.
Por isso, explica a PGR, “os dados não são diretamente comparáveis com os anos anteriores, ou seja, as diferenças podem estar ligada à recolha estatística e não necessariamente ao número de inquéritos abertos”.
A PGR explica também que “a diferença entre o número de inquéritos instaurados anualmente e os respetivos desfechos (acusação ou arquivamento) não se reflete necessariamente no indicador das entradas registadas no ano, isto porque há processos que transitam para o ano seguinte”.
Os crimes de ódio são punidos em Portugal?
A contabilização de crimes de ódio que existe neste momento em Portugal pode não englobar todos os casos existentes, devido ao "próprio enquadramento legal. O Código Penal tem o crime de incitamento ao ódio e à violência que prevê situações de discriminação e de discurso de ódio que aconteçam para incitamento público, ou seja, tem de ser uma afirmação proferida publicamente".
Assim, de acordo com o Artigo 240.º do Código Penal, "provocar atos de violência", "difamar ou injuriar", "ameaçar" ou "incitar à discriminação, ao ódio ou à violência" — publicamente, "por qualquer meio destinado a divulgação" — "contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica" é punido "com pena de prisão de 6 meses a 5 anos".
Por sua vez, quem "fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda que incitem ou encorajem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas em razão da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica" ou participar nestas organizações e "nas atividades por elas empreendidas ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento" é punido "com pena de prisão de um a oito anos".
Todavia, Joana Menezes aponta que há a possibilidade de surgirem outras situações que não estejam aqui espelhadas. "Se uma pessoa na rua é ofendida por causa da sua cor de pela, pela sua origem nacional, pela sua identidade de género, esta ofensa à partida será considerada uma injúria, como é uma outra ofensa por outro motivo qualquer. Para que possamos dizer que estamos a ter em atenção os crimes de ódio em Portugal precisamos de garantir que, se acontece um crime de injúria com motivo discriminatório, este é valorizado", exemplifica.
Por isso, não é que o Código Penal "não contemple algumas situações de crimes de ódio, mas há uma distinção feita a nível europeu de crime de ódio e de discurso de ódio e o artigo 240.º a referir-se a alguma coisa concretamente refere-se ao discurso de ódio. Isso significa que há uma série de situações que ficam de parte, nomeadamente aquelas que acontecem num contexto mais privado, no contexto de uma pessoa relativamente a outra sem que seja para divulgação pública".
Assim, "ainda que esse artigo seja importante, é preciso pensar ou numa alteração desse artigo ou numa alteração do Código Penal de forma a poder dar resposta a uma série de situações que neste momento não estão previstas adequadamente".
Para Joana Menezes, prova disso é o que se pode constatar no último Relatório Anual de Segurança Interna, relativo ao ano de 2022: "se fizermos uma pesquisa pelas palavras ódio ou discriminação não encontramos resultamos relativos a estatísticas".
Como é que a Europa olha para os crimes de ódio?
O Conselho da Europa recomendou este mês aos seus 46 Estados-membros que tomem medidas para prevenir e combater os crimes de ódio, disponibilizando serviços de apoio especializados às vítimas, independentemente de serem denunciados à polícia.
“Devem ser incluídas no direito penal disposições eficazes, proporcionadas e dissuasivas para prevenir e combater os crimes de ódio, devendo ser dada prioridade ao desmascaramento, ao reconhecimento e ao registo do elemento de ódio do crime”, lê-se num comunicado divulgado após uma reunião do Comité de Ministros a 7 de maio.
De acordo com o Comité de Ministros do Conselho da Europa, os Estados-membros devem garantir o acesso a assistência jurídica gratuita às vítimas de crimes de ódio, dando “especial atenção às crianças e aos jovens”.
“O elemento ódio deve ser incorporado no direito penal como circunstância agravante na sentença, como parte do crime no momento da acusação criminal, como parte constituinte de infrações penais autónomas, ou através de uma combinação destas técnicas”, salienta.
Para o Conselho da Europa, os agentes policiais também devem receber formação no reconhecimento de “indicadores de preconceito” através de módulos obrigatórios nas academias de polícia.
“As funções dos investigadores especializados em crimes de ódio na polícia e dos procuradores especializados em crimes de ódio devem ser desenvolvidas (…). Os Estados devem combater a impunidade e responder a qualquer comportamento tendencioso por parte das autoridades responsáveis pela aplicação da lei ou de outros profissionais da justiça penal em relação às pessoas alvo de crimes de ódio”, realça.
A recomendação centra-se também na monitorização e na recolha de dados por terceiros, como funcionários públicos. “Os Estados-membros devem garantir que as instituições educativas e os professores contribuam para o desenvolvimento de uma cultura de inclusão e os provedores de serviços de Internet identifiquem e combatam crimes de ódio”, refere o Conselho da Europa.
A organização acrescenta que os 46 Estados-membros devem também promover um espaço cívico seguro, no qual a sociedade civil possa operar e garantir apoio e proteção adequados contra ameaças e ataques.
Em Portugal, quais os apoios disponíveis?
- Em janeiro, foi promulgada a criação da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), sendo este o passo final de um projeto que, apesar de já funcionar há vários anos, existia na dependência do Alto-Comissariado para as Migrações (ACM), e passa agora a existir de forma autónoma. Com a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a criação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), as funções e competências do ACM transitaram para esta nova estrutura, que fica a funcionar na dependência da Assembleia da República.
- A APAV está a promover o Projeto ÓDIO NUNCA MAIS, uma "formação e sensibilização no combate aos crimes de ódio e discurso de ódio, em parceria com entidades nacionais e internacionais e co-financiado pela Comissão Europeia no âmbito do Programa Direitos, Igualdade e Cidadania da União Europeia". Esta entidade inclui também a Rede de Apoio a Migrantes e Vítimas de Discriminação (UAVMD), "uma sub-rede especializada da APAV dedicada ao apoio a pessoas de nacionalidade não portuguesa - imigrantes, refugiados ou que se encontrem em Portugal temporariamente por outros motivos - que tenham sido vítimas de qualquer tipo de crime", incluindo "crimes de ódio e discriminação, bem como situações de discriminação enquanto contra-ordenação".
- A ILGA Portugal, instituição que luta pela igualdade e contra a discriminação das pessoas LGBTI+ e das suas famílias, dá a conhecer o UNI-FORM, "a primeira plataforma online na UE a colocar diretamente em contacto ONGs LGBTI e as respetivas forças de segurança nacionais para um trabalho e esforço conjunto que potencie o aumento de denúncias e combata os crimes de ódio e de discurso de ódio online contra pessoas LGBTI". Este projeto está disponível também em Espanha, no Reino Unido, Bélgica, Malta, Hungria, Letónia, Estónia e na Lituânia.
E o que falta fazer em Portugal?
Joana Menezes frisa que "há ainda um longo caminho a percorrer para termos mecanismos de apoio adequados às vítimas de crimes de ódio e discriminação".
"Falta podermos efetivamente criar mecanismos de denúncia e registo adequado destas situações, falta revermos o enquadramento legal em Portugal para que se possam criminalizar determinadas situações de discriminação e de crimes de ódio que não são criminalizadas — ou pelo menos não ainda da forma que se considera mais adequada", diz.
É também necessária "uma recolha sistemática dos dados para termos ideia de qual é a realidade em Portugal e traçarmos depois as estratégias adequadas para combater".
"Enquanto não tivermos uma noção concreta da dimensão e das características do fenómeno dificilmente podemos dizer quais são as estratégias adequadas para dar resposta as pessoas que são vítimas", nota.
Por isso, a atual discussão sobre crimes de ódio pode trazer futuras respostas. "Às vezes as situações mais dramáticas ou aquelas que de repente acontecem e têm esta dimensão e esta violência são as que despertam para as falhas que o sistema tem. Se alguma coisa de positivo possa sair daqui espero que seja de facto uma reflexão relativamente ao que é preciso fazermos e uma atenção às falhas", remata.
Comentários