A carta, publicada no ‘site’ do projeto de apoio à comunidade africana e afrodescendente em Portugal Afrolink, defende que “a acusação que pende agora sobre Cláudia Simões parece, de algum modo, legitimar a ideia de que a violência a que todes [sic] assistimos foi, afinal, uma consequência dos seus atos”.
“Ou seja, criminalizar a vítima parece servir para desculpabilizar o agressor, trilhando um caminho para a absolvição pública e judicial do agente Carlos Canha, mas sobretudo do sistema”, defendem as mais de 100 personalidades a coletivos antirracistas e de defesa dos direitos humanos que subscrevem o documento, entre os quais a SOS Racismo.
Em causa está uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de 25 de janeiro, na qual é dado provimento ao recurso do agente da PSP Carlos Canha, acusado de agredir Cláudia Simões a 19 de janeiro de 2020 numa paragem de autocarro, depois de um desentendimento motivado pelo facto de a filha de Cláudia Simões, que assistiu às agressões, não ter consigo o passe.
No processo de detenção de Cláudia Simões pelo agente Carlos Canha, que na altura não estava de serviço, a mulher terá empurrado o agente e resistido à detenção e, já no chão, manietada pelo agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), terá mordido o polícia, tendo a juíza de instrução defendido na sua decisão que, ao fazê-lo, Carla Simões “estava a exercer o seu direito de resistência”.
O TRL considerou, por seu lado, que existem indícios suficientes para pronunciar Cláudia Simões por um crime de ofensa à integridade física qualificada, tal como requerido pelo agente PSP, afirmando que quando empurrou o arguido/assistente quando este a queria impedir de se ausentar da paragem de autocarro, tendo sido esse seu comportamento inicial que levou ao escalar da atuação de Carlos Canha".
“Sendo esse o caso, e sabendo a arguida tratar-se de agente da PSP, deve a mesma ser sujeita a julgamento pelos factos constantes do requerimento de abertura de instrução apresentado por Carlos Humberto Nascimento Canha e que se mostrem relevantes, pelo que, neste particular, é de revogar o despacho recorrido, devendo o tribunal a proferir despacho de pronúncia da arguida/assistente Cláudia Regina Mateus Simões”, conclui o acórdão.
Na carta aberta, os subscritores criticam que a vítima alegadamente agredida pelo polícia Cláudia Simões vá a julgamento na qualidade de acusada, criticando que se contrarie o que foi apurado pelo Ministério Público (MP) e decidido em instrução.
“Assim, ao contrário do que apurou o MP, a história que vai a julgamento não é aquela de uma mulher negra, agredida em frente à sua filha de 7 anos, por um agente da PSP, com formação em artes marciais; mas a história de um motorista e de um polícia que percecionam esta mulher como ameaça, reificando o imaginário histórico de uma mulher negra, corpulenta, descontrolada, agressiva – intimidante”, lê-se na carta aberta.
Os subscritores recordam que Carlos Canha vai a julgamento acusado de oito crimes “que contemplam injúria e ofensas à integridade física agravada, sequestro e abuso de poder”, que na noite da agressão o agente acabaria por agredir outras duas pessoas na esquadra e que “foi ainda, mais recentemente, citado na reportagem ‘Quando o Ódio Veste Farda’ (2022) por integrar uma base de dados de 591 elementos das forças de segurança que alegadamente cometem crimes de ódio nas redes sociais”.
“O arrastar deste processo em recursos consecutivos parece ser uma tentativa de retirar a relevância pública e política de um evento que chocou o país […]. Pode-se igualmente esperar, seja pela prática corrente dos tribunais portugueses, seja pela postura reiteradamente negacionista dos mais altos responsáveis da PSP e do Governo, que a dimensão racial que atravessa este caso nem venha a ver a luz do dia”, lê-se na carta aberta.
O caso das agressões ocorreu a 19 de janeiro de 2020 e, na altura, o ministro da Administração Interna determinou à Inspeção Geral da Administração Interna a abertura de um inquérito.
No âmbito desta ocorrência, a organização SOS Racismo recebeu “uma denúncia de violência policial contra a cidadã portuguesa negra”, indicando que a mulher ficou “em estado grave”, resultado das agressões que sofreu na paragem de autocarros e dentro da viatura da PSP em direção à esquadra de Casal de São Brás, na Amadora.
Cláudia Simões foi então constituída arguida e sujeita à medida de coação de termo de identidade e residência, tendo sido indiciada do crime de resistência e coação sobre agente da autoridade.
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