Defende que as primárias - um processo inédito em Portugal, que contou com a participação de quase 180 mil votantes e que colocou Costa, em setembro de 2014, como líder dos socialistas - devem ser alargadas a todas as eleições a cargos e não apenas o secretário-geral do PS. Deve abranger candidatos a deputados, a presidentes de câmara, ao Parlamento Europeu ou a presidentes dos Governos regionais da Madeira e Açores. Por isso não compreende, nem aceita, que o assunto tenha sido colocado na gaveta pela direção do partido. Apresentou, por isso, recurso de uma decisão da Comissão Nacional e promete levar o caso até ao Tribunal Constitucional.
Promover a efetiva participação dos cidadãos na vida partidária e política é o que o move, como exercício da mais pura cidadania. Diz que os partidos políticos são verdadeiros clubes privados e alerta para o perigo de total afastamento dos cidadãos da política. O remédio para combater essa hemorragia? Abrir os partidos à sociedade civil, instituindo o modelo de primárias. Porque na política devem estar os melhores, quem tenha dado provas a nível profissional ou cívico e não mais um “boy”, um “jota” ou alguém que tenha um “padrinho”.
Daniel Adrião é empresário na área das tecnologias de educação, presidente do Fórum Ibero Americano e trabalha no apoio à internacionalização de empresas portuguesas nos mercados da América Latina.
Falou com o SAPO24 sobre primárias, partidos políticos, sobre a necessidade de abertura à sociedade civil e de renovação das elites. A bem do futuro da política.
Foi o rosto da moção “Resgatar a Democracia” no último Congresso Nacional do Partido Socialista, disputando, por inerência estatutária, a liderança com António Costa. Foi e é defensor das primárias para todos os órgãos dentro do partido. Recentemente, impugnou uma deliberação da Comissão Nacional (no início de março) que adiou o tema primárias para o próximo Congresso (junho 2018)...
R: O último Congresso (n.d.r. junho de 2016) tinha na ordem de trabalhos as alterações dos estatutos. Fui o primeiro subscritor, juntamente com 115 militantes de propostas para alteração estatutária. O Congresso, que é o órgão máximo, soberano, decidiu que esse ponto seria remetido para a Comissão Nacional (reunida a 4 de março). E a Comissão Nacional não pode retirar esse ponto que é uma deliberação do Congresso e por isso teria de ser votado. No entanto, Carlos César (líder da bancada parlamentar e presidente do PS) retirou esse ponto da ordem de trabalhos.
O que é que se passou para ser retirado?
R: Foi o embaraço de ter de votar aquela proposta. Porque em 2013 houve uma petição subscrita por 700 pessoas a exigir as primárias, petição encabeçada por João Tiago Silveira. Carlos César e Ana Catarina Mendes assinaram essa petição, entre outros, 50 dos quais são hoje altos dirigentes do PS. É o núcleo duro de António Costa. Essas pessoas estão comprometidas com as primárias. Reivindicaram-nas. Em coerência, não podem agora ser contra. E por isso não votaram a proposta, para não terem de a chumbar. Se o fizessem, tinham de assumir porque é que tinham alterado a sua posição e porque é que as primárias foram boas para eleger o António Costa e não o são para eleger outros cargos e novos líderes.
E por isso está em curso um pedido de impugnação?
R: Foi feito um pedido de impugnação da deliberação da Comissão Nacional que adiou as primárias para o próximo Congresso (junho 2018). O pedido tem a ver com o facto de a Comissão Nacional ter anulado uma decisão do Congresso. E isso não é possível. Apresentei recurso no passado dia 15 de março e espero ganhá-lo.
E quanto tempo para a tomada de decisão?
R: A decisão é em 60 dias. Mas se a decisão não me for favorável não esgotarei o tema nas instâncias internas.
Irá até onde?
R: Até ao Tribunal Constitucional, que é o único que pode julgar recursos das decisões dos órgãos jurisdicionais dos partidos. Tenho a expectativa que no Constitucional estas questões sejam resolvidas rapidamente. Acredito numa decisão antes do próximo Congresso (junho de 2018), para ficar definido se o candidato a secretário-geral é eleito apenas pelos militantes ou aberto, de novo, a simpatizantes em regime de primárias.
Mas o que é que propõe? Primárias que vão muito além de secretário-geral, mais abrangentes?
R: Foram as primárias para secretário-geral. O que proponho é alargar as primárias a todos os candidatos a cargos políticos, de eleição. Câmaras municipais, deputados ou eurodeputados. Aberta aos simpatizantes que se declarem eleitores do PS.
"Como é que um candidato que beneficiou dessa vontade popular rejeita agora as primárias? Se António Costa é líder partidário e, por maioria de razão, é hoje primeiro-ministro, deve-o às primárias."
Mas não haverá um risco de contaminação da eleição, dando espaço para ao aparecimento de populistas, por um lado, ou uma “viciação” dos votos?
R: O risco de contaminação é baixo e não tem expressão. Mesmo que haja intenção de um outro grupo de alterar a votação pela negativa acaba por ser mitigado pelo grosso das pessoas que fazem a diferença. Nem mexe o ponteiro.
"O aparelho tem medo porque deixa de controlar. (...) Passam a ser os cidadãos a decidir, e por norma decidem contra os aparelhos. Por reação. Os cidadãos não se reveem nas máquinas partidárias"
Portanto quem votou, nas primárias, em António Costa, votou porque acreditou no candidato, fossem ou não tradicionais eleitores ou simpatizantes do partido socialista?
R: Quem votou em António Costa, nas primárias (setembro de 2014), podia não ser eleitor fiel do PS, mas queria votar em Costa para primeiro-ministro. Como é que um candidato que beneficiou dessa vontade popular rejeita agora as primárias? Se António Costa é líder partidário e, por maioria de razão, é hoje primeiro-ministro, deve-o às primárias. Não entendo, por isso, como é que a Direção do PS põe as primárias na gaveta.
Foi o rosto da Moção “Resgatar a Democracia”. A democracia necessita de ser resgata? O que é que se pretende para além das primárias?
R: Retirar o poder ao aparelho. Esvaziar esse poder. Defender um modelo semelhante a uma das maiores democracias do mundo (Estados Unidos da América). Em França, por exemplo no PS francês, desde há 10 anos, com Ségolène Royal, a eleição dos candidatos presidenciais é feita em primárias abertas. Hoje, há várias eleições primárias em vários partidos socialistas europeus, França, Itália e na Grã-Bretanha. No PSOE, ao invés, foi chumbada a proposta de Pedro Sanchez para que as primárias fossem abertas. Mas não é exclusivo da esquerda. Em França, a direita também fez. O resultado foi não terem ganho os candidatos tradicionais dos partidos e vencerem os mais improváveis.
"As pessoas querem mudança. (...) Hoje a maioria da população já não se sente representada [nos partidos]. Está fora do sistema. É um iceberg."
Mas com essa abertura, em primárias, haverá por parte dos partidos esse receio de não controlar o processo de eleição?
R: Há medo, porque normalmente ganham os candidatos mais improváveis. E o aparelho tem medo porque deixa de controlar. Hoje, co o atual processo, tem garantias que o seu candidato será eternizado. Com as primárias isso desaparece. Passam a ser os cidadãos a decidir e por norma decidem contra os aparelhos. Por reação. Os cidadãos não se reveem nas máquinas partidárias, nos aparelhos políticos. Querem os candidatos antissistema que apresentem narrativas de rutura e inovação.
"Abrir os partidos à população em geral é uma forma de estancar a hemorragia que afeta a política."
Ou seja, os partidos são organizações fechadas que não abdicam desse poder de decidir o “quem é quem” nas estruturas partidárias?
R: Os partidos são placas giratórias. Não há renovação, só há cooptação. Só chega ao topo da hierarquia de um qualquer partido quem tiver um “padrinho”. Os chamados rostos novos, que os há, foram todos escolhidos a dedo por esses “padrinhos”. Os partidos estão fechados, a lógica é “quem manda somos nós e só entra quem nós queremos". Não há meritocracia. A novidade é que cada vez mais gente não se revê e rejeita este sistema. Querem uma verdadeira mudança.
Ou seja, há uma genuína vontade de mudança?
R: As pessoas querem mudança. Mudanças profundas. Antigamente, o sistema representava a maioria da população. Só as franjas minoritárias não estavam representadas. Hoje, a maioria da população já lá não se sente representada. Está fora do sistema. O sistema funciona como um iceberg. O que está acima, o que se vê, é o sistema político. Por baixo da linha de água, o grosso, o que não se vê, é o descontentamento, a abstenção, os votos brancos e nulos, o que representa a maioria, que não se revê no sistema.
Uma abstenção que tem de ser combatida?
R: Em Portugal, os deputados que se sentam na Assembleia da República representam menos de metade dos eleitores, se somarmos os brancos, nulos, abstenção e votos em partidos sem representação parlamentar. Já ultrapassa os 51%.
Portanto, o “remédio” passa pela sociedade participar na vida dos partidos políticos?
R: Abrir os partidos à população em geral é uma forma de estancar a hemorragia que afeta a política. Esta maioria silenciosa, este descontentamento, é a antecâmara dos extremismos. Estes eleitores são facilmente mobilizados, manobrados e tentados a votar em propostas extremistas. É um voto de raiva contra o sistema. De protesto. Assim se explica o voto em Trump ou no Brexit.
"A política deve ser feita por quem já deu provas à sociedade, a nível profissional e cívico. Deveria ser uma seleção dos melhores. Não é fazer carreira política dentro dos 'jotas'."
Recuperar a confiança dos cidadãos nos partidos passa por corresponsabilizá-los com os votos nas primárias. É isso?
R: Exatamente. As primárias corresponsabilizam quem votou nos candidatos. Retira a decisão das mãos das elites e transfere-as para um conjunto alargado da população.
Mas o que pode trazer esta abertura das estruturas partidárias à sociedade civil?
R: Com esta abertura, com o desmantelar das máquinas partidárias e a transferência do poder de decisão para a sociedade em geral, teremos muito mais gente a participar e gente mais capaz a ser eleita. O escrutínio passa a ser mais fino. As pessoas já não estão disponíveis a eleger o primeiro “boy” que aparece.
"Hoje, cada vez mais as pessoas estão revoltadas contra as elites que defraudaram as suas expectativas."
Permitirá “sangue novo” na política?
R: Quando se desmantelarem estas máquinas o processo de seleção começa por ser mais exigente. Porque as pessoas querem exigência, querem provas dadas. E isso aumenta a qualidade. A política deve ser feita por quem já deu provas à sociedade, a nível profissional e cívico. Deve ser uma seleção dos melhores. Não basta fazer carreira política dentro das “jotas”, isto é o sistema atual e está errado. Só deve ir para política quem mostrou à sociedade que está entre os melhores. Porque, no fundo, a política é uma seleção dos melhores. Ou deveria ser. Porque são eles que nos vão governar. E são os melhores de nós que têm que nos governar.
Tocou num ponto: seleção dos melhores. Tem falado e escrito sobre descontentamento com as elites, seja na política, seja na economia...
R: Hoje, cada vez mais as pessoas estão revoltadas contra as elites que defraudaram as suas expectativas. Foram elites gananciosas que quiseram ter todo o poder e todo o dinheiro. Há cada vez maior concentração de riqueza a nível mundial. É bom ter presente que as elites são 1%, e é contra essa percentagem de acumulação de riqueza e de poder que as pessoas se revoltam.
Há um divórcio claro entre esses 99% da população e o tal 1%, facto que se acentuou com a recente crise?
R: Claro. Quem vive vidas extremas não está disponível para apoiar políticas moderadas que aplicam pequenos paliativos. As pessoas não querem pensos rápidos. Querem mudanças estruturais que permitam uma outra redistribuição da riqueza. Já não vão lá com cantigas. O crescimento económico tem que ser socializado. E não pode sempre beneficiar só uns e sempre só esses. O PIB cresce e tem que impactar na sociedade em geral. Chama-se a isso a socialização do crescimento.
Por fim, nas autárquicas, próximas eleições, qual a sua leitura entre candidatos oficiais de partidos e independentes?
R: Nas autárquicas haverá um boom de independentes. Uns genuínos e outros dissidentes dos partidos, há que reconhecer. E muitos dos independentes são os descontentes com os partidos, muito deles foram ostracizados pelos aparelhos. E estou convencido que haverá mais câmaras a serem ganhas por independentes.
E se o PS tivesse levado a cabo uma eleição desses nomes através de primárias, teríamos outros candidatos, novos rostos?
R: Se a proposta tivesse sido aprovada em junho 2016 os candidatos autárquicos tinham saído da eleição de primárias abertas. E poderia haver muitos mais novos rostos. E o mesmo poderia ter sucedido nos candidatos a deputados, convém recordar.
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