“O direito de propriedade não é um direito pleno, não é um direito que não possa ter que ceder em relação a outros direitos fundamentais como é o da habitação. (…) É um direito fundamental o direito à habitação. Ninguém vive bem, ninguém tem dignidade humana se não tiver direito a estar numa casa, protegido e ter aquele espaço como seu. Nós enquanto sociedade temos naturalmente que fazer essa reflexão”, disse a bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro.
Em entrevista à Lusa, numa altura em que está prestes a completar três meses no cargo, a bastonária apontou a questão da habitação como “um problema social, que vem de há muito”, que se agravou com o aumento do custo do crédito à habitação, o meio preferencial para garantir acesso à habitação em Portugal, uma vez que o arrendamento sempre esteve acima das possibilidades de boa parte dos portugueses.
No entanto, reconheceu, a “colisão de direitos” que resulta de algumas medidas propostas pelo Governo no seu pacote de habitação, “não é um problema com solução fácil” e admitiu que “há argumentos para os dois lados”, mas não tem dúvidas, em relação à prevalência do direito à habitação sobre o direito à propriedade, até porque só o primeiro está consagrado como direito fundamental.
“Se tiver que ceder tem que ceder, porque em primeiro lugar está a dignidade da pessoa humana e só depois é que vem a propriedade”, disse, referindo o exemplo de Viena, na Áustria, onde, na altura da 2.ª Guerra Mundial, o município, proprietário da maioria dos imóveis da cidade, percebeu a necessidade de uma intervenção pública para contrariar a especulação que estava a deixar as pessoas sem uma casa para viver.
“Lanço o repto: se calhar o melhor é pensarmos desse lado, de ver o que podemos fazer enquanto Estado e Governo para tentar refrear esta situação da habitação e da especulação imobiliária. Dizer também que as propostas que ouvi do arrendamento coercivo não me fizeram muito sentido. Não sei se em vez de estarmos a ir buscar uma casa de alguém, fazer-lhe obras e colocá-la no mercado, se não faria antes sentido o próprio Estado agarrar essa incumbência e colocar no mercado de arrendamento a preço razoável”, disse.
Referindo o caso de Lisboa, onde a aposta na habitação pública lhe parece ainda pouco expressiva, Fernanda de Almeida Pinheiro referiu que não é possível a alguém com um salário baixo comportar uma renda sozinho, sendo empurrado para soluções de coabitação que no futuro se podem traduzir em problemas e processos em tribunal, desde logo entre casais, que em processo de separação têm que encontrar solução para aquela que era a casa dos dois.
O drama do “até que o património nos separe”, como referiu a bastonária, é apenas um dos problemas que os advogados enfrentam com a crise da habitação, sendo o principal o dos despejos, situações em que “há um enorme abuso” e violação de direitos de inquilinos, mas também de proprietários, que muitas vezes não conseguem da Justiça a resposta célere que precisam.
Questionada sobre o impacto da questão dos metadados nos processos e decisões judiciais depois de o Tribunal Constitucional (TC) ter considerado que há limites à conservação de dados e ao seu uso na investigação criminal, a bastonária disse que é matéria sobre a qual a Ordem dos Advogados não tem que se pronunciar, mas em termos pessoais sublinhou que “concorda integralmente” com a decisão do TC e defende que os meios de prova num julgamento “não podem ser só aqueles”.
Sobre “a paralisação da justiça administrativa”, à qual já se tinha referido na abertura do ano judicial, Fernanda de Almeida Pinheiro recusou que “a solução esteja do lado da arbitragem”, uma via judicial em crescimento nesta área para contornar a morosidade dos tribunais, e alertou que a arbitragem não tem custos menores nem é mais célere que os tribunais, sendo preferível, na sua opinião, que o Estado mantenha aí a sua litigância.
“Não gosto da privatização da Justiça, porque acho que isso não traz nenhuma segurança acrescida ao cidadão, não traz melhor Justiça, não traz Justiça mais célere e portanto eu acho que o Estado nestas matérias nunca se deve demitir das suas funções constitucionais. (…) Entendo que a Justiça deve ser pública e portanto devemos recorrer o mínimo indispensável à justiça arbitral”, disse.
Ainda questionada sobre as críticas, nomeadamente do presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, às dezenas de recursos da defesa do ex-primeiro-ministro José Sócrates no âmbito do processo Operação Marquês, a bastonária, que sublinhou “não conhecer uma folha desse processo”, recusou “tecer esse juízo de valor” que aponta para litigância de má-fé, e defendeu que os magistrados têm ao dispor os meios processuais necessários para agir se entenderem que existe da parte de um advogado alguma violação.
“Não aceito esse discurso constante de que os advogados estão constantemente a utilizar meios dilatórios para tentar protelar as decisões para fazer prescrever os processos, esse discurso não tem qualquer cabimento. Existem processos que são muito mediáticos e que trazem a atenção de muita gente, mas há uma história para esses processos, há um tempo para esses processos”, disse a bastonária, apontado a falta de meios na investigação e nos tribunais que levam os processos à prescrição.
“Não é o facto de um advogado lançar mão dos meios processuais que tem ao seu dispor e que é seu dever e obrigação processual fazê-lo em defesa do seu cliente que deve ser criticado. Tem que ser criticado o que está a montante. (…) Temos que ter este dever de elevação e de não cairmos na corrente do discurso fácil. Não conhecemos as circunstâncias era melhor não falarmos sobre elas porque isso é preferível para não lançarmos um anátema sobre coisas que não têm nada que saber”, acrescentou.
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