A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, que foi anunciada no início de setembro pelo Ministério da Justiça e esteve entretanto em consulta pública, foi aprovada em Conselho de Ministros a 18 de março e teve hoje a aprovação de " um conjunto de diplomas que desenvolvem uma série de conceitos previstos", indicou a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem.

Em matérias práticas do domínio da "repressão criminal", a ministra confirmou que o Governo pretende transpor o regime de proteção de denunciantes da União Europeia para a lei nacional, estabelecendo este "obrigações da existência de canais específicos de denúncia e que proíbe actos de retaliação".

Outra alteração que Van Dunem revelou fazer parte dos planos do Governo é a refinar o mecanismo para a confissão de crimes de corrupção, pretendendo "que seja possível a dispensa da pena em determinadas condições". Referindo a necessidade de "quebrar os pactos de silêncio" assumidos entre ambas as partes que cometem crimes de corrupção, a ministra sublinhou que "não se trata de criar nada de absolutamente novo, mas sim simplificar as regras que hoje existem à dispensa e também à acumulação da pena", admitindo também a suspensão provisória do processo a quem denuncie o crime e colabore na descoberta da verdade.

Van Dunem, porém, rejeitou que estas medidas se tratem efetivamente da criação de um regime da chamada "delação premiada", defendendo que a dispensa da pena já estava prevista no Código Penal português, mas que "o processo é tão complexo que na prática não se utiliza" e que o que o Governo pretende fazer é apenas "eliminar os principais obstáculos" ao seu uso.

Quanto à dispensa da pena, avançou que haverá dois modelos: o da dispensa obrigatória e o da dispensa facultativa, sendo que o primeiro ocorre quando a denúncia é feita logo no início da investigação (inquérito) e haja a devolução da dádiva resultante do ato corruptivo.

Na dispensa de pena obrigatória, o papel do juiz resume-se a avaliar se estão preenchidos os pressupostos para a aplicação deste instituto jurídico de combate à corrupção.

No caso da dispensa de pena facultativa esta só se aplica a quem praticou corrupção para ato lícito, sendo afastada a hipótese para quem praticou corrupção para ato ilícito. Para a sua aplicação, é ainda preciso que o agente não só confesse o ato, mas também que colabore na descoberta da verdade, podendo isso acontecer quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução.

O Governo prevê também uma harmonização dos prazos de prescrição de 15 anos para crimes de corrupção e outros económico-financeiros cometidos por funcionários e detentores de cargos políticos.

Na fase de julgamento, o executivo pretende que se avance com "acordos sobre a pena aplicável" que permitam "uma negociação na fase de julgamento entre o arguido, o MP e o juiz" que incida sobre os limites máximos e mínimos das penas aplicadas.

Porém, para que tal aconteça, é necessário que haja a "confissão integral e sem reservas" dos factos corruptivos por parte do agente que queira beneficiar do acordo que lhe é favorável em fase de julgamento.

Van Dunem indicou ainda a vontade do Governo de pôr fim aos mega-processos como o que se criou na Operação Marquês, sugerindo uma "intervenção no processo penal no sentido de facilitar a separação de processos e assegurar a possibilidade do MP avaliar cada uma das situações isoladamente". "Os resultados não coincidem muitas vezes com aquilo que são as expectativas" nos mega-processos, admitiu a ministra, sublinhando ainda que, sempre que possível, a autoridade judiciária deve dividir o processo.

O diploma integra também uma diretiva europeia que permitirá o "acesso direto a informação e contas bancárias por parte das autoridades judiciárias e de alguns órgãos de polícia criminal", em crimes económico-financeiros de maior gravidade no âmbito da corrupção, o que remete para um catálogo de crimes a designar.

A lei nova que resulte da aplicação destas medidas apenas aplicar-se-á para o futuro, tendo apenas "efeitos retroativos quando, da sua aplicação, resultar o efeito mais favorável para o arguido", confirmou a ministra ao SAPO24.

Na vertente da prevenção, um dos diplomas prevê "um regime geral da prevenção da corrupção, que envolve quer entidades públicas, quer entidades privadas", revelou a ministra, passando existir a obrigação "de programas de cumprimento normativo".

Assim, estas médias e grandes empresas passam a ter "a ter a obrigação planos de prevenção de riscos de corrupção, a ter códigos de conduta, a ter canais para efeitos de denúncia interna e a serem responsáveis pelo cumprimento dessas normas", sendo que "violação dessas regras constitui contra-ordenação passível de coima", indicou Van Dunem.

Além disso, foi também aprovada a criação de uma entidade independente que vai fazer cumprir esse regime, sendo "responsável não só pelo acompanhamento e execução do regime geral de prevenção da corrupção, como também pela implementação da estratégia na sua dimensão preventiva e pela recolha de informação que tenha a ver com a parte repressiva".

Este mecanismo terá poderes de promoção e iniciativa, será ouvido quando necessário e terá planos de anuais e trianuais que serão "desenvolvidos em articulação com as várias áreas da governação".

Questionada pelo SAPO24 sobre quem integrará esta entidade, como será constituída e a quem irá reportar, Van Dunem limitou-se a adiantar que terá um presidente, vice-presidente, um conselho estratégico, uma comissão de acompanhamento e uma comissão de sanções. Inspeções-gerais terão representação neste órgão, assim como a Ordem dos Advogados, a Procuradoria-Geral da República e o Tribunal de Contas. Por monitorizar também empresas de cariz privado, a entidade terá "alguém ligado ao comércio ou indústria", assim como um especialista em investigação neste tipo de matérias.

O objetivo é que, através da educação e da formação preventiva, se crie "um ecossistema que seja hostil a fenómenos de natureza corruptiva", indicou a ministra.

“O Governo está fortemente empenhado neste pacote na perspetiva de criar condições efetivas, quer para a prevenção, quer para a repressão de fenómenos corruptivos" porque quer que "haja uma prevenção efetiva através do julgamento e da aplicação de sanções", indicou Van Dunem.

A ministra, todavia, admitiu que se têm assistido "a processos muito longos e a resultados que não coincidem com as expetativas", o que "gera preocupações a nível social".

Ainda assim, Francisca Van Dunem negou que algumas das medidas agora aprovadas pelo Governo tivessem sido adotadas por "pressão" da recente decisão instrutória do processo Operação Marquês, observando que a discussão pública da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção terminou a 18 de março passado.

A ministra manifestou a sua convicção de que a proposta do Governo terá "amplo consenso" no parlamento, uma vez que se trata de "matéria transversal" e que configura "medidas equilibradas e razoáveis", que "podem ter eficácia".

Enriquecimento injustificado, a omissão que ficou nesta estratégia

Dentro do pacote de medidas de combate à corrupção ficou por figurar nesta apresentação algum tipo de proposta concreta para evitar o enriquecimento injustificado, algo que foi questionado pelos jornalistas.

“O enriquecimento injustificado nunca foi objeto desta estratégia. As propostas dos juízes surgiram numa conferência [durante a discussão pública da Estratégia] e nessa altura a versão que havia desta criminalização não era propriamente a de agora”, afirmou a ministra.

Segundo Francisca van Dunem, a proposta inicial da associação tinha “grande semelhança com o que tinha sido aprovado na Assembleia da República no quadro de Pacote da Transparência", aprovado em junho de 2019, que visa disciplinar os altos cargos políticos relativamente à declaração de rendimentos.

Este pacote, sublinhou, já prevê “penas de prisão para quem não apresente de forma intencional as declarações de interesses e também penas de prisão para as situações em que os titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos ocultem dessa declaração património relevante”.

Por isso, segundo a titular da pasta da justiça, “o que está em causa é uma alteração de uma lei do Pacote de Transparência”, matéria da competência do parlamento.

A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) entregou este mês aos grupos parlamentares uma proposta de alteração à lei com vista a uma "punição mais eficaz" de titulares de funções públicas, em caso de ocultação intencional de riqueza.

Na lei atual o titular pode declarar um aumento patrimonial superior a 50 salários mínimos mensais – por exemplo, a aquisição da propriedade de um bem ou a liquidação de um empréstimo bancário – sem ter de explicar a sua proveniência o que não assegura a fiscalização da aquisição de riqueza no exercício de funções públicas.

Após este diagnóstico, a ASJP solicita à Assembleia da República que equacione algumas alterações à Lei de Obrigações Declarativas, nomeadamente a introdução da descrição de promessas de vantagens patrimoniais futuras que possam alterar os valores declarados, num montante superior a 50 salários mínimos mensais recebidos entre a data de início do exercício das funções e os três anos após o seu termo.

É defendido que conste nas declarações a indicação dos factos geradores das alterações que deram origem ao aumento dos rendimentos ou do ativo patrimonial, à redução do passivo ou à promessa de vantagens patrimoniais futuras.

Os juízes defendem também um agravamento das penas para o incumprimento, de um a cinco anos de prisão.

Com base no projeto dos juízes, vários partidos já apresentaram iniciativas legislativas próprias e hoje o PS propôs um agravamento para cinco anos de prisão do crime de ocultação intencional de riqueza por titular de altas funções públicas, alargando também as obrigações declarativas de incremento do património ou de rendimento.