João Nascimento, 40 anos, empresário e empreendedor, curioso irrequieto e crítico atento dos nossos modos de vida, fala com enorme humildade de um projeto que, em poucas horas, juntou os melhores especialistas mundiais para dar resposta ao problema da falta de ventiladores.
Quando afirma que “sou apenas mais um”, recorda-nos o desapego necessário em relação aos grandes movimentos que têm, quase sempre, na sua origem, uma ideia e a motivação para fazer a diferença. Perante as notícias do aumento do número de casos do novo coronavírus na Europa e, especialmente, o número de mortes em Itália, muito por falta de ventiladores nos hospitais, João Nascimento debruçou-se sobre o problema, partiu-o em partes, desconstruiu a sua génese e, o resto, já se conhece: publicou um tweet que foi partilhado por um dos seus professores em Harvard e criou um movimento global com várias equipas a trabalhar em simultâneo para encontrarem soluções para o mesmo problema.
João Nascimento está atualmente a estudar Neurociências e Filosofia na universidade de Harvard e é o mentor do Projecto Open Air, assente na plataforma Slack
e com vários canais de discussão que juntam, atualmente, mais de duas mil pessoas, muitas delas portuguesas, em áreas que vão da medicina, à engenharia e computação, incluindo, ainda, uma equipa de Fórmula 1.
Recuemos três dias… Como surgiu a ideia e como é que o projecto arrancou?
Sou daquelas pessoas que é incapaz de estar parada ou de ficar à espera que as coisas aconteçam. A partir do momento que me deparo com um problema, começo, inevitavelmente, a pensar numa solução. Obviamente que, perante uma pandemia mundial, não me ocorreu ser capaz de a resolver, mas pensei em desmontar o problema por partes: qual a principal razão para as mortes? Falta de assistência. Qual a razão para a falta de assistência? Faltam ventiladores. Porquê? Porque 5 a 10% dos doentes acaba por necessitar de ventilação. E porquê? Porque os hospitais não estão preparados para este fluxo de pessoas. Novamente, porquê? Por que razão não há um reforço de ventiladores? Nada disto se consegue de um dia para o outro, as linhas de montagem estão essencialmente na Ásia, zona do mundo que está, literalmente, parada.
Problema real identificado. Este é o método first principle ou seja, dividir o problema por partes para começar a fazer perguntas, mesmo as que nos possam parecer imbecis. Devemos perguntar porque não e, principalmente, perguntar 'porquê' para, desta forma, chegarmos rapidamente à questão final: a máquina de suporte de vida. Foi então que me questionei: a humanidade vai perecer porque falta uma máquina? Comecei a pensar sobre a máquina, produzida essencialmente de material plástico, o que nos leva imediatamente à ideia de que é produzida a partir de um molde e, consequentemente, este pode ser reproduzido com tecnologia 3D. Que outros componentes fazem parte da máquina?
Foi assim que cheguei ao twitter: procurando open source ventilators, descobri dois ingleses que também falavam sobre este tema e que já tinham feito algum trabalho de pesquisa. O passo seguinte já se sabe: um site para explicar o conceito, um canal de Slack dedicado (que já existia) e um tweet que se espalhou à escala global para criar este fenómeno orgânico, no qual não decido nada porque as decisões são sempre tomadas em conjunto.
Eu não fui o criador de rigorosamente nada, juntei-me a pessoas que já estavam a pensar no assunto e sugeri que nos organizássemos. O mérito é totalmente de quem está a trabalhar nisto, investigando e procurando soluções.
Para além de estarem, de facto, muitas pessoas a trabalhar numa solução, o que já existe? Isto é, já existe algo em concreto?
Neste momento temos, no Slack, 30 a 40 canais ativos com vários debates de engenharia a decorrer. Perdi, há muitas horas, a capacidade e o pulso à situação, porque há muitos projetos em curso.
A ideia original era a de criar um ventilador e levar essa solução rapidamente aos hospitais que mais dela precisam. O que aconteceu entretanto?
Efetivamente, a ideia foi-se expandindo organicamente porque, à medida que se foram juntando especialistas ao grupo, o foco foi-se dispersando e as opções foram ampliadas. Temos, por exemplo, engenheiros a trabalhar na possibilidade de multiplicar a capacidade de uma máquina, redesenhando-a para que possa servir mais do que um doente em simultâneo, duplicando ou triplicando a capacidade de resposta. Outros trabalham ao nível dos componentes do ventilador para fazer adaptações que permitam ter mais do que um paciente ligado à máquina ou seja, soluções diferentes para o mesmo problema.
Se o objetivo inicial era o de encontrar uma solução, quando é que teremos uma solução ou, eventualmente, várias soluções?
Neste momento, não sei responder e, por isso mesmo, uma das nossas últimas medidas foi a de recolher e filtrar todas as ideias em debate nos vários canais para saber se já há aplicações práticas. Se as encontrarmos, vão ser peer reviewed [revistas pelas pares, em tradução livre] muito rapidamente para serem aplicadas.
O mais interessante disto tudo é que, com uma ideia inicial e uma necessidade muito concreta, escalámos para um conjunto de propostas muito diversas: temos, por exemplo, uma equipa que está na fase final de concretização de um espelho que faz a medição por infra-vermelhos da febre das pessoas; temos equipas a desenvolverem máscaras que podem ser produzidas a uma escala massiva em dois dias; temos equipas que estão a adaptar motores de aquários e, mesmo, de aspiradores, para se fazerem ventiladores de emergência para ambulâncias. É um projeto que ganhou vida própria, com uma escala global e que tem já mais de uma centena de portugueses a colaborar.
Como imagina que se poderá manter a motivação ao longo do tempo?
Há um risco das pessoas perderem a motivação e, pelo menos, de continuarem a dedicar tantas horas ao projeto. Estamos a falar de profissionais altamente qualificados que não estão a ser remunerados e que estão a abdicar do seu tempo para estarem neste grupo a pensar e a trabalhar. Há, no entanto, uma outra forma de ver a coisa, uma visão romântica, porque quando estes saírem, entrarão outros, cheios de vontade.
Não quero criar expetativas para algo que pode não se concretizar mas há, neste enorme grupo, ideias fantásticas que podem ajudar, em muito, a humanidade nos mais diversos quadrantes, sendo de ressalvar que tudo isto nasce da generosidade das pessoas envolvidas, que estão a dar o seu tempo e conhecimento num ambiente de respeito e solidariedade como nunca encontrei. O respeito académico e a empatia que se criou entre estas pessoas, com um espírito muito grande de entre-ajuda, é inédito e acredito que acontece porque estamos juntos numa missão que não é financeira.
É óbvio que, se algumas destas soluções forem patenteadas, poderão ficar milionários mas, creio, não é essa a razão pela qual estão tão dedicados a trabalhar. A motivação de um indivíduo, quando acredita numa ideia, é sempre incrivelmente superior a qualquer outra coisa e, por isso, a história do mundo acontece assim, quando as pessoas, motivadas por uma ideia, se juntam para a concretizar.
O projeto pode vir a ter algum tipo de financiamento ou apoio para suportar custos?
Já fomos abordados por várias empresas não apenas para colocarem as suas linhas de montagem à disposição, como também para patrocinarem financeiramente alguns projectos. Também temos empresas de crowdsourcing a oferecerem-se para montar plataformas e temos uma equipa a trabalhar nesse sentido. É possível que o modelo evolua mas não sei exactamente de que forma. Até aqui cresceu de forma orgânica e sem envolvimento de capital. Naturalmente que, a partir de uma determinada altura, teremos de estar preparados para esta questão.
Previsões para daqui a três dias?
É difícil fazer previsões para daqui a três horas, pelo que para três dias… não sei.
Prevejo que o movimento continue, porque a tração que tem, e o número de pessoas envolvidas, leva-me a pensar que não vai parar, mas espero que esteja mais organizado para termos perspetivas mais concretas, nomeadamente ao nível de uma linha temporal para cada projeto, para percebermos o tempo que cada um demorará a desenvolver. Neste momento temos já uma estrutura com uma equipa de managers, project managers e line managers. São quase duas mil pessoas e, como qualquer organização, tem de haver uma estrutura que a impeça de se tornar caótica. A partir do momento em que tenhamos alguma fluidez nas equipas já começamos a poder perceber quantas pessoas podem estar alocadas a cada projeto e o tempo que cada um demora a concretizar-se.
Este pode ser um exemplo de restauração da fé na humanidade?
Depois de tudo isto seria impossível dizer que não. E o espírito critico que me caracteriza e que tenho mantido principalmente ao nível do nosso contexto social é, principalmente, um espírito de exigência. Desilude-me que pessoas tão capazes como nós tenham tão pouca autoestima e que percam tempo com ideias fúteis, ou projetos que não nos levam a lado nenhum… Temos, na nossa equipa, muitos engenheiros portugueses, formados em várias universidades nacionais, como a Universidade do Porto, Coimbra ou o Instituto Superior Técnico, que estão entre os melhores do mundo.
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