O decreto-lei 117/2024, de 30 de dezembro, que procede à 7.ª alteração ao RJIGT, aprovado pelo decreto-lei 80/2015, permite a reclassificação simplificada de terrenos rústicos em urbanos, por deliberação dos órgãos municipais, desde que destinados à construção de habitação.

A alteração ao RJIGT foi promulgada pelo Presidente da República, apesar de Marcelo Rebelo de Sousa ter considerado que a lei constitui “um entorse significativo [sic] em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”.

Bloco de Esquerda, PCP, Livre e PAN requereram a apreciação parlamentar do decreto-lei que flexibiliza a construção em solos rústicos, incluindo em áreas menos protegidas das reservas ecológica (REN) e agrícola nacionais (RAN), mas as resoluções para cessar a sua vigência foram recusadas com os votos contra de PSD, Chega, CDS-PP, Iniciativa Liberal e deputado não inscrito, abstenção do PS e votos a favor dos proponentes e quatro deputados socialistas.

O PS apresentou propostas de alteração ao diploma, após o PSD aceitar as principais modificações impostas pelos socialistas, para evitar a revogação, que baixaram à especialidade para discussão com outras do Chega e dos sociais-democratas, antes de serem votadas em plenário e alterarem o decreto-lei.

Eis os pontos essenciais da alteração ao RJIGT e das posições da sociedade civil, academia e partidos e movimentos sobre o diploma:

Ausência de debate e receios públicos 

A alteração legislativa foi anunciada genericamente em 28 de novembro e aprovada sem debate público prévio, mas as intenções do Governo de Luís Montenegro (PSD/CDS-PP) geraram desde logo a oposição de dezenas de organizações não-governamentais (ONG) do ambiente que, no início de dezembro, lançaram um manifesto a repudiar a construção na REN e RAN, afirmando-se contra “uma agenda de promotores imobiliários”.

As organizações, entre as quais Associação Natureza Portugal/WWF, Fapas, GEOTA, Liga para a Proteção da Natureza (LPN), Quercus, Zero e Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) uniram-se “em apoio à habitação pública em zonas urbanas consolidadas”, reabilitação de imóveis devolutos e “reconversão de edifícios de escritórios” para “habitação a custos controlados”.

Ainda em dezembro, 16 ONG expressaram preocupação numa carta aberta, destacando as características naturais essenciais dos solos rústicos, “adequados para atividades agrícolas, florestais, de conservação e lazer”, e que a alteração contradiz compromissos internacionais, podendo levar à fragmentação agrícola e destruição florestal.

A Zero alertou também na altura que permitir construção em solos rústicos, na RAN e REN, coloca em causa princípios de ordenamento do território e de proteção de âmbito nacional, sendo as decisões sujeitas a interpretações diferenciadas das assembleias municipais, arriscando-se a construção em solos agrícolas e ambientalmente importantes.

Especialistas do Laboratório Associado Terra, que junta mais de 400 investigadores das universidades de Lisboa e Coimbra, alertaram para os riscos da urbanização descontrolada. A sustentabilidade no uso dos recursos naturais é uma premissa fundamental para evitar desastres ecológicos e económicos, avisaram.

Necessidade de revisitar o diploma 

Embora no diploma se refira que foram ouvidos a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), os órgãos de governo dos Açores e da Madeira e a Ordem dos Arquitetos, após a publicação, a associação profissional defendeu que a reclassificação de solos na REN e RAN “deve ser excecional e devidamente fundamentada”, o que não está salvaguardado na nova lei.

Mais de 600 especialistas e antigos responsáveis políticos criticaram, numa carta aberta, promovida pela Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação, a medida do Governo, por considerarem que não resolverá a crise de habitação e prejudicará o ambiente. “Irá ainda fragmentar solo rústico essencial à nossa segurança alimentar e potenciar uma valorização súbita dos terrenos rústicos para fins imobiliários, inibindo o seu uso produtivo”, sublinharam.

Entre os subscritores, que já totalizam 2.400, destacam-se membros de vários governos do PS e do PSD, como os antigos governantes Amílcar Theias, João Cravinho, Ana Pinho, Artur da Rosa Pires, Carlos Miguel, Carlos Pimenta e João Ferrão.

Apreciação parlamentar e os seus efeitos 

BE, PCP, Livre e PAN pediram a apreciação parlamentar na sequência das manifestações públicas contra o diploma, nomeadamente dos arquitetos Aitor Varea Oro, Sílvia Jorge e Helena Roseta, alertando para um aumento dos processos especulativos já altamente inflacionados no país, o que levanta questões de transparência sobre este tipo de instrumentos agora liberalizados.

Os 14 deputados que solicitaram a apreciação parlamentar consideram ainda que o conceito de valor moderado previsto no diploma levará a um aumento generalizado de preços de habitações, bem como do próprio solo rústico passível de reclassificação.

Em caso de aprovação da revogação, o diploma deixava de vigorar a partir da publicação em Diário da República, não podendo ser recuperado na mesma sessão legislativa, mas como foram recusados e apresentadas alterações, as propostas baixaram às comissões para discussão na especialidade, antes da votação final global em plenário.

Principais alterações ao RJIGT em vigor 

O Governo diz no decreto-lei que a maior disponibilidade de terrenos “facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis, promovendo, assim, uma maior equidade social e permitindo que as famílias portuguesas tenham acesso a habitação digna”.

O regime especial de reclassificação assegura que pelo menos 700/1.000 da área total de construção acima do solo se destina a habitação pública ou a habitação de valor moderado.

O executivo explica que não será habitação a “custos controlados”, mas casas para a classe média, “ponderando valores medianos dos mercados local e nacional, e definindo valores máximos para assegurar maior equidade”.

A alteração do RJIGT possibilita, a título excecional, construir em solos compatíveis com área urbana já existente, “continuando a vigorar a proibição de construção em unidades de terra com aptidão elevada para o uso agrícola, nos termos” da RAN, de classe A1 ou solos da classe A e B.

Passa a ser possível construir em terras com “aptidão moderada para o uso agrícola”, aptidão marginal ou condicionada “a uso específico”, ou solos com “riscos de erosão elevados” e “excesso de água ou uma drenagem pobre”.

Quanto à REN, refere-se, “continuam a ser salvaguardados os valores e funções naturais fundamentais, bem como prevenidos os riscos para pessoas e bens”.

Fica proibida a reclassificação para solo urbano de áreas no Sistema Nacional de Áreas Classificadas, zonas perigosas ou com risco de inundação, por exemplo, e, entre outras, abrangidas por programas especiais da orla costeira, aproveitamentos hidroagrícolas, cursos de água ou dunas.

No entanto, será possível construir na REN em “áreas estratégicas de infiltração e de proteção e recarga de aquíferos”, “de elevado risco de erosão hídrica do solo” e de “instabilidade de vertentes”.

A reclassificação para solo urbano “deve contribuir, de forma inequívoca, para a consolidação das áreas urbanas”, estabelece o diploma, que revoga, porém, a necessidade de demonstração da sustentabilidade económica e financeira da transformação do solo, nomeadamente quanto à “indisponibilidade de solo urbano, na área urbana existente” e do impacto da carga urbanística nas infraestruturas existentes.

Entrada em vigor do decreto-lei 

O diploma entra em vigor 30 dias após a publicação, em 30 de dezembro, mas a norma com exceções à suspensão de áreas urbanizáveis já produz efeitos desde 31 de dezembro.

No documento refere-se que, tendo em conta que em 31 de dezembro findava “o prazo para a integração das regras de qualificação e classificação do solo nos planos municipais e intermunicipais de ordenamento do território”, embora mantendo aquele prazo, “possibilita-se a realização de operações urbanísticas cuja finalidade seja habitacional ou conexa”.

O RJIGT previa, no seu artigo 199.º, que os municípios procedessem, até 31 de dezembro de 2024, à revisão ou alteração dos PDM (Plano Diretor Municipal) ou intermunicipais para os adequar às regras de classificação e qualificação do solo, sob pena de suspensão das normas relativas às áreas urbanizáveis ou de urbanização programada inseridas nos planos territoriais em vigor.

A medida decorre da publicação, em 2014, da lei de bases dos solos, que distinguiu entre terrenos rústicos e urbanos, acabando com a classificação de urbanizável ou de urbanização programada, que deviam ser revistos ou alterados nos planos municipais de acordo com as suas características.

Os prazos para essa revisão foram sendo prorrogados, e a alteração ao RJIGT introduz agora exceções à suspensão automática, prevendo não se aplicar “às áreas urbanizáveis ou de urbanização programada que tenham adquirido, entretanto, as características de solo urbano”, ou “até ao termo do prazo para execução das obras de urbanização” definido em plano de pormenor ou contrato de urbanização.

Do risco da guetização aos custos para as autarquias 

Em audição parlamentar, a arquiteta Helena Roseta considerou que o risco de corrupção apontado à construção em solos rústicos se combate com transparência, divulgando consultores do Governo e autarquias, e defendeu a fundamentação na mudança de usos dos terrenos.

A antiga deputada pelo PSD e PS referiu que as autarquias devem usar medidas ao seu alcance, como o agravamento do Imposto Municipal de Imóveis (IMI) para “casas vagas” há muito tempo e alertou para outro aspeto “muito perigoso”, da possibilidade de construção em áreas agrícolas, porque “vai criar guetos de trabalhadores agrícolas".

O ministro das Infraestruturas considerou que a “lei dos solos” não é a “bala de prata que vai resolver todos os problemas", mas defendeu que "vai baixar os preços na habitação”.

Miguel Pinto Luz, que tutela também a pasta da Habitação, disse estar disponível para se poder “adaptar” e “melhorar” o diploma, e que aguardava por propostas do PS, que tem colocado em causa a criação de um preço de referência para os imóveis (valor mediano) que os socialistas consideram que pode fazer subir os preços de venda.

Um dos vice-presidentes da ANMP, José Ribau Esteves (PSD), defendeu que a construção em solos rústicos das reservas agrícola e ecológica deve ser clarificada na contiguidade urbana, ou os custos recairão sobre as autarquias.

Da sociedade civil à academia 

O Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) deu parecer negativo ao decreto-lei, reconhecendo que a escassez de solo urbano pode contribuir para o aumento do preço das casas, mas essa escassez não se regista em todo o país.

O CNADS, no parecer subscrito por Filipe Duarte Santos, acrescenta que a proposta surge em “contradição frontal” com o designado “modelo europeu de intervenção urbana”, consagrado em múltiplos documentos de política e programas de “cooperação territorial europeia, de que Portugal é signatário e em que tem participação ativa”.

A responsável pelo Portal da Construção Sustentável (PCS), Aline Guerreiro, considerou que a possibilidade de reclassificação de solos rústicos é "mais um prego no caixão do ordenamento do território" e não vai baixar o preço das casas.

"A solução não é, definitivamente, a de impermeabilizar mais solo, muito menos em espaço rural", vincou.

A Associação Portuguesa de Urbanistas (APU) pediu ao Governo a “alteração ou revogação” do decreto-lei que altera o RJIGT, que revogou a necessidade de fundamentação para se reclassificar solos rústicos em urbanos.

Também a Ad Urbem - Associação para o Desenvolvimento do Direito do Urbanismo e da Construção defendeu que a proposta tem consequências negativas e aumenta “dúvidas e complexidades processuais”.

Os PDM "em vigor tinham perímetros urbanos sobredimensionados, muitíssimo acima das reais necessidades de urbanização e edificação, o que permitiu e até fomentou uma ocupação urbana fragmentada, desordenada”, lembrou.

Para o diretor do Centro de Estudos Geográficos (CEG), José Luís Zêzere, a construção em solos rústicos, incluindo em vertentes na REN, abre “uma caixa de Pandora” com custos no futuro, apontando para 240 mortos por deslizamentos em século e meio.

“Os diferentes elementos que constituem a rede ecológica nacional têm uma coisa que se chama usos compatíveis. Há uma matriz de usos compatíveis, que diz [que] há algumas coisas que se podem fazer ali, as áreas de instabilidade de vertentes são daquelas que têm menos usos compatíveis, e bem, porque são áreas perigosas de facto”, salientou.

O engenheiro florestal Pedro Bingre do Amaral considerou que a construção em solos rústicos transfere para espaço rural a especulação nos terrenos urbanos, onde os índices de construção previstos nos planos dão para “19 milhões de casas”.

O também presidente da LPN disse à Lusa não ter dúvidas sobre o resultado do diploma: “O que vamos fazer com isto é que nós, pela via fiscal, não combatemos esta especulação nos solos no perímetro urbano e vamos transferir essa especulação para o solo rústico”.

Mais de duas dezenas de ONG de ambiente exigiram a revogação do diploma e pediram uma audiência ao Presidente da República para discutir o assunto, apontando que "ao criar nos mercados fundiários expectativas de valorização súbita dos terrenos por via de loteamentos avulsos", o decreto-lei "irá agravar os custos da habitação e das infraestruturas urbanas, ao mesmo tempo que prejudica a agricultura, a silvicultura e a conservação da Natureza”.

A associação Frente Cívica escreveu uma carta aos partidos representados no parlamento, apelando à revogação da “ignóbil trafulhice” do diploma, alertando que leva “a práticas corruptivas”.

Do desafio do PS à “boa articulação” com o PSD 

No debate da apreciação parlamentar, em 24 de janeiro, o ministro Adjunto e da Coesão Territorial garantiu que o PSD fará “uma boa articulação” com as propostas de alteração do PS ao diploma que permite reclassificar terrenos rústicos em urbanos, inviabilizando a sua revogação.

“O que é importante é que haja mais casas e mais baratas para a classe média em Portugal", afirmou Manuel Castro Almeida, admitindo que, como o Governo não tem apoio maioritário no parlamento, está aberto a incluir propostas de outros partidos, considerando que, com as alterações do PS, a lei “não irá tão longe”.

A socialista Maria Begonha criticou o executivo por não ter apresentado a sua iniciativa ao parlamento e realçou que o Governo falha no "único motivo que pode justificar a excecionalidade” do diploma, de aumentar a oferta de habitação pública, e, por essa razão, o PS apresentou várias alterações ao texto do executivo, como a revogação do conceito de "valor moderado" e a introdução dos conceitos de "habitação a custos controlados" e de "arrendamento acessível".

As alterações em discussão na especialidade 

As alterações do PS ao diploma passam, em vez do conceito de habitação de “valor moderado”, a substituição “por conceitos já consolidados”, nomeadamente de “habitação a custos controlados, bem como o arrendamento acessível, que limita os preços de mercado”.

A proposta repõe o critério de contiguidade territorial, evitando qualquer interpretação “que permita o surgimento de ilhas urbanas no território" e propõe que seja “reposta a salvaguarda, eliminada pelo Governo, de que o regime excecional de reclassificação apenas se aplica após a verificação de solos urbanos disponíveis”, assim como da demonstração dos impactos nas infraestruturas existentes e previsão de novas, e da “viabilidade económico-financeira da proposta”, incluindo identificação de fontes de financiamento.

Outra alteração visa as áreas da REN, introduzindo “um segundo grau de verificação” que, respeitando “a vontade última das autarquias”, seja elaborado em solos que não sejam exclusivamente públicos um parecer das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), não vinculativo.

Ainda em termos da REN, a proposta acrescenta às proibições de reclassificação para solo urbano as áreas “estratégicas de infiltração e de proteção e recarga de aquíferos”, de “elevado risco de erosão hídrica do solo” e de “instabilidade de vertentes”.

Os socialistas querem ainda revogar a possibilidade de construir habitação destinada ao alojamento de trabalhadores agrícolas fora das áreas urbanas existentes e defendem a redução do prazo para concretizar as obras de urbanização em solos reclassificados, de cinco para três anos, eventualmente prorrogado em metade deste tempo após avaliação dos resultados.

A vigência do diploma, durante três anos contados após a produção de efeitos, poderá ser prorrogada depois de uma avaliação do aumento das habitações a custos controlados ou no arrendamento acessível, nos terrenos reclassificados, e da manutenção ou redução do valor mediano das vendas e rendas por metro quadrado em novos contratos.

Na proposta de alteração do Chega defende-se que a prevista reclassificação do solo fundamentada em parecer técnico, seja “de entidade independente ao município com competência técnica para o efeito”, e acrescenta-se que a reclassificação de terrenos “da REN e Reserva Agrícola Nacional [RAN]” seja “acompanhada de relatório técnico detalhado” com “análise de impacte ambiental, social e económico” e “justificação da necessidade da reclassificação”.

Nos solos da REN e RAN acrescem ainda “pareceres vinculativos” e convocação pela câmara municipal de conferência procedimental, antecedida de consulta pública por, no mínimo de 20 dias do projeto de deliberação, para ser submetido à assembleia municipal, e que o valor moderado “não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel”.

O PSD propôs apenas alterações ao artigo 199.º, mantendo que “ficam suspensas” as normas das áreas urbanizáveis ou de urbanização programada, retirando “automaticamente”, bem como que a suspensão se enquadre no disposto nos artigos 72.ºA e 72.ºB, retirando a menção a “habitacional ou conexa à finalidade habitacional e usos complementares”.