A morte de Ihor Homeniuk alegadamente às mãos de três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto de Lisboa veio pôr a nu os abusos a que imigrantes e requerentes de asilo podem estar sujeitos quando aterram em Portugal. Um deles é a falta de apoio jurídico. Ao SAPO24, o bastonário da Ordem dos Advogados apontou as debilidades do sistema e como estão a ser solucionadas.
Desde o momento em que aterrou em Lisboa, a 10 de março, até ao momento em que perdeu a vida, dois dias depois, Ihor Homeniuk esteve sempre sozinho perante um sistema que não conhecia, perante pessoas que não entendia.
O cidadão ucraniano, de 40 anos, retido no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do Aeroporto Humberto Delgado, após ser-lhe negada a entrada no país, morreu depois de ser espancado alegadamente por três inspetores do SEF, acusados entretanto de homicídio qualificado e em prisão domiciliária.
Segundo o que apurou a investigação da Polícia Judiciária, Homeniuk foi isolado na chamada sala dos médicos do mundo, onde permaneceu até ao dia seguinte, tendo sido “atado nas pernas e braços”. Os inspetores algemaram-lhe as mãos atrás das costas, amarraram-lhe os cotovelos com ligaduras e desferiram-lhe um número indeterminado de socos e pontapés no corpo, provocando-lhe lesões mortais.
Para o bastonário da Ordem dos Advogados, há, pelo menos, uma conclusão a tirar do caso: “se o cidadão tivesse um advogado ao seu lado, pode ter a certeza que nada disto tinha acontecido”.
Luís Menezes Leitão explica que o primeiro instrumento a que um imigrante a quem seja negada a entrada ou a que um requerente de asilo deve recorrer é o recurso a um advogado. “Temos muitos casos em que é recusada a entrada em território nacional a um cidadão e o que se verifica aí é que este se encontra imediatamente detido e, estando detido, deve ter, nesse momento, uma assistência de advogado”, recorda o bastonário.
O direito ao acesso à assistência jurídica por advogado para quem seja colocado num Centro de Instalação Temporária (CIT) vem, aliás, previsto tanto no artigo 40.º da Lei de Estrangeiros como no artigo 35.º-B da Lei de Asilo e a justificação para tal é simples.
“A legalidade ou ilegalidade da imigração tem de se verificar sempre após a análise do respetivo processo, porque tem-se visto com muita facilidade que, havendo suspeitas relativamente a qualquer cidadão, o SEF por vezes recusa a entrada sem haver a justificação necessária. Há casos em que é chamado o advogado e a situação acaba por ficar resolvida quando se explica tudo o que está em causa, os direitos que o cidadão tem e quem ele é efetivamente”, indica Menezes Leitão.
Nesse caso, contudo, não cabe ao SEF providenciar um advogado, sendo responsabilidade dos detidos contactar um profissional para ajudá-los ou até pedir a intervenção da Ordem, e é aqui que começam os problemas.
No relatório de 2019 que a Provedoria de Justiça enviou à Assembleia da República através do seu Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura (MNP), é referido que não só “em todos os EECIT, o dinheiro e os telemóveis dos detidos são guardados no cofre do SEF”, como “as regras sobre contactos telefónicos revelam-se díspares, pouco claras, com vários relatos do seu desconhecimento por parte dos detidos”.
Se, por exemplo, no aeroporto de Lisboa os detidos “apenas têm direito a falar durante cinco minutos durante o período da detenção, mas que é permitida a compra e utilização de novos cartões ou a realização de chamadas a pagar no destino”; no Porto “existe a possibilidade — para além de fazer uso da cabine telefónica — de aceder ao telemóvel, duas vezes ao dia, durante 10 minutos", mas “há detidos que não beneficiam desta medida, por, segundo alegam, não saberem da sua existência”, lê-se no documento.
“O que se tem vindo a verificar no âmbito do SEF é que pode demorar muito tempo até que o advogado possa ser chamado. É precisamente assim que se sucedem situações como a que ocorreu com o cidadão ucraniano”, denuncia o bastonário.
E se já não é fácil para os detidos estabelecer contacto a partir de um CIT, os entraves ao acesso jurídico agravam-se com o facto de muitas vezes ser dificultado o acesso dos advogados aos seus clientes. “Tem havido grandes dificuldades relativamente ao exercício da advocacia nas instalações do SEF”, revela Menezes Leitão, referindo que têm havido vários denúncias quanto a este aspeto.
Parte do problema está no processo de acreditação que os representantes legais têm de colocar junto da ANA – Aeroportos de Portugal para ser-lhes permitida a entrada na zona internacional dos aeroportos e assim aceder aos CIT, sendo que este processo implicava custos monetários. Esta taxa, porém, nos desenvolvimentos do caso Ihor, já poderá estar em vias de ser abolida.
“Deram-nos uma informação recente, que ainda não pude confirmar, de que terá sido abolida. Espero que seja de facto o caso, porque essa taxa era uma coisa absolutamente insustentável”, comenta o bastonário, falando de um “condicionamento inaceitável para o exercício da profissão”.
A título de exemplo, Menezes Leitão conta o caso de um advogado chamado pela Ordem e ao qual foi pedida uma intervenção para auxiliar um detido no aeroporto de Lisboa ainda durante a noite. “Ele chegou no dia seguinte [à solicitação] às 8:00 e só conseguiu que fosse admitida a entrada [no país] ao cliente às 22:00. Esteve lá todas essas horas no aeroporto apenas porque tinha havido uma desconfiança sem justificação relativamente à pessoa em causa e que afinal tinha todo o direito de entrar em Portugal”.
Situações como esta foram também denunciadas no relatório do MNP, afetando tanto imigrantes aos quais foi negada a entrada como requerentes de asilo. No que toca aos primeiros, denuncia-se que “a falta de acesso célere a advogado pode impedir uma suspensão fundada de execução de afastamento do estrangeiro do território, tendo sido relatados casos ao MNP de situações em que tal processo demorou cinco horas, findas as quais, quando finalmente o advogado pôde aceder ao espaço, o seu constituinte tinha já reembarcado de volta ao país de origem”.
A ocorrência repetida de imigrantes a serem transportados de volta sem sequer terem falado com um advogado, de resto, é corroborada por Menezes Leitão. “Estamos convencidos que muitos casos terão havido de pessoas às quais é recusada a entrada, que não pedem apoio jurídico e que, por isso, são recambiadas por avião sem qualquer controlo relativo à situação respetiva”, avisa.
Para além das dificuldades que já existiam antes da pandemia, a atual situação veio agravar-se ainda mais com a covid-19. Refere o bastonário que, a pretexto da segurança sanitária, só é permitido a uma pessoa encontrar-se na mesma sala que o inspetor do SEF. Ou seja, um representante legal não se pode sentar ao lado do seu cliente no momento de avaliar documentação ou proceder a assinaturas, algo ”extremamente grave” na opinião de Menezes Leitão e que se tem verificado também noutras repartições públicas.
No entanto, no caso do SEF, o bastonário diz que tudo é ainda mais complicado porque “as pessoas que estão a pedir o auxílio do advogado não conseguem tratar do assunto sozinhas, porque conhecem mal a língua e nada sabem da legislação”. Por isso mesmo, adianta, foram já recebidas muitas queixas que foram reenviadas “para os serviços competentes para se poder terminar esta situação”.
O protocolo, uma “medida absolutamente essencial” para auxiliar os detidos
A exposição dada aos problemas do SEF com a morte de Ihor Homeniuk veio acelerar um processo desejado há muito pela Ordem dos Advogados: a criação de escalas de representantes legais nos aeroportos.
Assinado em novembro pelos Ministros da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e da Justiça, Francisca van Dunem, e o bastonário da Ordem dos Advogados, o protocolo que estabelece a presença de representantes legais em todos os aeroportos internacionais do país é “uma medida absolutamente essencial para resolvermos todos estes problemas que existem no SEF”, avalia Menezes Leitão.
“Neste quadro, o que estamos a implementar é a criação de um serviço de escalas que vai ter advogados imediatamente presentes e que podem ser chamados desde logo para prestarem o auxílio necessário para dar apoio aos cidadãos aos quais possam ser recusada a entrada”, diz o bastonário.
Não tendo ainda sido implementado no terreno, Menezes Leitão diz ter recebido recentemente a comunicação do SEF para tentar iniciar o procedimento. “Neste momento está com o nosso Instituto do Acesso ao Direito para começarmos a fazer as nomeações respetivas, porque há muitos advogados interessados em participar neste trabalho”, adianta.
Reformas no SEF? Sim, mas sem “junções, reestruturações ou fusões de polícias”
A celebração do protocolo que permite a presença de advogados nos aeroportos internacionais portugueses não foi a única medida pensada para alterar o estado de coisas no SEF, até porque a ausência de apoio jurídico também está longe de ser o único problema.
No seu relatório de 2019, o MNP indicou que, apesar de constatar melhorias face a 2018, verificou que os CIT continuam a ser “locais onde persistem vários fatores de risco para ocorrência de tortura e maus-tratos”.
Ao SAPO24, fonte da Provedoria de Justiça disse que “todos EECIT do país são espaços exíguos ou muito limitados, desadequados para permanências além de escassos dias de requerentes de asilo ou de estrangeiros cuja entrada em território nacional foi recusada. Em face do crescente número de cidadãos que têm vindo a acolher, a Provedora de Justiça vem há muito e reiteradamente alertando as autoridades competentes para as condições absolutamente inadequadas e para os riscos de tortura e de maus tratos, em especial no EECIT de Lisboa, instalado no maior aeroporto do país, bem como para a imperiosa necessidade de soluções alternativas”.
No caso especifico de Lisboa — onde, de acordo com o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo de 2019, se registaram 96,6% das recusas de entrada em território nacional por todo país nesse ano — em causa estavam vários problemas, como o facto do EECIT de ter capacidade para deter 58 pessoas, incluindo crianças, em camaratas sem privacidade.
Com a morte de Ihor Homeniuk, as mudanças a efetuar no espaço onde o cidadão ucraniano perdeu a vida tornam imperativas, sendo que a 6 de abril Eduardo Cabrita anunciou que ia haver alterações profundas no modelo de funcionamento do EECIT de Lisboa, assim como obras de remodelação. O espaço foi então encerrado, reabrindo apenas a 1 de agosto.
Ainda antes de voltar a receber cidadãos detidos, o espaço foi visitado pela Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. A responsável, menciona a nota enviada ao SAPO24 pelo MNP, destacou como melhorias “a passagem de camaratas para quartos individuais, com cartão de entrada e possibilidade de utilização de telemóvel, a criação de quartos para famílias, e o facto de o EECIT deixar de ser utilizado para manter privados de liberdade requerentes de asilo”, sendo que estes passaram a receber um visto especial de entrada, sendo transferidos para locais de alojamento do Conselho Português para os Refugiados.
No entanto, numa segunda visita já realizada em novembro e com recolha de depoimentos a cidadãos detidos, Maria Lúcia Amaral voltou a detetar problemas no EECIT de Lisboa, nomeadamente “a acessibilidade dos detidos aos seus bens pessoais; cobertura adequada e melhorada dos espaços por CCTV e acessibilidade, numa maior diversidade de línguas, a folhetos informativos dos direitos dos requerentes de asilo”.
Outro problema encontrado foi a criação de um novo quarto de isolamento. Este, refere o Público, citando o novo regulamento do EECIT de Lisboa, serve para colocar um cidadão “quando, devido ao seu comportamento, resulte perigo sério de evasão ou de prática de actos de violência contra si próprio ou contra pessoas ou coisas”.
Tendo em conta que foi numa sala de tipologia semelhante que Ihor Homeniuk terá perdido a vida às mãos dos três inspetores do SEF, a Provedoria de Justiça refere que um “quarto de isolamento, quando não enquadrado num procedimento disciplinar claramente estabelecido, permite um nível de subjetividade incompatível com garantias fundamentais de todos os cidadãos”.
Já outra das medidas a serem implementadas mereceu também preocupação, mas da parte da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados: a colocação de botões de pânico nas instalações dos CIT.
Destinados a serem usados em situações de emergência — médica e não só — Menezes Leitão considera que o seu anúncio no rescaldo do caso de Ihor Homeniuk foi “de uma extrema infelicidade” porque “a ideia que existiu perante a denúncia que se passou com o cidadão ucraniano foi dizer que vai haver um botão de pânico e que as pessoas podem usá-lo quando se sentirem em perigo". “Isso dá uma imagem perfeitamente absurda de que em instalações no Estado português, as pessoas não estão seguras quando estão à sua guarda”, acusa o bastonário.
Todas estas medidas têm lugar numa fase prévia à reforma generalizada do SEF, anunciada por Eduardo Cabrita para ter início em janeiro de 2021. Para já, foi adiantado apenas que haverá uma separação orgânica das funções policiais e administrativas, o que, no entender de Menezes Leitão, é algo que já existe “porque de facto até há sindicatos diferentes para os trabalhadores do SEF, o que demonstra que não é pelo facto de estarem no mesmo organismo que têm alguma ligação neste âmbito”.
Todavia, a questão da separação de funções desemboca na polémica protagonizada no passado dia 13 de dezembro pelo diretor nacional da PSP, Magina da Silva, quando este disse publicamente que estava a ser trabalhada a fusão da PSP com o SEF — extinguindo ambas as instituições e formando “uma polícia nacional” —, algo que chegou a abordar a questão com o Presidente da República. A hipótese foi formalmente desmentida tanto por Cabrita como pelo primeiro-ministro António Costa, mas até à data não se sabe em que moldes dar-se-á exatamente essa reforma.
Seja de que forma ocorrer, o bastonário da Ordem dos Advogados considera que “propostas de reestruturações, fusões e outro tipo de iniciativas” são medidas “totalmente descabidas perante um caso destes, que exige uma reestruturação profunda dos procedimentos, de funcionamento dos inspetores e dos demais funcionários no âmbito do SEF”.
Menezes Leitão, aliás, teme que a discussão assim se esteja a “desviar do essencial”. A seu ver, o foco devia estar “num controlo disciplinar efetivo” relativamente a casos como o que afetou Homeniuk. Para além disso, urge também que haja ”formação adequada, porque as pessoas têm de ser formadas e perceber que estão lá como oficiais do Estado português, que dão uma imagem externa do país quando recebem os cidadãos que aqui se deslocam e que, precisamente por isso, têm de demonstrar que a cultura de um Estado de direito como o nosso é de respeito permanente pelos direitos humanos”.
O bastonário aponta, aliás, que a brutalidade que ficou patente neste caso não é exclusiva ao SEF, afetando outras forças de segurança, sendo que não será com reestruturações que tal será combatido. “Infelizmente acabámos de receber o relatório do Comité Europeu da Prevenção para a Tortura que faz acusações muito sérias de brutalidade policial, não ao SEF, que não visitou, mas a outras forças do nosso país. Temos todos de meditar sobre essa situação e pensar que formação estamos a dar às nossas polícias”, conclui.
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