O pai gostava que tivesse sido médico, mas, influenciado pela Guerra do Ultramar, primeiro, e pelo 25 de Abril, depois, decidiu que queria ser militar. Major-general, cumpriu serviço durante 44 anos e aos 56 Isidro Morais Pereira foi atirado para a reserva, onde se mantém até hoje.

Lamenta que o governo tenha desinvestido nas Forças Armadas portuguesas e não cumpra sequer os compromissos que assumiu com a NATO - Organização do Tratado do Atlântico Norte. E lembra que o mundo é um lugar perigoso e Portugal está longe de atingir os mínimos no que diz respeito à sua defesa e segurança.

Apaixonado por geoestratégia e estudioso das questões bélicas, fala das visitas a algumas das melhores e mais sofisticadas fábricas de armamento do mundo. E conta ainda como foi conduzir operações na Bósnia, onde esteve destacado a comandar cerca de 400 homens e onde trabalhou diretamente com o ex-diretor da CIA David Petraeus na captura de Milošević, antigo presidente da Sérvia, acusado de crimes contra a humanidade.

"A guerra é um instrumento privilegiado da paz", diz. E foi por aqui que iniciámos a conversa.

Essa afirmação parece um contra-senso ou uma contradição nos termos, se preferir.

Mas não é. A seguir à Segunda Guerra Mundial, um acontecimento catastrófico no mundo ocidental, os Estados deram conta que era preciso pôr termo à anarquia inevitável: deixar de resolver os seus conflitos pela força e aceitar discutir nos fora internacionais algumas regras do relacionamento entre países. É assim que surge a Carta das Nações Unidas, um documento âncora.

Está escrito que a guerra é um ato condenável, mas lícito e legítimo em determinadas situações. Um país tem toda a legitimidade de se defender de uma agressão consubstanciada, neste caso do ataque de um país com ambições hegemónicas, que decide invadir um país soberano e independente reconhecido pelas Nações Unidas, a Ucrânia.

Uma guerra também é legítima quando se está perante uma ameaça iminente, por exemplo, quando junto às suas fronteiras há um agrupamento de forças de um país reconhecidamente inimigo. Depois há princípios aceites, como o da proporcionalidade: pode responder-se militarmente desde que essa resposta seja adequada. Ou seja, se um país é atacado com meios convencionais, não é legítimo que responda com armas nucleares.

"As coisas foram acontecendo face a alguma passividade do mundo ocidental"

Isso significa que o Ocidente tem sido conivente ou permissivo com a Rússia, tendo em conta, por exemplo, a anexação da Crimeia?

Este é um conflito congelado desde 2014, na sequência da primeira aventura de Putin. Não podemos esquecer que a Rússia tem tropas na Moldova [que faz fronteira com a Ucrânia] há muitos anos, cerca de 1500 soldados.

As coisas foram acontecendo face a alguma passividade do mundo ocidental, que quis que a força do direito imperasse sobre o direito da força e acabou por assistir adormecido à invasão da Geórgia [2008], apesar das críticas e de algumas sanções, e depois à invasão híbrida da Crimeia.

"O argumento mais válido para intervir é evitar limpezas étnicas"

Em 1999 foi preciso explicar a intervenção militar internacional no Kosovo, que muitos americanos nem sabiam onde ficava. Que argumentos seriam necessários hoje para tropas americanas e europeias entrarem na guerra da Ucrânia?

Neste momento o argumento mais válido para intervir é evitar limpezas étnicas. Todos temos na memória o Massacre de Srebrenica [genocídio de mais de 8.000 bósnios muçulmanos] e as coisas incríveis que se fizeram nos Balcãs. E eles estão tão próximos do Ocidente, tão próximos de nós, que penso que as populações nunca perdoariam se assistíssemos impávidos e serenos. O mundo tem de ser mais justo.

A Rússia e a China têm usado sistematicamente o direito de veto em determinadas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Sim, mas é preciso não esquecer que houve muitas intervenções da NATO a coberto de mandatos das Nações Unidas. Os membros do Conselho de Segurança votaram todos a favor? Não, também houve os que se abstiveram, mas as resoluções existiram e foram confirmadas e legitimadas em assembleia geral.

Muitos países não querem afrontar a Rússia, não dá jeito. É preciso perceber os motivos por que muitos países africanos optam por se abster. A África, sobretudo a África subsaariana (também chamada África negra), teve colónias de Portugal, Bélgica, Alemanha, Inglaterra, e os movimentos de libertação foram muito apoiados pela União Soviética. E muitos dos governantes e altos quadros desses países estudaram nas universidade de Moscovo, falam russo.

E há outros aspetos importantes: se olharmos para o mapa de importações de armamento de Angola, para dar um exemplo, vemos que o principal fornecedor de armamento, penso que entre 60% e 70% das compras, continua a ser a Rússia. Muitos países não querem hostilizar o mundo ocidental, mas também não querem hostilizar a Rússia.

"O Ocidente não tem sido ágil no fornecimento de armas à Ucrânia"

É um equilíbrio difícil.

Embora a ordem mundial pós Segunda Guerra seja uma ordem na qual gostamos de viver, porque respeita as diferenças, defende os mais fracos, há países e até pensadores dos Estados Unidos, como John J. Mearsheimer, que continuam a ser neo-realistas ofensivos e a achar que, do ponto de vista das relações internacionais, o que conta é o poder.

No fundo, é como o fenómeno do bullying nas escolas: os miúdos têm todos doze anos, mas há os que têm 1,80m e os mais baixinhos. E há sempre um bully. E são esses bullies que têm de ser combatidos e tem de se lhes aplicar a lei.

O pior é que um bully raramente está sozinho, há sempre um grupo que o idolatra e lhe dá força.

Claro, às vezes é um grupo, conseguem sempre arranjar aliados. A Finlândia, sabemos hoje, foi aliada de Hitler. Depois, durante anos optou pela neutralidade e perceber que havia uma nova ambição expansionista russa e ver que poderia estar pouco protegida. Embora tenha cuidado sempre da sua defesa, a Finlândia é um país muito grande, tem mais ou menos a dimensão da Alemanha e uma fronteira de mais e 1300 quilómetros com a Rússia, que é difícil de defender.

É preciso ver que a Finlândia não tem nem cinco milhões de habitantes. Embora seja um país próspero, tenha uma economia rica e umas forças armadas muito bem equipadas, com grandes reservas de guerra e com 27 a 28 mil elementos permanentes, com capacidade para mobilizar de um dia para o outro cerca de 300 mil militares e até 800 mil numa segunda fase. É um país preparado para se levantar em armas, mas mesmo assim tem receio do gigante adormecido. Por isso, quebrou a tradição de neutralidade e hoje está integrado na NATO - julgo, aliás, que foi a adesão mais rápida de que há memória.

O Ocidente tem sido suficientemente ágil nas decisões e na ajuda à Ucrânia?

Não, o Ocidente não tem sido suficientemente ágil no fornecimento de armas à Ucrânia. Porque há dois problemas: um é estrutural, as democracias levam muito tempo a decidir. Ao contrário das ditaduras, que decidem na hora, em democracia chega-se ao ponto de governar por sondagem, já assistimos a isso em Portugal: toma-se uma medida, lança-se para a comunicação social e depois encomenda-se uma sondagem de forma sorrateira para saber o impacto. Se for negativo, volta-se atrás.

Quando há um grupo de países a coordenar estas decisões a complexidade aumenta; há mais vontades, um quer uma coisa, outro quer outra. Como na União Europeia, que decidiu produzir em conjunto um milhão de munições de artilharia. Houve logo ali umas invejas: porque é que são produzidas naquele país e não no meu? Há interesses e tudo leva o seu tempo.

"Muitos líderes continuam a ter receio que Vladimir Putin fique meio doidão e decida utilizar armas nucleares"

Depois há outro problema, que considero mais grave, que é o da perceção. Muitos líderes ocidentais tiveram receio, e continuam a ter, que o homem que governa o Kremlin, Vladimir Putin, fique meio doidão e decida utilizar armas nucleares. É evidente que aquele homem continua a ser racional, sabe muito bem o que quer.

Mas isso faz parte do tal jogo do bully.

Faz parte do jogo do bully, claro. E o Ocidente foi pouco ágil também por isso, para o conflito não escalar para patamares difíceis de controlar, para a guerra ficar confinada àquilo que são as fronteiras da Ucrânia.

E é isso que tem levado a que ainda hoje a Ucrânia não tenha F-16 ou não tenha mísseis com 300 Km de alcance, guiados por GPS, que podem ser lançados por equipamentos que já tem, o tão falado sistema HIMARS, que pode lançar até seis foguetes dos habituais, com 60 a 70 Km de alcance, e que pode lançar um míssil ATACMS.

Era muito mais fácil, os ucranianos expunham muito menos os seus aviões e os seus pilotos ao inimigo e conseguiam atingir os mesmos objetivos. Joe Biden tem sido muito pressionado pelos senadores democratas e também pelos republicanos, e pelo congresso também, e mais tarde ou mais cedo vai ter mesmo de entregar esse tipo de equipamento à Ucrânia. Mas o presidente dos Estados Unidos, que estão ali perto da Rússia, tem sido muito cauteloso para não escalar o conflito.

Entregar esse armamento também tem um custo.

Sim, um disparo de cada míssil desses custa cerca de 850 mil dólares. Os Estados Unidos, além de terem as melhores e maiores forças armadas do mundo, têm uma economia que está a crescer, ao contrário da economia chinesa, que no último trimestre cresceu meio por cento.

Basta olhar para as trocas comerciais entre os EUA e a China para ver que abrandaram 25%. E o caminho é depender cada vez menos. O mesmo se está a passar na Europa, embora os alemães tenham ido visitar a China para promover as trocas comerciais - mas mais no sentido de cá para lá do que de lá para cá.

A China encontra-se numa encruzilhada: não quer hostilizar a Rússia, de onde vem energia e matérias-primas, mas também não quer hostilizar o Ocidente, que consome 90% daquilo que o país produz. Se não vender para a Europa e para os Estados Unidos, o 'bilião de ouro', lá se vai o milagre chinês pelo cano.

A ideia de que é preciso reindustrializar o espaço europeu e depender de cada vez menos de terceiros está a tomar muita força.

Isso acontece sempre que há uma crise. Foi assim na pandemia, com os medicamentos e equipamento médico, é assim com o material de guerra. A UE está a transformar-se numa central de compras.

Já que fala na Covid-19 vou dar um exemplo: vivi na Alemanha nos anos 90 e visitei várias instituições de investigação científica e assisti a briefings classificados. A Alemanha estava a apostar em duas áreas fundamentais em termos científicos e de desenvolvimento: o controlo da fusão a frio - simular aquilo que se passa nas estrelas com temperaturas próximas dos 10 milhões de graus, o processo de funcionamento das bombas nucleares e das centrais atómicas, e o domínio do genoma humano. Não é por acaso que foi uma empresa alemã que produziu as primeiras vacinas de RNA mensageiro, que abrem um portão para a cura de doenças até agora incuráveis. Quando se aposta numa área, ela dá frutos.

"Se não vender para a Europa e para os Estados Unidos, o 'bilião de ouro', lá se vai o milagre chinês pelo cano"

A questão é: estamos a fazer tudo o que podemos para ajudar a Ucrânia ou tudo o que podemos para não irritar Putin?

Até acho que o Ocidente tem sido muito bonzinho com Putin. Se falarmos em terrorismo transnacional sabemos que a posição norte-americana é intransigente: não se negoceia com terroristas. Assim como não se negoceia com ditadores. E não se negoceia com homens que não têm palavra.

Aliás, na antecâmara da invasão assistimos a testemunhos na primeira pessoa em que Putin garantia que não ia invadir a Ucrânia. O ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, contou que telefonou várias vezes a Putin e que este lhe garantiu que não ia invadir a Ucrânia. Emmanuel Macron disse o mesmo. Pode-se acreditar numa pessoa que mente de forma descarada?

Não é preciso recuar muito tempo, no final dos anos 90, Boris Ieltsin convida Putin para primeiro-ministro, que escolhe para seu chanceler Yevgeniy Primakov, responsável pela doutrina Primakov, que assenta em três pilares: recentrar a atenção geopolítica na Eurásia, restabelecer as velhas esferas de influência, que se perderam com o desmembramento da URSS, e acabar com a era do mundo unipolar - já sob a égide de Putin (que foi alterando a constituição e já pode ser presidente até 2036).

Mas foram produzidos quatro documentos orientadores da política externa russa, o último data de 23 de maio do ano passado, aos quais temos acesso livre. São absolutamente claros, só não vê quem não quer. E já não falam só na vizinhança, falam em ter influência grande no mundo africano e no sudeste asiático.

"Putin não pode sair vitorioso desta aventura em que se meteu"

Como é que isso se para?

Uma forma de parar a ambição hegemónica russa, e aquela que gostaríamos que acontecesse, era a própria Rússia substituir Putin por um homem mais moderno, mais moderado, mais concordante com a ordem liberal em que vivemos. Há muitas fações que gravitam à volta do Kremlin, não estão todos unidos. Alguns têm vida própria, como tinha Prigozhin.

Outra maneira é aquela a que estamos a assistir: Putin não pode sair vitorioso desta aventura em que se meteu - e o Ocidente não pode cair naquela tolice que propôs o chefe de gabinete do secretário-geral da NATO, que sugeriu numa entrevista a um jornal norueguês a possibilidade de a Ucrânia ceder territórios pela paz.

Também se chegou à conclusão que há males que vêm por bem: a inflação está a descer, a dependência do Ocidente da Rússia, afinal, não era tão importante em termos energéticos, o que nos leva a acelerar o processo de adoção de energias cada vez menos poluentes.

"Uma forma de parar a ambição russa era a própria Rússia substituir Putin por um homem mais moderno, mais moderado"

É a favor ou contra a energia nuclear?

Para mim um dos grandes erros foi fechar as centrais nucleares. As centrais nucleares têm é de ser modernizadas para serem mais seguras, porque a energia é limpa.

Quando se constrói uma central nuclear moderna, a tecnologia permite praticamente esgotar toda a radioatividade e a forma como se constroem os reatores é cada vez mais segura. Só tem de se ter a preocupação de não construir uma central nuclear numa zona sísmica, isso é que é uma asneira colossal, e foi o que aconteceu em Fukushima, no Japão.

Outro dia alguém dizia que com as centrais nucleares espanholas aqui tão perto não vamos ter os benefícios, mas, se houver algum azar, sofremos os prejuízos.

Não, porque os ventos sopram de quadrante noroeste e levam o fallout [partículas radioativas] para Espanha. Essas centrais nucleares, que são três, estão todas construídas na Meseta Ibérica, que em termos de idade geológica é do mais antigo e mais sólido que há.

"Um dos grandes erros foi fechar as centrais nucleares, que têm é de ser modernizadas para serem mais seguras, porque a energia é limpa"

Nos anos 70 discutiu-se o tema com muita veemência em Portugal. Lembro-me de ser um jovem cadete na Academia Militar, em 1977, e ouvir Campos Costa, um eminente cientista, que foi meu professor de Física Atómica e Nuclear e era o responsável pelo projeto, defender a opção nuclear.

Dizia ele que Portugal devia construir três centrais, desejavelmente junto às espanholas, mas do lado de cá. Porque uma central precisa normalmente de um espelho de água de grandes dimensões, por isso estão no Douro, no Tejo e no Guadiana, grandes rios. Precisam de água para arrefecer os reatores. Os caudais estão regularizados pelas inúmeras barragens que existem ao longo do caminho.

Diogo Gomes | MadreMedia

Sabemos hoje o que é que cada país tem em termos de armamento e de capacidade militar? Pergunto porque me lembrei da invasão do Iraque, sob o pretexto de o país ter armas de destruição maciça, que afinal não existiam.

Sabemos. Há publicações anuais como "The Military Balance", entre outras, que contêm esses dados.

Desde a invasão do Iraque, no tempo de Bush júnior, a forma de adquirir informação mudou muito. Entretanto, a NSA - National Security Agency foi dotada de supercomputadores, que fazem o screening [triagem] de tudo o que são emails e conversações telefónicas. Há outras formas de obter informação.

Mas a contra-informação também é maior, não?

É. Por isso ainda ninguém dispensou as redes de espiões e a human intelligence [inteligência humana]. Principalmente quando em segredo se desenvolve um determinado tipo de armas. A razão por que se invadiu o Iraque é importante, e está relacionada com os escritos de Paul Wolfowitz, então subscretário da Defesa e com grande importância na comunidade judaica nos Estados Unidos, que é muito poderosa e influenciou Bush. Foi um pouco a pedido que aquilo aconteceu.

Saddam Hussein estava apostado em desenvolver armas de destruição em massa e havia indícios de que teria armas químicas. Se as teve, em tempo as transferiu para a Síria - não é por acaso que o ditador sírio apresenta arsenais químicos, vieram de algum lado. Portanto, ainda hoje não é tão claro que nada daquilo fosse verdade.

É evidente que não era necessário os EUA [com apoio de Portugal, Espanha e Reino Unido] terem invadido o Iraque, até porque Saddam Hussein era mais benéfico para o mundo ocidental - o único que se sentia ameaçado na altura era Israel, que agora tem muitas maneiras de se defender das ameaças, mas na altura não tinha essa capacidade instalada. Mas Saddam Hussein, um ditador implacável, era um tampão para o terrorismo internacional, que depois chega ao Ocidente.

Apesar de tudo, há sempre uma dimensão secreta da informação.

Sim. Mas vamos aos Estados Unidos, país do mundo na dianteira tecnológica, e ao exemplo do sistema de armas que dá pelo nome de F-35 Lightning II, o avião de caça mais moderno e evoluído do mundo, e talvez o mais caro, produzido pela Lockheed Martin - fui adido de defesa nos EUA, conheço bem a empresa, que visitei várias vezes.

O F-35 foi vendido pelos Estados Unidos a alguns países europeus, todos aliados confiáveis. Sabemos que a Turquia há muito quer adquirir F-35, mas os americanos não vendem, arranjaram uma solução alternativa e vão vender uns F-16 modernizados, um belíssimo avião, que se bate com qualquer avião russo.

Mas o F-35 tem um predicado que o F-16 não tem: é stealth, foi concebido para ser invisível aos radares. O radar emite determinadas ondas de espectro eletromagnético e quando essas ondas vão de encontro a um objeto são refletidas e recebidas pelo processador do radar, que dá posição, distância e tipo de objeto em causa. Neste caso, a onda bate e não é devolvida, vai noutra direção ou é absorvida. Esta tecnologia pode ser aplicada a aviões, navios ou equipamento terrestre. Além disso, o F-35 comporta um conjunto de altíssima tecnologia e consegue desviar mísseis.

Mas os americanos já venderam F-35 à Inglaterra, à Polónia, à Alemanha, que em termos de Força Aérea se deixou ultrapassar muito, porque continuava a basear a defesa aérea no velhinho Tornado, um avião excelente, mas que teve uma época. Recentemente a Alemanha chegou à conclusão que devia ter investido na sua defesa. Tinha duas possibilidades: investir numa indústria aeronáutica capaz de produzir aviões melhores que os F-35, o que levaria tempo, ou comprar F-35 aos Estados Unidos, que foi o que fez. Cada avião custa 85 milhões de euros.

Mas, claro, os americanos vão fazendo upgrades, como se os aviões fossem computadores, este armamento está permanentemente a ser atualizado. E as últimas inovações nenhum outro país tem, nem os ingleses, que é a forma de os EUA manterem a vantagem, porque o mundo dá muitas voltas.

"Há nichos em que a indústria militar europeia é tão boa ou melhor do que a americana"

Em termos de armamento, quem é bom no quê?

Os Estados Unidos têm uma óptima indústria, desenvolveram agora um mini-drone que cabe na palma da mão, pesa 33 gramas e custa quase 200 mil euros. Também têm o M1A2 Abrams, o tanque mais moderno, um carro de combate que pesa quase 70 toneladas, semelhante ao Leopard 2. Mas sabe onde é produzida a peça que dispara as munições de 120 mm? Na Rheinmetall, na Alemanha, que produz aço de grande qualidade e é extraordinária em termos de engenharia.

Ou seja, há nichos em que a indústria militar europeia é tão boa ou melhor do que a americana. Por exemplo, um carro de combate Leopard 2 A7, que é o mais evoluído - em Santa Margarida ainda temos o Leopard 2 A6 -, que custa 13 ou 14 milhões de euros, é mais evoluído do que o Abrams. A melhor viatura de infantaria de combate do mundo, o CV90, que custa 8,5 milhões, é fabricada pela Suécia, que também tem belíssimas armas.

Quanto custa um dia de guerra?

Para saber isso tínhamos de fazer muitas contas, depende do tipo de conflito, se é de alta ou de baixa intensidade, do equipamento que utiliza, dos vetores em campo (Marinha, Força Aérea, Exército). Mas sabemos que a Ucrânia já ultrapassou os 40% daquilo que é o orçamento geral do Estado em Defesa e a Rússia gastou cerca de 30%.

"Ucrânia tem sido capaz de desenvolver em segredo algumas armas de altíssima qualidade"

Os 30% da Rússia são mais do que os 40% da Ucrânia, porque o Orçamento do Estado russo é muito superior...

Só que a Ucrânia tem muito equipamento que não é pago, é equipamento doado ao país sem qualquer contrapartida. Mas também há equipamento comprado, a Ucrânia tem feito compras e tem sido capaz de desenvolver em segredo algumas armas, como drones de altíssima qualidade.

Essas fábricas não são detetadas, não são geolocalizáveis?

Podem ser, mas, como diz o chefe de segurança e serviços de informações da Ucrânia, esses drones são fabricados em subterrâneos e sob supervisão direta dos serviços de segurança, todos os cientistas e engenheiros que lá trabalham passam por um controlo apertado, para garantir que não vão dar informações ao inimigo. Tudo é feito em segredo.

Muitas pessoas se interrogam se a Ucrânia ainda tem os MiG, com os aeródromos militares a serem constantemente bombardeados. Conseguem recuperá-los? Conseguem. Conseguiram voltar a colocar asfalto nas pistas e conseguiram consertar todos os bunkers onde têm os aviões, protegidos por paredes de betão grossíssimas. Esses bunkers são muito difíceis de detetar do céu, têm uma forma determinada e vegetação por cima, confundem-se completamente.

E há outra coisa que o porta-voz da Força Aérea ucraniana, Yuriy Ignat, disse, os aviões mudam de aeródromo a cada 24 horas. E até disse mais, que já têm auto-estradas e estradas a partir das quais fazem descolar e aterrar aviões. Só assim se explica que a Ucrânia continue a ter capacidade aérea, fundamentalmente para disparar os mísseis Storm Shadow que a Inglaterra forneceu, com 250 quilómetros de alcance, e os Scalp EG, desenvolvidos por um consórcio franco-britânico, agora com um  alcance de 290 quilómetros. Este tipo de material não pode ser destruído pela Rússia.

"Achei que sendo militar podia servir a causa pública, e foi o que fiz durante 44 anos no serviço ativo"

Queria falar de Portugal, das nossas Forças Armadas e do nosso papel na UE e na NATO, mas antes gostava de falar de si. Como e porque é que se tornou militar?

O meu pai queria muito que eu fosse médico - que era o que ele gostaria de ter sido. Mas eu, talvez influenciado por ele, acabei por escolher ser militar. Ele foi mobilizado para a Índia, ainda oficial miliciano, mas acabou por não ir. Depois, quando eu estava na escola primária, recebeu uma carta a ser mobilizado para Angola. Foi frequentar o curso de capitães em Mafra e acabei por vê-lo fardado. Mais tarde, ia eu fazer 15 anos, deu-se o 25 de Abril, assisti ao advento da democracia em Portugal, onde os militares tiveram um papel muitíssimo importante. E é na juventude que nos definimos.

Os seus pais aceitaram bem a decisão?

Não. Aliás, fui para a academia um ano mais tarde porque para entrar aos 17 anos o meu pai tinha de assinar um papel a autorizar; disse-me de caras que não, porque não se revia em determinadas atitudes que alguns militares tiveram na sequência do Verão Quente de 1975: "Filho meu não se vai misturar com gente dessa", dizia. Entretanto as coisas melhoraram, a ordem voltou às Forças Armadas e, no ano seguinte, já com 18 anos, disse ao meu pai que queria ser militar, concorri à Academia Militar e entrei.

Sempre me senti atraído por servir causas públicas. Curiosamente, ainda como estudante no liceu de Vila Real (nasci em Ribeira de Pena), fui presidente da Associação de Estudantes e vim a reuniões do movimento estudantil em Lisboa, no Instituto Superior Técnico, onde me lembro de ver figuras como Arnaldo de Matos, Durão Barroso ou Saldanha Sanches. Achei que sendo militar podia servir a causa pública, e foi o que fiz durante 44 anos no serviço ativo, em Portugal e no estrangeiro. E agora aceitei comentar os desenvolvimentos da guerra com a mesma vontade de fazer serviço público - estou na reserva, só respondo por mim.

Por que motivo está na reserva?

Passei à reserva com 56 anos [há oito anos]. Fruto da intervenção da troika em Portugal, o Exército reduziu o número de oficiais generais praticamente para metade. Segundo o estatuto dos militares das Forças Armadas existe um tempo máximo de permanência em determinado posto, na altura seis anos no posto de major-general. Como atingi esse limite e não havia vagas para ser promovido ao posto seguinte - não é que eu não tivesse mérito, mas era ilegal, tinha saído um decreto-lei a dizer que organicamente o Exército passaria a ter quatro em vez de oito tenentes-generais -, automaticamente a possibilidade de eu continuar a servir esfumou-se.

"Vejo umas Forças Armadas pequenas demais para aquilo que o país precisa, umas Forças Armadas que não estão equipadas como deviam. O nosso governo tem desinvestido nas Forças Armadas"

Isso não é muito violento, ficar desempregado aos 56 anos?

É. É duro. Não tenho mágoa alguma relativamente ao Exército, não me deve nada e eu também não lhe devo nada, mas foi uma situação conjuntural difícil. Se tivesse podido ser promovido, ainda podia servir mais quatro anos, passaria à reserva aos 60 anos - ou, se eventualmente chegasse a general de quatro estrelas, aos 65.

O que vê hoje quando olha para as Forças Armadas portuguesas?

Vejo umas Forças Armadas pequenas demais para aquilo que o país precisa, umas Forças Armadas que não estão equipadas como deviam. Fundamentalmente, o seu core é extraordinariamente bem formado, temos bons cursos, uma excelente escola de liderança, os nossos oficiais ombreiam com os melhores de qualquer país da NATO, temos gente muito capaz. Agora, sabemos que o nosso governo tem desinvestido nas Forças Armadas.

Se temos gente tão capaz, por que motivo assistimos a tantos casos e casinhos nas Forças Armadas, de corrupção a maus tratos?

O último caso de corrupção até está mais relacionado com o Ministério da Defesa do que com as Forças Armadas.

É verdade, mas antes tivemos o caso Tancos, os casos das messes da Força Aérea, violência na recruta, corrupção na Marinha...

O fenómeno Tancos é lamentável. O desinvestimento que se fez nas Forças Armadas levou a que um paiol não tivesse nem segurança física humana suficiente nem sistemas de vigilância eletrónica modernos. Mas é preciso dizer que o Exército tinha consciência disso.

É preciso reestruturar ou tudo se resume à falta de verba?

As Forças Armadas, que me lembre, já foram reestruturadas várias vezes. É evidente que precisavam de ser reestruturadas daquilo que era a Guerra do Ultramar e de treze anos voltados para uma guerra de contra-guerrilha. Era preciso voltar à formação da guerra convencional, adquirir novos equipamentos, e isso foi sendo feito.

Chegámos a ter 200 mil homens, era preciso reduzir, não se justificava para uma país da dimensão de Portugal, mas tudo tem limites. A certa altura pensei que se pararia por ali, que não se diminuiria mais efetivos, que não se fechariam mais quartéis e que se poderiam começar a modernizar as Forças Armadas, a adquirir equipamento, a constituir reservas de guerra - porque não é de um momento para o outro que a fábrica que está no Paquistão ou na Coreia do Sul ou nos Estados Unidos ou em França, que tem não sei quantos clientes, nos vai fornecer munições. Ou fabricamos nós ou temos de ter reservas de guerra.

Fui diretor-coordenador do Estado Maior do Exército, a Lei de Programação Militar (LPM) passava-me pelas mãos. Inscrevíamos sempre a compra de reservas de guerra, mas era inglório, aquilo ia para o Ministério e a LPM nunca era cumprida. Foi tudo sempre por impulsos e chegou-se a um ponto perigoso, porque a última reestruturação é da altura da troika e chegou-se a um consenso que devia haver entre 30 e 32 mil efetivos em permanência, mas neste momento estamos muito abaixo disso [27.741 em 2021]. Não é sustentável.

"A primeira coisa que temos de fazer é pagar melhor àqueles que abnegadamente servem o país"

Portugal acabou com o Serviço Militar Obrigatório (SMO). Concorda com a decisão?

Se conseguirmos atrair um número de jovens suficientemente elevado para as Forças Armadas, penso que em situação de paz os países podem dispensar o Serviço Militar Obrigatório - mas nunca retirar da lei a possibilidade de, em determinadas situações, o SMO ser reinstalado, como aconteceu na Ucrânia: a lei marcial foi decretada e ao abrigo dessa lei todos os que estavam em determinada faixa etária e reuniam condições foram para as forças armadas. Se tivéssemos sido envolvidos num conflito alargado, tenho a certeza que teríamos de regressar ao recrutamento do Serviço Militar Obrigatório. Dito isto, para ter um serviço militar suficiente em qualidade e quantidade, temos de pôr em marcha determinado tipo de medidas, temos de reformar.

Que tipo de medidas?

A primeira coisa que temos de fazer é pagar melhor àqueles que abnegadamente servem o país. Quando foi criado este sistema de voluntariado e contrato os soldados ganhavam quase mais 300 euros do que o ordenado mínimo. Por isso é que durante um tempo não tivemos grandes problemas em ter voluntários.

Diogo Gomes | MadreMedia

Neste momento o que é que convence um jovem a vir de Bragança, de Chaves ou de Vila Real para Santa Margarida?

A questão é essa, para ganhar o ordenado mínimo nacional é muito mais fácil continuar a viver na casa dos pais e a trabalhar como caixa num supermercado ou noutro sítio qualquer do que andar a expor-se a perigos da vida militar.

A vida militar é dura. O treino militar, a preparação para as vicissitudes do combate, não é uma coisa fácil, é preciso ser-se generoso, estar-se disponível. E depois isto é uma pescadinha de rabo na boca: quanto menos são, mais castigados são, porque é preciso fazer mais coisas. No verão, que é quando todo e qualquer jovem gosta de ir bronzear-se para o Algarve, ainda é preciso ficar na tropa on call porque pode ser necessário para vigiar florestas. O ritmo de trabalho é infernal.

E essa também é uma das razões por que há muitos militares a ir embora: está a ser aplicado um regime de trabalho demasiado exigente e pesado para um jovem que também quer viver a sua vida, namorar, ir a uma discoteca, ir à praia. E é preciso criar melhores condições nas instalações, é preciso investir.

Se quer continuar com um sistema baseado no voluntariado e no contrato, se quer continuar a ter jovens generosos o suficiente para estarem dispostos a morrer pela pátria, o país tem de investir nas Forças Armadas. Temos de lhes dar esperança de vida, condições para o futuro, melhores condições de acesso a emprego noutras corporações e noutros organismos do Estado. E pagar-lhes um ordenado conveniente.

"Para ganhar o ordenado mínimo nacional é mais fácil continuar a viver na casa dos pais e a trabalhar como caixa num supermercado do que andar a expor-se a perigos da vida militar"

Comparando, quanto ganha um militar lá fora?

Dou-lhe o exemplo dos Estados Unidos, que tem um grande exército e os soldados são voluntários por um determinado período de tempo: há tempos havia falta de militares nas operações especiais americanas, um ramo específico, com diversas valências, muito usado no combate ao terrorismo transnacional, uma formação cara e mais demorada, e uma das medidas que os americanos tomaram foi dar logo à cabeça mais 120 mil dólares a quem renovasse o contrato por mais dois anos. Isto além do ordenado.

"Se quer continuar a ter jovens generosos o suficiente para morrer pela pátria, o país tem de investir nas Forças Armadas"

Queremos ter um serviço militar nestes moldes, baseado em voluntários e contratos? Então temos de pagar, porque quem não tem dinheiro não tem vícios.

Se Portugal tivesse de entrar em guerra, o país estava preparado?

Depende do tipo de guerra, mas julgo que estamos muito longe de estar preparados. Aliás, não é só a falta de militares; numa guerra como esta não temos sequer uma brigada equipada como deve ser. A brigada que tínhamos em Santa Margarida ainda tem M113 e os carros de combate Leopard 2 A6 são bons, mas são 37, três tiveram de ser reparados para ir para a Ucrânia e uma parte está inoperacional. As viaturas de transporte de infantaria são antigas, do tempo da Guerra da Coreia.

Uma das lacunas tremendas das nossas Forças Armadas é que não temos sistemas de defesa anti-aérea de médio ou de longo alcance. Temos alguns Stinger de curto alcance, modelos antigos, mas não temos Patriot ou outros. Devíamos ter aquilo que qualquer país que se preze tem. Qualquer país que se preze tem de ser capaz de se defender de ameaças aéreas. Portugal não é capaz porque desinvestiu na Defesa, porque está a dar prioridade a tudo menos à Defesa.

"Uma das lacunas tremendas das nossas Forças Armadas é que não temos sistemas de defesa anti-aérea de médio ou de longo alcance"

A tudo o quê?

Estamos a dar prioridade a... Sinceramente, o que vou dizer não tem nada a ver com partidos, é uma constatação de factos. Quando fomos intervencionados pela troika, foram tomadas medidas draconianas. A determinada altura o Estado minguou. Se a memória não me falha, chegámos aos cerca de 600 mil servidores do Estado, mas hoje já vamos outra vez em mais de 741 mil [eram quase 728 em 2011].

Quer dizer, os governos brincam com o dinheiro que não é deles, contraem dívidas a um ponto perigoso; sabemos que a dívida pública portuguesa atingiu valores impossíveis. Isto tem de se parar. E o que é impressionante é que se investe mais em Saúde, por exemplo, mas o output, aquilo que é produzido, é péssimo, o resultado não existe. Alguma coisa está errada.

Este país precisa de reformas profundas. E só haverá dinheiro para a Defesa quando se olhar para o resto e se emagrecer a estrutura do Estado, para a tornar ágil. Esta coisa de pagar mal aos servidores públicos é errada. Tem de haver os funcionários estritamente necessários e esses têm de estar motivados e ser produtivos e pagos como deve ser.

Vou dar um exemplo comezinho, mas há muitos: é normal que os meus e os seus impostos sejam aplicados e usados para estudantes levarem dez anos para fazer uma licenciatura de três? A minha filha andou em Medicina e pagava à volta de mil euros, mas fez o curso nos anos normais e especializou-se em Anestesia e hoje é também intensivista, mas fez as especialidades na Alemanha, onde está a viver. Um aluno que perde anos consecutivos e custa 10 mil ou 15 mil euros por ano deve ter de pagar para andar a passear os livros, parece-me uma medida justa. Não quero que pense que sou contra a educação, porque não sou, acredito que é uma peça fundamental no desenvolvimento das sociedades. Mas pode-se poupar muito dinheiro.

Somos dos países com mais impostos, mas não vemos isso transformado em serviços, como acontece em países da Escandinávia, por exemplo. Como se arranja dinheiro para a Defesa? Olhe, combatendo a evasão fiscal, a economia paralela e promovendo reformas nos setores que mais dinheiro custam a todos para os tornar  mais eficientes.

"As potências europeias têm uma dívida de gratidão com os Estados Unidos"

É a favor do exército europeu?

Penso que as potências europeias têm uma dívida de gratidão com os Estados Unidos, que intervieram na Segunda Guerra Mundial, para citar só esta, e foram fundamentais para restabelecer a paz e para que a Europa fosse um espaço de prosperidade.

Há grandes rivalidades na Europa que se podem reacender, mesmo dentro da União Europeia. O que acho é que a defesa europeia, quer o seu complexo industrial como um todo, quer os países individualmente, devem cuidar e investir mais em Defesa. Mas devem sempre fazê-lo de forma coordenada entre si e os grandes aliados do outro lado do Atlântico, Estados Unidos e Canadá.

"No modelo político que temos julgo que não faz sentido a Europa ter um exército próprio. Mas faz todo o sentido coordenar espaços e indústrias com a NATO"

Os próprios Estados Unidos têm dito que os europeus têm de investir mais em segurança. Um exército europeu podia fazer sentido se a União Europeia fosse uma federação, que não é.

A resposta curta à sua pergunta é que no modelo político que temos julgo que não faz sentido a Europa ter um exército próprio. Mas faz todo o sentido coordenar espaços, mesmo a nível de indústrias, de nichos. E faz todo o sentido que a União Europeia se coordene de perto com a NATO, porque grande parte dos países da UE pertence à NATO.

Nesse caso, o que caberia a Portugal?

Portugal teve uma indústria de defesa mais desenvolvida em termos de produção de munições, até de algum armamento, no tempo da Guerra do Ultramar. Além da pistola-metralhadora FBP, de fabrico nacional, chegou a produzir armas sob licença alemã. Hoje temos fundamentalmente o nicho das telecomunicações.

Portugal não deve ficar fora daquilo que é o desenvolvimento da capacidade militar industrial da Europa, deve querer participar em muitos projetos. Por exemplo, fruto de uma parceria com Brasil, estamos a produzir o avião KC-390 no Alentejo. Temos indústria aeronáutica. Um exemplo é o F-16 MLU, a instalação dos novos kits foi feita pelos mecânicos e engenheiros da Força Aérea portuguesa. E temos a Tekever, que está a fabricar drones. Há nichos em que podemos ser fortes.

O que aconteceu à Empordef - Empresa Portuguesa de Defesa, sabe?

Isso é outra história de corrupção de Marco Capitão Ferreira [ex-secretário de Estado da Defesa]. Há aí um pedregulho que é preciso desenterrar, pessoas que se deixaram corromper e corromperam e que têm de ser punidas. Um país sério não pode deixar passar isso em branco.

"Julgo que esta guerra trouxe um conjunto de fatores que podem levar os países europeus a acordar de uma certa letargia"

É outra reforma que o país precisa de fazer, a da Justiça. Uma das razões por que muitas multinacionais não investem em Portugal é por causa dos conflitos laborais, que têm tendência para se eternizar, não é só por causa das altas taxas de IRC. Se um trabalhador mostra que é inábil ou pouco produtivo, a empresa tem de poder despedi-lo, pagando-lhe a indemnização legal, e esse processo tem de ser expedito. Um contrato de trabalho tem de ser bom para ambas as partes, não pode haver gavetas fechadas, o mundo não funciona assim.

Mas, voltando à indústria, Portugal desenvolveu durante a Guerra do Ultramar e ainda no pós-guerra tudo o que era relacionado com medicina tropical. Que deixámos cair. Hoje, na Europa, é a Alemanha que está mais avançada nessa área.

Julgo que esta guerra trouxe um conjunto de fatores que podem levar os países europeus a acordar de uma certa letargia, porque é muito agradável viver à sombra do grande irmão que nos defende. Os países europeus sempre olharam para os Estados Unidos como aqueles que tomam conta de nós, mas o Tratado de Washington é claro sobre isso: o primeiro responsável pela sua defesa é o próprio pais. Evocando o artigo 5.º, os outros devem vir em auxílio.

Foi bom desinvestir na Defesa e aproveitar esses dinheiros para canalizar para outro lado, inclusivamente a Inglaterra, que reduziu as suas forças armadas a um nível que não é consentâneo com os pergaminhos que tem. Continua a ter um exército notável em termos de formação, mas está reduzido a 78 mil homens. E há notícias de que a manutenção de grande parte do seu equipamento não está a ser feita. A Alemanha ainda pior, porque se afastou muito dos 2% do PIB para a Defesa. A Inglaterra, apesar de tudo, tem uma grande Marinha, uma Força Aérea com aviões de última geração e os militares - estive com vários na Bósnia - são bem pagos. Assim como os franceses.

Os portugueses em missão na Bósnia eram bem remunerados?

Eram. Nestas operações ganha-se mais do que em território nacional. Era fácil conseguir militares, e um dos cofres atrativos para a prestação do serviço em regime de voluntário e contrato, fundamentalmente para jovens praças, era a possibilidade de participarem numa missão no exterior, fundamentalmente missões de apoio à paz, onde o risco não é elevado, e que permitia aos militares fazerem um pé-de-meia. Além do mais, quanto se está em operações a coberto do mandato das Nações Unidas os países comprometem-se a não cobrar impostos. Isso, no conjunto, permite compensar o esforço acrescido que se pede a um militar.

Quanto tempo esteve na Bósnia e quantos homens tinha a seu cargo?

Estive seis meses, um pouco mais, e era responsável por cerca de 400 pessoas, entre militares e civis (porque havia o pessoal contratado para tratar da limpeza das instalações, o pessoal das cozinhas, os tradutores/intérpretes). De Portugal levei 300 e muitos homens e mulheres.

"[Na Bósnia] Participámos em muitas operações, do controlo de tráfico de pessoas junto à fronteira com a Croácia à tentativa de capturar Milošević"

O que pode contar das operações em que participou?

Participámos em muitas operações, do controlo de tráfico de pessoas junto à fronteira com a Croácia à tentativa de capturar Milošević, que estava indiciado por crimes de guerra.

Realizámos três operações que não foram coroadas de êxito porque, mais uma vez, havia uma toupeira infiltrada no quartel general e Milošević era avisado antes. Sabíamos que estava num determinado local, montávamos a operação em segredo absoluto com as forças de operações especiais americanas, e não o apanhámos.

Trabalhei nisso muito de perto com o general David Petraeus, que foi diretor da CIA, era meu chefe direto e era com ele que comandava este tipo de operações.

Devia ser uma frustração, não?

Suspeita-se que havia alguém infiltrado a passar informação à parte sérvia, porque as ordens eram dadas verbalmente e eu mandava retirar os telemóveis aos militares que iam participar na operação. Tomávamos todos os cuidados e mais alguns quando os militares portugueses saíam durante a noite para montar o perímetro de segurança. Quando chegávamos, já não estava lá, o que significa que era avisado.

"Vladimir Putin só será julgado se a Rússia for vencida, senão nunca lhe conseguiremos pôr a mão"

Acredita que Vladimir Putin alguma vez será julgado e condenado por crimes de guerra?

Na prática é mais fácil julgar os vencidos do que os vencedores, é o que nos diz a experiência. É evidente que Vladimir Putin, que está indiciado por crimes de guerra, só será julgado se a Rússia for vencida, senão nunca lhe conseguiremos pôr a mão.

E acredita que a Rússia será vencida?

Eventualmente.

"Até ao final do ano esta guerra não está acabada. Poderá ter o seu término ao longo do próximo ano, em 2024 poderá ver a luz ao fundo do túnel"

Sei que não é fácil prever, mas quanto tempo mais poderá durar esta guerra?

Não é fácil, de facto. Uma coisa lhe digo: até ao final do ano esta guerra não está acabada. Poderá ter o seu término ao longo do próximo ano, em 2024 poderá ver a luz ao fundo do túnel. Acredito que a Ucrânia vai vencer a guerra, mas daí a julgar todos os criminosos russos vai uma grande distância.

A Rússia perdeu a Guerra Fria porque estava completamente depauperada e muito possivelmente poderá ver-se numa situação de fragilidade agora, os indicadores dizem-nos isso. Nesta altura são precisos 100 rublos para comprar um euro. Por mais que se diga que as sanções económicas não estão a resultar, elas estão a resultar, podem é levar tempo. Estou convencido de que um dos fatores que vai levar a Rússia a refletir sobre isto não é apenas os desaires no campo de batalha, mas também o desconstruir da sua capacidade económica.

O que falta à Rússia para ganhar a guerra?

Falta-lhe poderio militar, que não tem. Falta-lhe unidades treinadas e com capacidade para combater. E falta-lhe a motivação emocional que leva um soldado ucraniano a combater; há muitos soldados russos que nem sabem o que estão ali a fazer, estão completamente desmotivados ou estão como mercenários. A Ucrânia tem um líder que moraliza as tropas, que assiduamente vai para a frente de batalha, enquanto a Rússia tem um homem que fica no bunker e tem, diz-se, pelo menos 20 sósias.

Os sósias são verdade ou ficção?

É um jogo. Não é uma novidade, sempre existiram sósias para proteger ditaduras e ditadores. Não direi que tenha os 20, mas não me admirava se tivesse um ou outro.

Portugal vai ajudar na reconstrução da Ucrânia...

... Julgo que devemos participar, é uma tarefa nobre. Dito isto, o infrator deve pagar aquilo que partiu, é preciso não esquecer que a Alemanha andou a pagar até há bem pouco tempo pela destruição que provocou - dizia-se que as auto-estradas da Bélgica eram as mais bem iluminadas porque a eletricidade era "paga" pelos alemães. Inclusivamente, muito recentemente a Polónia disse que a Alemanha ainda lhe devia uns quantos milhões.

Há aqui um infrator claro, alguém que desrespeitou um país soberano ao arrepio da Carta das Nações Unidas, de que a Rússia é, aliás, subscritora. Por isso a Rússia não pode ficar incólume - já se fala em biliões para a reconstrução, incluindo património mundial da Unesco, como o teatro de Mariupol ou a catedral de Odessa. São coisas que impressionam.

Existe até por parte dos Estados Unidos e de algumas potências europeia a tentativa de aprovar legislação que permita passar do arresto ao confisco dos bens dos oligarcas russos e das reservas que o Banco Central da Rússia tem depositadas nalguns bancos no estrangeiro. Vamos ver o que vai dar.

A Ucrânia também tem oligarcas, diz-se que estão todos na Côte d'Azur...

Diz, e isso tem provocado no presidente da Ucrânia alguma necessidade de se deslocar à frente de batalha e dar algum apoio às tropas. De facto, não se transformam os velhos vícios de que enfermavam todas aquelas antigas repúblicas da URSS, sendo a Ucrânia uma delas, da noite para o dia. Os níveis de corrupção são endémicos e se alguns países, como a a Lituânia, a Estónia ou a Letónia, fizeram uma transição mais rápida, outros têm demorado mais tempo.

Mas agora que definiu o seu rumo de forma explícita em termos de política externa, a adesão à União Europeia e, logo que possível, a integração na NATO, a Ucrânia está consciente de que tem de levar a cabo uma série de reformas para diminuir os níveis de corrupção e reformar o sistema de justiça, com a separação clara de poderes. Curiosamente, esta é uma das questões que os Estados Unidos colocam em cima da mesa em primeira instância para a Ucrânia aderir à NATO: o combate à corrupção e a separação de poderes.

"Não é estranho que Ursula von der Leyen pareça ser a preferida de Joe Biden para ser a próxima secretária-geral da NATO"

O que ia perguntar há pouco é se é justo a Ucrânia passar à frente de países como a Albânia, Bósnia-Herzegovina, Macedónia do Norte, Moldova, Montenegro ou a Sérvia (a Turquia é um caso à parte) na adesão à UE?

Ainda há pouco tempo o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, perguntava à Sérvia de que lado queria estar. Sim, é verdade que a Ucrânia está a ter um tratamento especial, mas ainda não vimos o resultado. Há uma promessa que exige seriedade de ambas as partes, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, empenhou-se claramente nisto, mas também há a promessa do executivo ucraniano de implementar rapidamente as reformas que lhe são exigidas. Se houver cumprimento por parte da Ucrânia, julgo que nada vai obstar a que o país entre na UE antes de outros, porque está num estado de necessidade muito maior, é um país que está a ser devastado.

Aproveito para dizer que não é estranho que Ursula von der Leyen pareça ser a preferida de Joe Biden para ser a próxima secretária-geral da NATO. Ela tem mostrado firmeza e uma grande capacidade de liderança. Uma coisa é certa, a influência do presidente dos Estados Unidos é crucial e Von der Leyen podia inaugurar uma nova era.

Quando Portugal recebeu os primeiros fundos de Bruxelas o governo quase decidiu aplicar o dinheiro noutras coisas e usar o conhecimento das Forças Armadas na construção de auto-estradas e outras infra-estruturas. Como olha para a ideia de usar militares para estas coisas?

As Forças Armadas estão ao serviço da nação. Estão para servir o país e os seus cidadãos. Se olharmos para a história, a engenharia militar portuguesa deixou obra por todo o antigo império português, coisas espantosas. E tinha capacidade de organização e planeamento. Neste momento não terá tanta, mas essa capacidade existe. A Academia Militar continua a formar belíssimos engenheiros civis. Existe o know-how e, fundamentalmente, a capacidade de planeamento, de organização e de gestão de projeto, que exige muita coordenação.

Que resposta dá a quem diz que as Forças Armadas portuguesas são dispensáveis?

Como expliquei, o Tratado de Washington diz que cada país deve zelar pela sua segurança. Temos de cumprir os compromissos internacionais que assumimos, cumprir o que foi acordado na Cimeira da NATO de Gales, em que o governo português se comprometeu com os 2% do PIB para a Defesa. Primeiro era até 2024, agora já é até 2027. Em que ficamos? Muitos países estão a cumprir ou a caminho disso, outros já ultrapassaram os 2% face à instabilidade que se vive no mundo.

Olhamos para a guerra na Ucrânia, mas olhamos com muita suspeição para o que pode acontecer no Mar do Sul da China e no Estreito de Taiwan. O mundo pode tornar-se muito mais perigoso do que está agora e é conveniente que tratemos da nossa defesa. Imaginemos que há uma fragata russa ou um submarino em águas internacionais que dispara meia dúzia de mísseis sobre a Assembleia da República, salvo seja. Não temos um sistema de defesa anti-aéreo capaz de defender uma ameaça dessa natureza.

Parece que nem temos barcos para fazer essa vigilância, basta ver o que aconteceu com o NRP Mondego.

Essa história é caricata, de facto. Lamentável. Penso que uma situação destas, que pode - e sublinho pode - configurar um crime de desobediência, deve ser tratada por quem de direito e não trazida para a praça pública. A lei portuguesa atribui responsabilidade à Polícia Judiciária Militar para conduzir as investigações. Depois de constituída prova, há um tribunal - primeira instância, relação e supremo - a quem compete julgar. Tudo isto deve ser feito no recato, não é preciso vir para a praça pública admoestar. Será que os militares têm culpa? Não sei, tinha de conhecer melhor a situação. A justiça deve ser trabalhada pelos orgãos próprios, para quê tanto alarido? Devemos ser cautelosos.

A propósito do Almirante Gouveia e Melo, embora a pergunta não seja generalista: como vê um militar na Presidência da República?

Os militares são habituados desde sempre a olhar para as coisas com espírito de missão, com entrega total, dedicação. E aplicam o método de planeamento, muito rigoroso, onde nada pode falhar, sincronizam ações, verificam cenários e probabilidades e mais ações em função de cada resultado. E as coisas correm bem, mas corta-se a direito, não aparece a meio um penetra a dizer que quer ser o primeiro. Quer? Não, há-de ser quando chegar a sua vez.

"Se um militar decidir candidatar-se à Presidência da República e os portugueses quiserem, aí ele vai ser presidente da República"

Vou insistir: não interessa quem, mas Portugal está preparado para voltar a ter um militar como presidente?

Até há muito pouco tempo as sondagens pareciam dizer que sim. Se calhar, está. O presidente da Chéquia é um general, Petr Pavel, que foi chairman do Comité Militar da NATO, conheci-o pessoalmente. A Chéquia não tem problemas nenhuns em ter um presidente general.

Está a comparar os dois países?

Pois, a Chéquia é um país mais evoluído que Portugal. E mais rico. E com um complexo militar e industrial mais capaz do que o nosso. Curiosamente, um país que partiu atrás de nós e que neste momento, em termos de produto interno bruto per capita, já nos ultrapassou. E em qualidade de vida também.

Mas, vamos ver, um militar é preparado para liderar, para saber comandar e ser responsável, para lutar pela causa pública. E mais, o comandante supremo das Forças Armadas, pela lei portuguesa, até é o presidente da República. Portanto, se vamos por aí, se calhar um militar até está melhor preparado para exercer essas funções.

Tem de ser um militar? Não, não têm. Não deve ser um militar? Porquê? Então, porque quando tinha 18 anos decidi que queria servir o meu país vestindo uma farda, devo estar impedido de poder ser o primeiro magistrado da nação? Porque carga de água? Lloyd Austin, secretário da Defesa norte-americano, era major-general quando estive nos Estados Unidos, comandava a 10.ª divisão de infantaria na Região do Estado de Nova Iorque. Tem uma personalidade extraordinária, é inteligente e próximo das pessoas. Em Portugal há muitos anos que nem sequer temos um militar como ministro da Defesa. Mas isso são opções dos políticos.

Agora, se um militar decidir candidatar-se à Presidência da República e os portugueses quiserem, aí ele vai ser presidente da República. Ser militar não deve impedir alguém de exercer estas posições na política. Já passaram muitos anos, mas parece que há um complexo. Não tem de haver, os militares são cidadãos antes de mais e quando estão no ativo são privados de direitos, não podem ser filiados em partidos políticos, não podem ter voz ativa numa série de coisas. Aceitamos isso. Quando passamos para a reserva ou para a reforma o caso muda de figura.