Temos que o dizer. Lembrem-se, isto é apenas um jogo de futebol, independentemente de quem ganha ou perde. Uma tragédia indescritível foi-nos confirmada pela ABC News em Nova Iorque: à porta do seu apartamento no West Side, John Lennon – o mais famoso, quiçá, de todos os Beatles – foi baleado por duas vezes nas costas, transportado para o hospital Roosevelt, declarado morto à chegada. É difícil voltar ao jogo após esta notícia de última hora que, por ser nosso dever, temos que anunciar.
Por esta altura, os New England Patriots empatavam com os Miami Dolphins, a menos de um minuto do fim, e a jogada seguinte podia dar a vitória à equipa sediada na área metropolitana de Boston. Porém, para a história não ficaria o resultado desse jogo do campeonato de futebol americano, e sim a notícia que deixou em choque milhares de fãs de desporto, primeiro, e milhões de pessoas por todo o mundo, imediatamente a seguir. A 8 de dezembro de 1980, John Lennon – o mais famoso, quiçá, de todos os Beatles – era assassinado à porta do seu apartamento no edifício Dakota, em Nova Iorque, onde residia.
As palavras do jornalista desportivo Howard Cosell, que comentava o jogo juntamente com Frank Gifford, deixaram um país inteiro em suspenso. Por alguns segundos, ou minutos. Até que a raiva, sentimento humano muitas vezes potenciado pela tristeza e pela impotência, tomou conta dos que souberam, pelas televisões – e contra os desejos de Yoko Ono, que não queria que o filho, Sean Lennon, soubesse da morte do pai pelo pequeno ecrã –, que John Lennon, o homem que deu música aos anos 60 e 70 e inspirou a humanidade a ser melhor e a não se deixar abater perante a adversidade ou o medo, havia sido assassinado. E da forma mais cobarde possível, como nos contam milhares e milhares de contos, romances, poesias, westerns: pelas costas.
Cosell, que até perdeu, por alguns segundos, para a NBC no campeonato mediático da notícia de última hora, tinha-se no entanto enganado: não foram dois, mas sim quatro os tiros a atingir John Lennon. Disparados por uma criança em corpo de adulto, um egocêntrico com ilusões de grandeza, um autoproclamado personagem de grande romance americano, um fanático religioso cujo Cristo não conhecia o perdão. À chegada da polícia ao local, o assassino mostrou não o remorso expectável por quem acredita que a humanidade é boa, ou a frieza total e inequívoca de um psicopata, mas o pânico típico de uma vítima de bullying:
Não me magoem. Estou desarmado. Não deixem que ninguém me magoe.
História de um assassino
Mark David Chapman não teve uma infância fácil. Nascido a 10 de maio de 1955 em Fort Worth, no Texas, filho de um sargento da força aérea e de uma enfermeira, desde muito cedo se viu lado a lado com a violência – particularmente a que o seu pai, colérico, exercia sobre a mãe, que chegava mesmo a gritar para que o próprio filho a defendesse. A falta de amor paterno coexistia com a proteção da mãe, que em entrevista à revista “People” admitiu ter agido mais como «a melhor amiga» de Mark, e não como a figura de autoridade que deveria ter sido.
Na infância, apesar de manter alguns amigos, era um alvo fácil para as demais crianças. «Sentia-me uma criança normal. Mas começaram a acontecer certas coisas, maioritariamente na escola, ou quando tentava interagir com os outros miúdos. Comecei a sentir-me alienado. Os outros miúdos gozavam-me, e eu não me conseguia defender. Não tinha um porte muito atlético, e comecei a sentir-me inferior. Chamavam-me maricas”, confessou ao jornalista Jack Jones, que em 1992 editou um livro onde explora a psique de Mark e os motivos que o levaram a assassinar John Lennon, “Let Me Take You Down”. “Sei agora que isso não era muito diferente daquilo por que outros miúdos tinham passado. Mas a diferença é que essas coisas magoaram-me a sério, e nunca as esqueci ou superei”.
Nascido mesmo a tempo de viver, em primeira mão, toda a contracultura dos anos 60 e o êxito planetário dos Beatles, Mark Chapman descobriu as drogas na adolescência. Na escola, tornou-se numa espécie de hippie, encontrando no LSD e na erva um escape de um mundo que não compreendia e que não o compreendia, à semelhança de tantos outros jovens. O seu quarto era adornado por posters dos Beatles, e no gira-discos tocava “Magical Mystery Tour”, o álbum de 'I Am the Walrus'. Mas Mark não queria ser a morsa; queria ser Holden Caulfield, o protagonista do clássico “The Catcher in the Rye”, de J.D. Salinger (“À Espera no Centeio” / “Uma Agulha num Palheiro”, em traduções portuguesas).
No livro, Caulfield, um adolescente de 16 anos, vê-se uma vez mais expulso de uma escola que detesta, rodeado por colegas que despreza. Alienado do mundo, sem possuir quaisquer interesses vocacionais, e acabrunhado pelo seu próprio ego – considera quase todos os que o rodeiam como “falsos”, especialmente o seu irmão mais velho, guionista em Hollywood, terra de dinheiro e mentiras –, Caulfield tem apenas um sonho: o de ser o catcher in the rye, a pessoa que impediria um grupo de crianças, a brincar num campo de centeio, de caírem no precipício em redor.
Mark leu o livro ainda jovem, e a ele regressaria por diversas vezes, já em idade adulta, ficando obcecado com a personagem Holden Caulfield; chegou a assinar uma cópia do livro, oferecida à sua esposa, com o nome do protagonista, e afirmou, já na prisão, ter assassinado Lennon para promover o livro que não escreveu, uma cópia do qual tinha consigo na mesma noite em que cometeu o crime. «Tudo o que importava era fazer de tudo o que pudesse para promover a leitura desse livro, por pessoas de todo o mundo», afirmou.
Talvez isso não fosse necessário – “The Catcher in the Rye” é comummente considerado como um dos melhores romances do séc. XX, e a sua leitura é proposta em escolas secundárias por todos os Estados Unidos e obrigatória em cursos de literatura inglesa e norte-americana. Uma obsessão não é, no entanto, fácil de apaziguar. Chapman não queria ser apenas um Holden Caulfield; queria ser o Holden Caulfield, o protagonista, o nome que é sinónimo de depressão juvenil. Queria salvar as crianças – a humanidade – de cair do precipício. E queria engendrar uma guerra quase santa contra todos os “falsos”.
No campo de centeio
Ninguém, na mente do assassino, era mais “falso” que John Lennon. Do mesmo modo que pregava o amor, a paz, a liberdade para toda a humanidade, o ex-Beatles vivia num apartamento luxuoso, era conduzido por uma limusine e tinha mais dinheiro na conta bancária que muitos dos seus fãs ganhariam ao longo de toda a vida. «Disse-nos para imaginar um mundo sem posses, e ali estava ele, com milhões de dólares e iates e quintas e propriedades, a rir-se de pessoas como eu, que tinham acreditado nas mentiras e comprado os discos e construído boa parte das nossas vidas em torno da sua música», explicou Chapman.
Tal percurso pode soar, e soa, estranho. Como é que um fã se transforma numa criatura de ódio, renegando todo o seu passado e tudo o que sentiu ao escutar a música, os versos? Como é que um ídolo cai do seu pedestal? A resposta, pelo menos em Chapman, pode estar na bíblia. Ainda na adolescência, tornou-se presbiteriano, abandonou as drogas e passou a distribuir mensagens em nome de Cristo, trabalhando para organizações como a World Vision (que trabalhava com refugiados da guerra do Vietname) e a YMCA.
Todos os relatos desse período, da parte de quem trabalhou de perto com ele, apontam para um trabalho notável realizado por Chapman, que transparecia preocupar-se genuinamente com as crianças de que cuidava, em mais um paralelo da história de Caulfield (que colocava a inocência das crianças acima de qualquer toque de maturidade adulta, daí o seu sonho). Chegou a viajar para o Líbano, onde se viu envolvido na violenta guerra civil que abalou o país, e apertou a mão ao presidente Gerald Ford, durante uma visita deste a um dos acampamentos da YMCA.
Os miúdos, para quem tocava guitarra, contava histórias, e os quais acompanhava em brincadeiras, chamavam-lhe “Captain Nemo”, numa alusão à personagem de “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne. «Ele era uma espécie de flautista de Hamelin com as crianças», contou Tony Adams, diretor da YMCA do condado de DeKalb, no estado da Geórgia. «Não posso senão dizer coisas boas do Mark Chapman que conheci ao longo desses cinco ou seis anos». As sementes do homicídio já estavam, porém, plantadas mesmo nos anos em que Mark Chapman aparentava ser um homem bom. E a culpa foi de Lennon, mais concretamente das suas declarações ao “Evening Standard”, de Londres, onde proclamava serem os Beatles «mais populares que Jesus Cristo».
O início do fim
Quase dez anos após essa tirada, em 1975, Lennon decidiu fazer uma pausa prolongada da indústria musical. Queria acompanhar Sean, filho seu e de Yoko Ono, até que este cumprisse o seu quinto aniversário. No seu âmago estavam não só o cansaço (os Beatles haviam terminado em 1970, mas a sua carreira a solo ia de vento em popa) e a necessidade de assentar e cuidar da família, mas possivelmente também alguma culpa: o músico não queria que Sean passasse pelo mesmo que passou Julian, o seu primeiro filho (com Cynthia Powell), o qual abandonou na infância e com o qual só se reconciliou quando este era já adolescente.
O hiato foi interrompido em 1980, com o lançamento de “Double Fantasy”, que viria a ser o seu último álbum ainda em vida. E que não foi inicialmente bem recebido pelos críticos, que o descreveram como “um bocejo”, “péssimo” ou “irritante” pela temática da vida familiar – particularmente a vida de Lennon com Yoko – que continha. Três semanas depois, Lennon é assassinado e esses mesmos críticos foram, naturalmente, “obrigados” a reavaliar o disco, hoje visto como um clássico.
Chapman, por esta altura, tinha largamente abandonado a música de Lennon em favor de Todd Rundgren, o qual considerava um génio. A sua vida tinha voltado, ao longo dos últimos cinco anos, a sofrer várias reviravoltas; terminou um noivado após ter tido um caso com outra mulher, inscreveu-se no Covenant College, uma faculdade evangélica na Géorgia, desistindo após um único semestre, e viajou para o Havai, onde tentou suicidar-se. Os seus problemas psicológicos começavam a pesar-lhe no corpo. A sua cabeça era povoada por aquilo a que apelidava de “Little People”, uma espécie de governo imaginado, completo por ministros e figuras religiosas, sobre as quais exercia total domínio e as quais votavam as suas ações no mundo real. Essas vozes, geradas ainda na adolescência, abandonaram-no – segundo Mark – no dia em que começou a planear o homicídio.
Diagnosticado com uma depressão, Mark Chapman passou uma temporada no Castle Memorial Hospital, onde começou também a trabalhar após ter tido alta (e, uma vez mais, os seus ex-colegas guardam-lhe vários elogios pela forma como se relacionava com os pacientes e médicos). Após uma viagem pelo extremo oriente, uma mudança para o Havai e um casamento com Gloria Abe, norte-americana de ascendência japonesa que era também a sua agente de viagens (e o facto de ser japonesa traça também um novo paralelo entre Chapman e Lennon, igualmente casado com uma mulher do país do sol nascente), o assassino acabou por chegar a 1980 com apenas uma ideia em mente: matar o ex-Beatle.
Não Matarás
Em outubro desse ano, viajou pela primeira vez até Nova Iorque, mas cancelou o seu plano após ter visto a mensagem “não matarás” a passar pela televisão do seu quarto de hotel. Encontrando uma réstia de sanidade, jurou procurar ajuda psiquiátrica, mas não cumpriu essa promessa. Regressou à cidade a 6 de dezembro, armado com um revólver e um punhado de balas, que lhe haviam sido dadas por um amigo na Geórgia, que desconhecia o propósito de Chapman – seriam para “proteção”, confidenciou Mark.
Ao longo desses dois dias e até aos disparos, Chapman viria a deter conversas amenas com alguns dos fãs dos Beatles que, como ele, esperavam à porta do edifício Dakota para poder ver de perto o seu ídolo. Os seguranças do prédio, para quem Mark era apenas mais um fã extremoso, tentavam sobretudo ignorá-lo, sem o desrespeitar. A algumas das pessoas com quem se deparava, dizia que algo estava prestes a acontecer – sem especificar o quê, e sem revelar estar na posse de uma pistola de calibre .38 no bolso do casaco.
Até ao dia fatídico em que deixou de ser mais um à porta do edifício Dakota, para passar a ser o homem que matou Lennon, Mark David Chapman oscilava entre o nervosismo e o entusiasmo, lutando sem sucesso contra os seus próprios demónios. O músico, gritava o Holden Caulfield dentro dele, teria que morrer. Era um “falso”, era um ídolo de barro. Era um ateu que pronunciava a palavra Deus de forma blasfema. Um ricaço que vendia a paz como produto. Numa loja de discos próxima, Chapman adquiriu uma cópia de “Double Fantasy”, e numa livraria comprou uma nova edição de “The Catcher in the Rye”, assinando-a de forma promonitória:
Esta é a minha declaração. Assinado, Holden Caulfield.
Entre uma série de não-encontros e de encontros fortuitos que em nada deram, o dia de 8 de dezembro de 1980 foi passado por Mark David Chapman de forma ansiosa. A dada altura, encontrou na rua a governanta de John e Yoko, que passeava Sean Lennon. Chapman chegou a apertar a mão à criança, citando versos de 'Beautiful Boy (Darling Boy)', tema de John para o filho mais novo. Até que se deparou pela primeira vez com o objeto da sua obsessão, que saía, com Yoko, do Dakota em direção aos estúdios Record Plant.
Sem dizer praticamente uma palavra que fosse, Chapman pediu a Lennon para que lhe autografasse a cópia de “Double Fantasy”. Presente no local, o fotógrafo Paul Goresh, com quem Chapman havia trocado alguma conversa, registou o momento para a eternidade: a vítima encontrava o seu carrasco, sem o saber. Embasbacado, o quase-assassino ainda terá pensado em regressar imediatamente ao seu hotel, com o disco assinado, fazer as malas e voltar para junto da esposa, com uma história bonita para contar. Mas o seu Holden Caulfield pessoal tinha outros planos. E de imediato relembrou a Chapman que John Lennon «não era real».
Chapman, o “falso”
Por volta das 22h50, John Lennon e Yoko Ono regressaram à sua casa, na mesma limusine que os havia transportado até aos estúdios. À sua espera, numa rua paralela, estava o revólver de Chapman. Dos cinco tiros disparados, quatro acertaram em Lennon, que ainda agonizou no local antes de ser transportado para o hospital, morto à chegada.
Mais que fugir, Chapman lançou fora o revólver e limitou-se a permanecer no local, lendo a mesma cópia de “The Catcher in the Rye” que havia comprado horas antes. Não me magoem. Estou desarmado. Não deixem que ninguém me magoe. A polícia prendeu-o de imediato e transportou-o para um local seguro, antes que o inevitável – o linchamento do assassino por parte de uma multidão enraivecida – acontecesse. Sujeito a uma miríade de avaliações psicológicas, Chapman foi diagnosticado como sofrendo de esquizofrenia e/ou depressão, e mantido longe de um hospital público até ao dia do seu julgamento, que teve início em janeiro de 1981. Os seus advogados aconselharam-no a declarar-se inocente por motivos de insanidade, mas Chapman preferiu dar-se como culpado, ao mesmo tempo que tecia loas a Deus e ao seu livro favorito.
A 24 de agosto desse ano, Mark David Chapman conheceu por fim a sua sentença: prisão perpétua, mas com a possibilidade de ser libertado após 20 anos de pena mínima. 40 anos volvidos após o homicídio, Chapman continua na prisão de Attica, tendo-lhe sido negada a liberdade condicional por diversas ocasiões. Nem Yoko Ono nem os fãs dos Beatles o querem ver em liberdade. Muitos afirmam que, no mesmo dia em que saia da cadeia, Chapman será morto por algum fã ainda desolado – e isso também tem servido de justificação para a sua não-libertação.
Na prisão, após alguns anos iniciais duros, Chapman esqueceu a sua obsessão com o livro de Salinger, mas não com o livro sagrado dos cristãos. Jesus Cristo, afirma, já o perdoou pelo crime. O próprio Lennon, alega, seria a favor da sua libertação. A mulher, Gloria, nunca o abandonou – e saiu do Havai, mudando-se para a região de Nova Iorque, para estar mais perto de Mark. O pai reconciliou-se consigo, a mãe ainda lhe guarda carinho. De todo o mundo lhe chegam cartas: ameaças de morte, pedidos de explicações, de autógrafos, até elogios e declarações de amor.
Escreveram-se livros, fizeram-se filmes sobre o assassino. Cantaram-se canções. Se a tragédia de Altamont havia sido a morte dos loucos anos 60, onde uma mudança radical na forma como encaramos o mundo parecia possível, o homicídio de Lennon foi o seu último suspiro: a prova de que, independentemente do muito que se cante pela paz, a violência estará sempre à espreita. Ao matar John Lennon, Mark David Chapman tornou-se ele próprio numa celebridade, num nome indissociável do do ex-Beatle: desde aquele dia 8 de dezembro que não mais podemos contar a história de Lennon sem contar também a de Chapman.
Mas, mais do que isso, Chapman tornou-se naquilo que o seu herói fictício detestava: um “falso”. E ele sabe-o, confessando a Jack Jones: «Qualquer pessoa que esteja na cadeia por homicídio não deve ser tratada desta forma, não deve ter o estatuto de uma celebridade. Não se deve pegar numa carta ou fotografia assinadas por alguém como eu, e leiloá-las para fazer dinheiro. Isso diz-nos que a nossa sociedade está verdadeiramente doente». Doente ou não, a sociedade não permitirá a Mark David Chapman poder reentrar nela tão cedo. A próxima avaliação de uma possível liberdade condicional ocorrerá em 2022 – e muito dificilmente a ABC News interromperá um jogo de futebol para noticiar a sua saída de Attica.
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