À Lusa, a mentora do Ciclopes — Achata Colinas, Catarina Martins, explica que o projeto visa a “promoção da mobilidade ciclável, principalmente nos bairros de intervenção prioritária”.
“Queremos criar um movimento que vá contra esta ideia de os miúdos não terem autonomia e estarem presos nas ‘ilhas’ [bairros sociais] e que promova a liberdade de deslocação e a liberdade de oportunidades”.
A experiência no Bairro Padre Cruz, situado na freguesia de Carnide e considerado o maior bairro municipal de Lisboa, tem sido gratificante, segundo a responsável, que acredita no projeto como um manifesto e no “poder transformador de duas rodas montadas numa estrutura de metal”.
“Achatar as colinas e reduzir as diferenças, achatar as colinas de rendimentos e achatar as colinas de Lisboa. A bicicleta é efetivamente um veículo que pode ser muito interessante como desobstrução para outras coisas”, considerou.
Todas as segundas e quartas-feiras, a Cicloficina abre portas, entre as 14:00 e as 19:30. Até ao momento, conta já com mais de 230 inscritos na base de dados. O processo é simples: à chegada é escolhida a bicicleta e escrito num papel o nome, a hora a que é levantada e o número que a ‘bike’ tem assinalado no quadro.
Anderson Mendes, Pedro Miguel e Frederico, que todos tratam por Kiko, foram dos primeiros a chegar no dia em que a Lusa visitou o projeto. Já se encontravam de volta das suas bicicletas, sob o olhar atento dos monitores Patrick Filipe, Pedro Bastos e do italiano Massimo Marano a dar umas últimas afinações.
Pedro Miguel começou por trocar a câmara-de-ar de um dos pneus da bicicleta, coisa que há uns meses diria ser impossível de fazer.
“Quando vim para aqui, vou ser sincero, não sabia trocar uma roda, agora já sei rodar isto tudo”, contou à Lusa, adiantando que, tanto o monitor Pedro como o Patrick, “que são os que tratam mais das ferramentas”, já o ensinaram a resolver vários problemas que podem surgir na bicicleta como a falta de travões ou a roda empenada.
Antes do Ciclopes chegar ao bairro, o jovem de 17 anos ia jogar futebol para a associação Bola pr’á Frente (projeto de cariz sócio educativo), mas agora é um dos frequentadores assíduos “desde que abre até que fecha” e faz tudo para entregar a ‘bike’ a horas, nunca depois das 18:30, porque há “castigos de não andar duas semanas”, se tal acontece.
“Venho sempre, nunca falto, isto aqui é como o ATL da escola”, contou à Lusa, adiantando que, entre uma ou outra queda, uns arranhões aqui e ali, na mão ou na perna, o que gosta mais é de “andar com a roda no ar e sacar cavalinhos” com os amigos, rolando pelas ruas do bairro.
Há coisa de cinco meses, Anderson Mendes descobriu que gostava de andar de bicicleta. Começou por ver os amigos “a sacar a bicicleta” e disse para si próprio que também o queria fazer e para isso tentou vários dias.
A Anderson aplica-se o ditado ‘não há duas sem três’, pois foi a persistência que o fez levantar três vezes do chão sempre que tentava “sacar” a roda dianteira para conseguir fazer o chamado cavalinho.
“A primeira vez que eu fiz isso, eu caí. A segunda vez, caí. A terceira vez, eu caí novamente e a quarta vez, eu comecei a andar assim, às vezes não ando bem (…), é por isso que agora estou a tentar sacar mais de baixo”, disse ao mesmo tempo que exemplificava.
Anderson, como a maioria dos rapazes da sua idade gosta de jogar futebol e admitiu que passava muito tempo em casa, na cama, a “jogar Play[station]”, mas agora reconhece que sempre que pode vai alugar a ‘bike’ para andar com os amigos.
Lembrando que vai buscar uma bicicleta também por causa da escola, Anderson afirmou, com a convicção do alto dos seus 13 anos que, no futuro, quando deixar de andar na escola do bairro, vai usar uma bicicleta em vez do autocarro para ir estudar.
“Vou conseguir, tenho certeza que eu vou conseguir [ir de bicicleta para à escola]”, afirmou.
É esta autonomia e confiança que o projeto também procura transmitir aos jovens, além de os ensinar a andar e a arranjar a bicicleta, conforme explicou o monitor Patrick Filipe.
“Sou de Évora e sempre fui habituado a ter bicicletas por perto, a destruir muita coisa e a ter de reparar muita coisa”, começou por contar, frisando que também cresceu num bairro da periferia, apesar de não ser bairro social.
Patrick está habituado a lidar com crianças e jovens, conforme contou, tendo passado por Atividades Extra Curriculares (AEC) e treinos de râguebi, entre outros, por isso a mecânica no Ciclopes é só uma ferramenta que lhes proporciona.
“A bicicleta aqui é apenas um pretexto para eles virem até nós. Temos a oportunidade de privar junto deles. Pode ser uma aprendizagem, quer em termos cívicos, quer em termos de conduta, em termos de alimentação. Perguntamos muita coisa sobre a escola. Vamos dando assim uns ‘highlights’ [luzes] daquilo que pode ser o futuro lá mais à frente se continuarem a estudar”, explicou.
O monitor reconheceu igualmente que a bicicleta não é apresentada só como algo lúdico, mas também pode ser um meio de transporte, um dos motes do projeto.
“Muitos dos miúdos acabam por ter a oportunidade de sair um pouco mais do bairro, visualizar mais para além do bairro digamos assim, não no sentido pejorativo, mas de terem uma porta aberta graças à bicicleta”, que é um “meio de transporte, além de entretenimento, desportivo ou de lazer”, salientou.
Patrick, que segundo Catarina Martins é também “um exemplo masculino para a maioria dos jovens do bairro”, reconheceu que o projeto tem tido sucesso ao nível das aprendizagens de mecânica, com alguns miúdos, “que antes não sabiam rigorosamente nada e hoje em dia conseguem desmontar e voltar a montar a bicicleta, se fica assim tão afinada ou não é secundário”, confidenciou.
“Eles sentem-se capazes de, têm essa noção e isso é um dos motes aqui também da Cicloficina”, concluiu.
A propósito das ferramentas que o projeto também dá a estes jovens, Catarina Martins lembrou o caso de um rapaz que já vai na quarta bicicleta montada, graças ao que aprendeu de mecânica com os monitores.
“Já assisti a dinâmicas muito giras, de uns ensinarem os outros como se faz depois de terem perguntado e aprendido”, lembrou Catarina Martins.
Segundo a responsável da cooperativa Drive Impact, que promove projetos de mudança social e impacto ambiental do qual faz parte o Ciclopes, houve um dia que tiveram 80 alugueres (gratuitos) de bicicletas, com jovens a ficar numa fila mais de uma hora, salientando que isso só demonstra o valor do projeto.
Atualmente, o projeto está à procura de apoios, pois funciona com recursos da cooperativa, disse Catarina Martins, apelando igualmente ao donativo de bicicletas.
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