“Temos esta particularidade de não conseguirmos fechar os olhos e dizer isto não é para mim’”. Se tivéssemos de resumir as razões pelas quais Isabel Costa e o marido deixaram de ser gestores de topo em grandes empresas para recuperarem um negócio que poucos veriam como promissor – até ser – esta seria provavelmente a melhor. O negócio é hoje a produção de burel, um produto tradicional português, e, mais concretamente, de uma das fábricas portuguesas da encosta da Serra da Estrela, a Lanifícios Império, em Manteigas.
A mudança de vida de Isabel Costa e João Tomás começa, na verdade, um pouco antes do momento em que os olhos de ambos pousaram na fábrica de burel e que deixaram de poder “deitar a cabeça no travesseiro e fazer de conta que não vimos”. Durante mais de 20 anos, Isabel Costa fez carreira na gestão e, na altura em que mudou de vida, era administradora da Sonae MC, responsável pela área de distribuição do grupo português, à época com um faturação de 3,7 mil milhões de euros e uma equipa de mais de 600 pessoas.
O marido, João Tomás, era diretor central do BCP, apaixonado pela natureza e pelas Penhas Douradas em particular, e é dele que parte o primeiro sinal de mudança. “O João disse-me que gostava de ter uma vida diferente da vida executiva, muito mais próximo da natureza, fora da confusão. Agora temos mais essa necessidade que nunca, mas já nessa altura o queríamos e era menos comum. E eu disse-lhe: 'se é esse o teu sonho, se é o que realmente gostarias de fazer, então vamos preparar esse futuro’”.
Preparar o futuro começou pela possibilidade de explorar um espaço que pudesse ser a antecâmara para a tal segunda vida mais ligada à natureza e onde pudessem também receber amigos. Esse espaço foi a atual Casa das Penhas Douradas, antigo Sanatório e primeira estância sanatorial. “O João ‘fez’ muitas montanhas pelo mundo e para ele, em Portugal, a sua montanha era aquela. Eu tenho muito mais ligação ao Gerês porque sou transmontana-minhota”, relata Isabel Costa.
A casa, que tinha sido um hotel-sanatório e que depois ardeu, foi reconstruída por Francisco Esteves dono da SOTAVE e sócio da Lanifícios Império, e este vai ser um detalhe importante mais à frente nesta história. “Na altura o hotel estava fechado, praticamente em ruínas, por isso foi uma recuperação de algo que tinha a ver com a história que já lá existia”.
Mudar de vida com um anúncio de jornal
A mudança para a serra surge através de um anúncio no Jornal de Manteigas, que João assinava. Isabel ri-se enquanto conta, com a surpresa de quem ainda hoje não sabe muito bem porque razão o marido assinava o jornal de uma terra que não era a dele à qual não tinha qualquer ligação pessoal ou familiar. A não ser por causa das montanhas, claro.
“No Jornal de Manteigas, veio um anúncio que dizia “Cabanas de Viriato - Vende-se” e ele disse: “É aqui que quero construir”. Mais ou menos, foi isso”. Compram assim uma primeira propriedade que, após uma análise de viabilidade económica, perceberam que não conseguiriam tornar num negócio sustentável. Mas mantinha-se como “um projeto para nós, para irmos de fim de semana, com amigos”.
É já com um melhor conhecimento do local que se cruzam com a oportunidade de reconstruir o hotel-sanatório. Começaram com 9 quartos e abriram as portas em 2006. “A decisão da compra foi em 2001, no ano em que nasceu o nosso filho. Como está num Parque Natural, tem imensas restrições necessárias para construir e reconstruir. Por isso só abrimos em 2006”.
E é nesse ano que João Tomás muda de vida e ruma à serra, Isabel esperaria mais cinco anos.
Cinco anos para abrir portas é um horizonte temporal significativo, fruto do facto de Isabel continuar em funções na Sonae, e que conseguiram gerir em função do seu passado profissional. Mas, olhando para trás, considera que foi o tempo que devia ter sido.
“Todas essas limitações foram boas, porque acabaram por nos conduzir à melhor solução, ou seja, do primeiro projeto até ao último houve imensas alterações. Vamos sempre, em todos os projetos, validando e acompanhando todas as fases com as entidades. Por isso, fomo-nos adaptando às restrições, porque estamos a falar de um sítio lindíssimo e protegido, mas que também tem de ser viável economicamente porque um hotel é um hotel”.
Licenciar o hotel foi apenas a primeira etapa de tudo o resto que estava por vir. “Nós aprendemos tudo. Era tudo novo e não sabíamos nada. Fizemos os hotéis, que se chamam “casas”, quer um quer outro [mais tarde abriram um segundo espaço], porque queríamos que as pessoas se sentissem como se estivessem em casa. Aqui a pessoa pode servir-se, estar à vontade, andar descalça, tem livros”, descreve Isabel.
A aprendizagem de um novo negócio no sítio que João tinha escolhido para a segunda vida foi intensa, mas não justificava que Isabel Costa saísse das funções que ocupava na Sonae. Até ao dia em que tropeçaram na Lanifícios Império.
“A SOTAVE, que era o principal empregador de Manteigas, fechou em 2005 e em 2008/2009, terminaram todos os apoios sociais daquela grande equipa. Muitas pessoas saíram, gente entre os 40 e os 50 anos ou mais, muitos saíram de Manteigas e depois regressaram, porque não conseguiram arranjar soluções e ali, apesar de tudo, têm as suas casas, os seus campos, os seu animais, a sua autossuficiência apesar de não haver emprego. Começava entretanto a crise económica de 2008”.
Um fim de semana para desenhar um nova economia local
A preocupação alastra na vila e o pároco local, o padre Sampaio – “um senhor já muito velhinho, mas que era uma pessoa extraordinária, um visionário” - com o apoio do bispo da Guarda, do presidente da câmara e da Associação Manteigas Solidária (IPSS-MAS) decide realizar vários encontros para reunir ideias e soluções que dinamizassem a economia local. Isabel e João são convidados. “Nós estamos a 1500 metros de altitude, quase 700 metros acima da vila. Não pertencemos à vila, nem éramos conhecidos na vila mas, talvez por sermos católicos conhecíamos o padre e o bispo”, relata.
Nessas reuniões, Isabel e João mostram a sua discordância das ideias apresentadas. “Grandes túneis, estávamos a falar de investimentos enormes, na época de José Sócrates. Como ele era da Covilhã, se calhar acharam que podia fazer milagres ali, pela zona. E nós achávamos que não era bem assim e que o importante era desenvolver pequenos projetos, com os recursos locais, que criassem postos de trabalho”. É com esse objetivo que organizam um workshop, com o apoio da câmara de Manteigas, para angariar ideias para dinamizar pequenos negócios e arranjar padrinhos que os apoiassem, empreendedores locais ou que vivessem no estrangeiro e fossem de Manteigas.
“Fiz muitas diretas, porque tinha o meu outro emprego que exigia muito de mim, era responsável na Sonae pela área comercial e de novos negócios como a Wells e a Note que surgiram nessa altura. São estruturas que têm um suporte enorme, viajava bastante, estava em muitas feiras internacionais e conhecia as tendências e o mercado. Isso foi uma ajuda muito grande para olhar para os produtos locais e ver que podíamos fazer muitas coisas: com a castanha podemos fazer cremes, farinhas para os celíacos, com o burel que é o feltro que existe no mundo inteiro e um feltro mais qualitativo porque é tecido, podemos fazer a parte decorativa de arquitetura”.
Isabel sabia que era possível encontrar novas utilizações, mas também sabia que mais importante que dizer era mostrar. E foi por isso que decidiu comprar produtos ilustrativos das utilizações que os recursos locais podiam ter – “para que as pessoas pudessem ver, porque é difícil de explicar tudo. Que com um concentrado de castanha podemos fazer um doce ou com a abóbora podemos fazer chutney, ou que com a feijoca tradicional podemos fazer biscoitos e bolos e farinhas”.
E, no fim de semana do workshop, estava montada uma mostra de produtos do mundo inteiro feitos com os recursos locais de Manteigas. Só produtos gourmet eram 54, mas outros foram então pensados num total de 21 planos de negócio elaborados. Isabel e João trouxeram a Manteigas amigos das empresas em que tinham trabalhado ou que conheciam bem, como a Sonae, a McKinsey e o BCP, e cada um ficou responsável por um projeto que acompanhava.
Tomaram a seu cargo o projeto das Casas da Vila, “uma rede de Alojamento Local em que arranjávamos as casas, fazíamos uma rede para que as pessoas, os turistas pudessem ver não só como se recuperavam (as casas) mas também ajudavam nos restaurantes, numa loja da vila. E o Turismo Ativo, as caminhadas, que era uma das atividades mais importantes”.
Mas, antes do burel, foi na área gourmet que investiram tempo, do zimbro à castanha, da abóbora-menina aos cogumelos e às ervas da serra como o mentrasto, o sabugueiro e a Urze. “De tudo isto fez-se geleias, rebuçados, caramelos, e do ponto de vista técnico ficou desenvolvido com certificação e com packaging. Colocou-se uma pessoa a vender esses produtos no Chiado. Um dos produtos que mais se vendia era uma bisnaga com pesto de urtigas”.
“Há pessoas malucas que pegam nas suas poupanças e compram um grande carro. Nós vamos fazer acontecer o Penhas Douradas Food”
Mas, se a descoberta das novas possibilidades foi um desafio entusiasmante para quem já vinha habituado ao mundo dos negócios, o mesmo não acontecia com quem nunca tinha montado uma empresa, por pequena que fosse. “Empreender é muito difícil, especialmente numa comunidade que está habituada a ter um empregador, que era a fábrica e, por isso, as coisas não aconteciam. Lembro-me de, às vezes quando ia à vila, me perguntarem ‘e agora? É tudo muito interessante, mas nada aconteceu’. Gerou-se uma expectativa muito grande, ou seja, houve aquilo a que se chama um comprometimento. Ficou a certeza de que alguma coisa tinha de acontecer”.
É nessa altura que Isabel tem uma conversa com o marido que marca o início de uma nova etapa. “Conversámos os dois e eu disse: há pessoas malucas que pegam nas suas poupanças e compram um grande carro. Nós vamos fazer acontecer o PDF [Penhas Douradas Food, a marca gourmet que tinha resultado do workshop]”.
E foi assim que o rumo da sua vida mudou. “Foi aí que acabei por tomar a decisão de sair da Sonae”, recorda. “Em 2009 informei o Paulo Azevedo que ia sair e depois tive dois anos nesse período de passagem, de preparação das equipas para a minha saída e passar do certo para o muito incerto, quase como um salto no precipício”.
O burel seria o grande desafio que a esperava – mesmo que não o soubesse de forma clara. “Apesar de ser muito otimista e uma grande lutadora, acho eu, pelo menos destemida, era preocupante. Só um louco é que no meio de uma crise como aquela, deixa uma coisa tão certa. Eu ganhava o dobro do que pagava de salários por mês e só por aí já tem noção da loucura que estava a fazer”.
Quando se despediu, estava na Sonae há 20 anos. “A única coisa que faltava era, se calhar, ser presidente de algum dos grupos, mas não era essa a minha expectativa nem a minha ambição”. Tudo o que conheceram na região de Manteigas nos anos anteriores tinha-a aproximado de um local onde sentia que podia ser útil com o que sabia.
“Vim fazer para uma comunidade aquilo que durante muitos anos tinha feito para uma família. Estou a dizer isto assim, se calhar, pela primeira vez. Na Sonae, eu e toda a equipa comigo – isto não foi nada individual, não foi nada de uma pessoa só, foi um trabalho de uma grande equipa –com os apoios todos e com a liderança, na altura, do Dr. Jordão, o meu presidente, fizemos crescer um grande grupo. O retalho foi o grande motor desse crescimento e quando saí era responsável por 3,7 mil milhões de euros por ano e 600 pessoas. Era outra realidade, outros mundos”.
E era mesmo outro mundo. Das 600 pessoas com funções atribuídas e que garantiam todas as tarefas necessárias, a ex-administradora passa a ser ela própria uma espécie de equipa multifunções. “Uma pessoa sai e faz de administrativa, de secretária, de jurídica, vai levar a carta ao correio, faz corte e costura, pega no carro e faz a área comercial, vai às faculdades promover o tecido. Fala com toda a gente, está com toda a gente, move-se para fazer um morto voltar a ter vida, quase. Com uma intensidade e com momentos muito desesperantes. Mas sempre com aquela coisa “vou conseguir. Vou levar isto até ao fim”.
Um “quase morto” que regressou à vida
O burel, e a Lanifícios Império em particular, foi o “quase morto que fizeram voltar à vida”. E que começa por ser uma coisa diferente do que se tornou. “O nosso objetivo ali não era o burel, a nossa entrada naquele espaço era para salvar as máquinas e o conhecimento dos lanifícios. Mas quando começámos a trabalhar lá, achámos que o burel seria um produto muito português”.
Tinham um espaço-teste perfeito para testar os novos materiais com as cores e a tridimensionalidade adicionada que era o hotel. “Era preciso fazer a decoração do hotel, que na altura estava fechado para crescer para o dobro, e foi feita toda com burel. Tínhamos ali uma hipótese de experimentar e ver como podia correr. Pegámos nas peças, quando foi a primeira feira no Japão, em 2010, e levámos com o apoio da ATP (Associação Têxtil e Vestuário de Portugal) para perceber se tinha potencial”.
O novo burel ia sendo bem recebido, mas, ao mesmo tempo, a empresa por trás da sua produção, conhecia o desfecho final. Em 2011, a Lanifícios Império faliu mesmo e Isabel e João dão com eles num leilão à porta fechada, com oferta em carta fechada. Preparavam-se para comprar não a fábrica, cujo edifício estava destinado aos credores, mas as máquinas, únicas, e as pessoas, igualmente únicas no conhecimento que tinham do burel.
“Estamos a falar de máquinas de 1890, são de ferro. Não são máquinas com a tecnologia de hoje, são máquinas muito antigas. E acima de tudo elas são ainda muito mais bonitas se continuarem a trabalhar. Era preservar o património, preservar a máquina e também era muito importante preservar o conhecimento. Nós decidimos continuar e tinha de ser naquela altura. Se não, passados 5 anos ou uma década, o risco de perdermos as pessoas era maior”.
Começaram com 15 pessoas e hoje a fábrica da Burel Factory emprega 40. “Toda a equipa que lá está, neste momento, é jovem. Ou então são pessoas que nunca trabalharam naquela área e que estão a aprender. Alguns jovens regressaram a Manteigas, porque têm a vida mais fácil, têm casa, mas a maioria é de lá”.
2500 metros quadrados de burel na sede da Microsoft
A recuperação do burel assentou na valorização do produto. “Era super-desvalorizado, tinha um preço com margens negativas. Só porque era feito de forma muito artesanal, às vezes para aproveitamento das lãs mais pobres”, refere Isabel.
O primeiro passo era, por isso, valorizar a lã local, uma lã áspera. “Não é uma lã que se possa utilizar como uma merino, são lãs muito ásperas, muito pobres e pelo facto de ser um pequeno recurso à escala mundial tem de ser valorizado, transformado quase em luxo, dando-lhe cor, dando-lhe forma, utilizando na decoração”.
A cor desempenhou um papel importante na nova vida desta lã áspera. “O burel é essencialmente de cores naturais e tinha dois co-tons, o verde e o preto. Mas cor, quase não tinha. Nós introduzimos muita, muita cor, cor forte e introduzimos forma, a tridimensionalidade, na lógica decorativa e na lógica da acústica”.
Para efeitos de mercado, a prioridade foi fazer um levantamento dos operadores que no mundo utilizam a lã e perceber de que forma o fazem. “Ok, nós temos um tecido tão bom ou melhor que o feltrado inglês. Então vamos olhar para ele e vamos fazer diferente”, relata Isabel. Bordar à mão, de forma tradicional, foi uma das apostas de diferenciação. “Olhámos para os nossos pontos (de bordado) e para os nossos vestidos de comunhão e os fatos de veludo. Então avançámos com pontos tradicionais e criámos motivos locais. Todos os nossos pontos têm uma analogia etnográfica – os arados, os canais, as rasas das medidas de cereais, os folhos das saias da Nazaré. Muitos criados por mim. Agora já não é preciso, mas na altura era eu que tinha de o fazer. E tudo isto levava muita mão-de-obra”.
Um dos primeiros pontos de viragem na requalificação do burel acontece com uma encomenda da Microsoft em Portugal para a sede que ia inaugurar em Lisboa. “O projeto que conseguimos da Microsoft ajudou-nos a salvar a fábrica, que estava num processo de insolvência. Os arquitetos queriam que a sede da Microsoft tivesse o máximo possível de produtos nacionais, na lógica da tecnologia versus tradição”. É assim que, em 2011, perguntam a Isabel se é possível fazer os painéis bordados em grande escala.
“Como eu digo que sim a tudo, disse logo ‘claro que sim, à escala que quiserem’”, conta, entre risos. Quando os arquitetos falavam de grande escala, era mesmo grande escala. Mais exatamente uma parede de 2.500 metros quadrados bordados à mão, com os vários pontos que tinham recriado. A Lanifícios Império fechou em novembro de 2011, e no dia 4 de janeiro de 2012, Isabel Costa recebe o telefonema da empresa que estava a construir o projeto da sede da Microsoft: “Só para dizer que a Burel Factory ganhou o concurso. Vamos preparar a obra, isto é uma coisa que nunca ninguém fez. Estamos um bocado preocupados, mas eles querem que as paredes sejam todas forradas tridimensionalmente com os vossos bordados”.
Era um projeto, afirma, que devia ser feito em quatro meses e que ficou pronto em 35 dias. Costureiras da fábrica, reformados e amigos que se voluntariaram para ajudar trabalharam horas a fio para que acontecesse.
“Foi uma aventura muito grande. Tínhamos 14 senhoras a bordar para a Microsoft e a fábrica já tinha fechado. Fomos falar com o administrador judicial e dissemos: ‘sabemos que a fábrica faliu, mas nós queremos alugá-la. Queremos alugar as máquinas e o espaço até o processo da insolvência estar concluído. Assim foi e nunca mais fechou”.
Depois da Microsoft, um conjunto de empresas decidiram usar burel nos seus escritórios. Em Portugal, podem ser encontrados nas instalações do BPI, no edifício Monumental em Lisboa, na OLX, Deloitte, AGEAS, KLMJ, para dar alguns exemplos.
A valorização do produto não passa apenas pela recuperação da tradição, pelo design e pela promoção internacional. A relação com os pastores e com a tosquia da lá foi um dos eixos a que se dedicou particular atenção. “Agora estamos a juntar um quase clube de 10 para podermos certificar as lãs e poderem ser valorizadas mundialmente. Ao longo destes anos todos, com a Comunidade Europeia, juntámos consórcios científicos para certificar o produto. Saber que se utilizarmos X% de lã na parede, reduz o consumo de eletricidade em 10%, por exemplo. O nosso slogan é “A ciência por trás da lã””.
A recuperação da fábrica, diz Isabel, não teria sido possível sem quem sabe do ofício. “O José Luís é da minha idade e foi a pessoa que, na altura, quando pegámos no projeto, estava com a Lanifícios Império e eu disse-lhe ‘Zé Luís, só faço isto se for consigo’. Porque ele é que sabe de lanifícios, sabe fazer fio, sabe tudo. Eu posso saber de gestão, mas tecnicamente não percebo nada”.
Não fechou, mas mudou de sítio, uma vez que o edifício não fazia parte da venda da empresa. E, para a história da Burel Factory, ficou a encomenda da Microsoft. “Digo sempre isto, está escrito em todo o lado, se não tivesse aparecido aquela obra naquela altura, o projeto não se fazia assim”.
Olhando para trás, numa retrospetiva de 11 anos, a valorização da lã local é um trabalho que vai a meio, afirma Isabel: “ainda vai levar mais uns 10 anos, pelo menos”.
Do design e da arquitetura à moda
Depois da encomenda da Microsoft e da primeira apresentação numa feira no Japão, em 2010, começam a abrir-se mais portas, mas ainda não eram as suficientes para a sustentabilidade do negócio. É por isso tomada a decisão de abrir duas lojas, uma no Chiado, em Lisboa, e outra em Santa Catarina, no Porto. “Para se ter a indústria a trabalhar, não pode ser só quando há encomendas, há uma equipa em permanência que tem de ser mantida e que tem de produzir. Ainda não tínhamos clientes, por isso tínhamos de ser clientes de nós próprios”.
Mas, o grande investimento da empresa foi a ida a feiras internacionais - 11 por ano - de design, de casa, de tecidos e, mais recentemente, também de arquitetura. “Começámos a ter a rotina das feiras: a Maison & Objet (França) duas vezes por ano, a Textile Fair (UK), a New York Now (EUA), a Interior Lifestyle (Japão). Íamos quatro vezes por ano ao Japão, que passou a ser o nosso principal mercado até ao Covid e depois, com o Covid, passou a ser zero. O mercado fechou completamente”.
2023 marca o regresso do mercado japonês. Em fevereiro, quando conversámos, a Burel Factory tinha recebido os dois primeiros clientes japoneses, outra vez.
O design e a arquitetura abriram caminho ao burel, mas a utilização no têxtil de vestir não foi esquecida e é, em 2023, a grande aposta. Nas lojas e online vendem, desde o arranque, a capa tradicional e acessórios, como as malas, e os ténis em parceria com marca Sanjo, temos várias parcerias em calçado. A Burel desfila na Moda Lisboa desde 2011, com incursões com nomes como Pedro Noronha Feio, Sara Lamúrias, Filipe Faísca e os Storytaylors.
A nova coleção, apresentada em fevereiro, traduz uma aposta no têxtil-moda e começou por responder à pergunta “como é que trazemos o fio do burel para a moda?”.
E a resposta está em vários dos produtos que chegaram à loja, como bonés feitos com um fio de 800 gramas – “fica com uma feltragem muito grande o que o torna impermeável e é bom que seja assim” – mas também casacos, com 600 gramas – “pica ainda um bocadinho, mas já é mais suave e mais leve”. “Trabalhamos primeiro a cor, depois a forma e depois a densidade, que podemos ter desde as 450 gramas até às 1.400 gramas de densidade.
O mercado da moda, além de posicionamento, surge como uma necessidade. Mais uma vez, por causa de algo que viram e que não podiam deixar de olhar. “Em 2021 tivemos a necessidade de comprar a Alçada & Pereira, a fábrica que nos fazia a ultimação e tinturaria, na Covilhã. Essa fábrica era a última em Portugal, não vertical, que prestava esses serviços de ultimação e tinturaria a quem fosse lá”.
Isabel continua a descrição. “A tecelagem é importante, mas muito mais importante é a ultimação. É o que dá estabilização ao tecido, põe mais fofinho ou mais áspero, uma má ultimação destrói completamente o trabalho. Esta empresa fazia isso para nós e para vários clientes. Já era a terceira geração, a empresa faliu e nós voltámos ao mesmo processo que tínhamos passado há 10 anos– ‘não podemos deixar morrer isto’, a Burel [ que faz a carda, a fiação, a tecelagem e a transformação] não vive sem ela”.
E a história repete-se
Em 2021, a Alçada & Pereira entra em falência e a história repete-se. “Então neste momento temos uma fábrica que se chama A Transformadora - Fábrica de Pisão Novo. Esta fábrica tem um problema enorme de falta de clientes. É um monstro de uma fábrica, na sua dimensão e em elevação de custos – trabalha com gás natural e por isso cada dia que se liga aquela máquina são mil euros em gás, só num dia. Fazemos uma gestão muito apertada, ligamos ou não o vapor, ligamos ou não as máquinas”.
Com um novo problema, e missão, procuraram novas soluções. “Na Transformadora temos de ter mais clientes, temos de ter mais metros de tecido para ultimar. Então pensámos que o ideal era que nós próprios também fossemos clientes de moda – estava na altura de lançarmos um conceito de moda e isso já acrescentou 5 mil metros de tecido na ultimação e em crescendo”.
A primeira etapa, tal como aconteceu no passado, é criar condições de sustentabilidade ao negócio, mas com os olhos postos no que virá à frente. “E depois vem o sonho: ‘Agora vamos pôr esta fábrica a trabalhar de uma forma diferente. Como é que vamos inovar com ela nos próximos 3 anos?’.
Para já, a Alçada & Pereira dá emprego a 22 trabalhadores, a que se somam os 62 da Burel e mais outros 60 dos hotéis. Ainda não são os 600 da equipa que Isabel tinha na Sonae, mas já é um número significativo.
O que não a impede de continuar a dizer que o objetivo não é dimensão – mas tudo o resto. O património industrial e dos produtos tradicionais continua a atravessar-se no seu caminho, a comovê-la e a causar-lhe profunda revolta.
“São toneladas de máquinas que vamos mudar de uma fábrica que fechou na Guarda, a Vasco – SerraLã. Foi vendida e foi um crime. Fomos ao processo de insolvência, ao leilão das máquinas, porque precisávamos de umas peças e são máquinas antigas. Era uma fábrica com 3 linhas de cardação de fio grosso, a última máquina foi toda destruída em ferro, foi vendida por 150 mil euros para a sucata, e eu saí de lá a chorar. Qualquer pessoa pega nisto e põe-na a funcionar, eles são os últimos a fazer aquele tipo de fio”.
É também por isso que acredita que o maior legado da escolha que ela e o marido fizeram para a sua segunda vida é o futuro. “Todos estes patrimónios ficam muito sólidos para a região. Seja qual for o futuro daqui a 50 anos, que já cá não estamos, ficam sólidos”.
Este património tornou-se ele próprio um roteiro de formação e de turismo. A Lanifícios Império que passou a ser a Burel Factory, é visitável todos os dias das 11h00 às 16h00, tendo uma média de 30 visitas por dia. “Foi sempre visitável e está sempre aberta quer ao mundo das artes, quer a um designer. Às vezes perguntam “posso ficar lá um dia inteiro?’ – E pode”.
Quando estiver “apresentável”, nas palavra da nova proprietária, a Transformadora também vai ser visitável . “Mas já há residencial, as pessoas já podem ir para lá trabalhar e viver lá, temos vários estagiários, pessoas da área química, por exemplo”.
O próximo grande desafio é juntar tradição e ciência num mesmo produto, artesanato e materiais biónicos. “Há uma grande tendência, há mais de 10 anos, para os produtos naturais, as fibras naturais, o back to basics, valorizar o passado e a nossa arte, valorizar a história do país e aquilo que é diferente. Agora a tendência é como é que inovamos, juntando as art & crafts com os biónicos. Acho que estas duas coisas vão ser a grande revolução do futuro – juntar o mundo do passado com o mundo do futuro”.
A Burel Factory já está a trabalhar nisto num programa até 2025. “Haverá 5 ou 6 tendências para os próximos 5 ou 6 anos e temos de olhar para elas e ver como podem ajudar na preservação e na recuperação – recuperar a nossa roupa, recuperar o nosso móvel. Como é que entramos neste mundo com o que nós temos e que faz parte do planeta – estas são as nossas grandes linhas, se quisermos estar aqui daqui as uns anos”.
“Não pode haver peneiras e não pode haver orgulho, tem de haver muita humildade”
É esta a visão da ex-administradora da Sonae que diz que não gosta de criar grandes expectativas e que sabe, agora na prática, o quão difícil é construir um projeto de raiz. “Os grandes fracassos são de quem passa de grandes empresas para as pequenas. Nos grandes grupos temos o apoio de todas as estruturas e financeiro quase sem limites. Desde que se prove, pelos números, que é algo que tem uma rentabilidade, que tem retorno. Não é sequer imaginável o que uma microempresa tem de fazer acontecer. Tem de se ter muita, muita perseverança, muita paciência”.
Essa é uma lição da mudança, mas talvez nem seja a mais importante. ”Não pode haver peneiras e não pode haver orgulho, tem de haver muita humildade. Um membro de um conselho de administração se se zanga afeta uma equipa toda, e se sorri afeta uma equipa toda, aqui estamos a falar de uma única pessoa que tem de fazer as coisas acontecer”.
E isso custou-lhe?, perguntamos. “Não me custou. Não me custa nada fazer tudo”. A explicação leva-nos de volta ao início da história: “a partir de uma certa altura temos como missão olhar para as coisas não no sentido material, mas sim social. E, por isso, olhar para trás e dizer que fizemos parte de desenvolver economicamente uma região, que há um pleno emprego, que há mais crianças a nascer e que até aquele risco que havia de perder a escola primária, já não se põe na próxima década. Que muitos jovens têm emprego e regressam, isso é extraordinário. Que há um património chamado burel, um tecido que era muito pobre. E que neste momento é moda, é um luxo”.
Pelo meio, é impossível não acreditar que Isabel Costa se está a divertir pelo caminho. Ela ri-se e responde: “mas isto é muito pouco estruturado. As grandes empresas têm grandes planos de negócios. Nós não temos essa capacidade, somos pequenos e vamos fazendo aquilo que a nossa intuição ou que a nossa paixão nos diz”.
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