O presidente francês, Emmanuel Macron, decretava em 2019 a morte cerebral da NATO. Agora, muitos temem que a reeleição de Trump - que entre 2017 e 2021 esgotou a aliança, dividiu países-membros, puniu-os pelos baixos orçamentos de Defesa e foi condescendente com Vladimir Putin -, deite tudo a perder.
Com republicanos ou democratas na presidência, Estados Unidos e União Europeia estão condenados a entender-se, caso contrário a Rússia e a China vão dominar.
Sten Rynnin, autor do livro "NATO - Da guerra fria à Ucrânia, uma história da aliança mais poderosa do mundo", onde traça a vida completa da instituição, da sua fundação, em 1949, aos nossos dias, diz ao SAPO24 o que está em causa.
Ao longo de 75 anos, a Organização do Tratado do Atlântico Norte navegou pelo mar conturbado da diplomacia e da dissuasão nuclear da Guerra Fria e aumentou o número de signatários. A aliança tornou-se um garante da paz, mas o seu complexo funcionamento interno, juntamente com a oposição russa e chinesa, estão a moldar a trajetória da organização.
A NATO corre mais perigo com Trump do que com Harris como presidente dos Estados Unidos ou, de certa forma, existe um problema que a aliança tem de resolver independentemente disso?
A NATO está desafiada fundamentalmente por dois desenvolvimentos políticos: a Rússia está agressiva e a China está a crescer. A China está a afastar os Estados Unidos da Europa e isto vai continuar. O Médio Oriente continua a afastar os Estados Unidos da Europa, e isto acontece quer o presidente seja Harris, Trump ou qualquer outra pessoa.
Com base nisto, não há dúvida que Trump representa um maior risco de perturbação. Ele tem um fraco conhecimento sobre política internacional, tem um fraco conhecimento sobre a Europa, tem um fraco conhecimento do que custa aos Estados Unidos construir parcerias e alianças duradouras.
Por isso irá certamente fazer o que fez na sua primeira presidência se voltar à Casa Branca, que é criar muitos problemas à aliança. E isso, numa altura em que a Rússia está em movimento, pode dar à Rússia oportunidades - e, mais uma vez, isso são más notícias para a Europa. Portanto, não tem de ser porque Trump retira os Estados Unidos da NATO, pode provocar danos por ser disruptivo.
Mas também veremos uma presidência de Harris a sublinhar que a Europa deve assumir uma responsabilidade muito maior do seu próprio destino. E isto é realmente difícil para os europeus, porque a guerra na Ucrânia expôs profundas divergências de opinião dentro da Europa.
"A China está a afastar os Estados Unidos da Europa e isto vai continuar"
Como é que a Europa pode assumir essa responsabilidade? São poucos os países que cumprem a meta dos 2% do PIB para a Defesa...
A cláusula central da NATO, no que trata de construir músculo, é o Artigo 3.º do seu Tratado, que diz que todos os aliados devem providenciar a sua própria Defesa, é uma aliança de auto-ajuda. É preciso ajudar-se a si próprio e então a aliança também irá ajudar.
E os europeus têm a tendência de esquecer um pouco esta parte da auto-ajuda, por isso, tendem a contar com os americanos. E os americanos têm vindo a dizer continuamente: pessoal, têm de ler o Tratado, diz auto-ajuda.
Portanto, os Estado Unidos têm razão ao dizer que a Europa está a fazer muito pouco. Mas algumas figuras políticas nos EUA, incluindo Trump, estão erradas quando dizem que os europeus não estão a pagar a sua conta na NATO. Os 2% são em relação à Defesa nacional.
Mas se não gastam esses valores na Defesa, não estão a auto-ajudar-se e estão a sobrecarregar outros, nomeadamente os Estados Unidos.
Sim, mas os europeus estão a pagar todas as suas contas na NATO, que se destinam ao funcionamento da sede, delegações políticas e infra-estruturas de comunicação, essas coisas.
Trata-se daquilo que é justo quando falamos de auto-ajuda. Penso que o Congresso, de um modo geral, tem apoiado muito a NATO e tem sido bastante enérgico em relação à Rússia. Mas com Trump existe o risco de o espírito no Congresso mudar, o Partido Republicano pode passar de internacionalista a isolacionista e isso seria problemático também para a NATO, porque se tiver a sensação de que os europeus não estão a pagar as suas contas, a parte que lhes cabe, então isso vai aumentar ainda mais a disrupção da presidência de Trump.
Penso que foi Kissinger que escreveu um artigo sobre os erros da política externa dos Estados Unidos. Trump tem noção do que é o equilíbrio do poder?
Penso que o Kissinger queria dizer é que política externa deve começar pelo que existe fora, quem está connosco, quem está contra nós, quem é neutro, como podemos navegar melhor nisto? E depois olhamos para a nossa caixa de ferramentas e pensamos no que gostaríamos de fazer. E ele estava a dizer que os EUA têm tendência para não o fazer.
Os Estado Unidos têm a tendência para não fazer isto, para começar por si próprios, pelo americanismo, por pensar no que seria óptimo para o mundo se a América fizesse isto ou aquilo. E isso torna-se demasiado ilimitado, demasiado amplo, ou torna-se demasiado isolacionista, porque é esgotante para os americanos. E depois desistem e voltam ao assunto e desistem outra vez.
E dizia que a política externa é uma política de continuidade baseada na realidade internacional. E não posso dizer que a campanha eleitoral americana me dê grande esperança de que tenham lido Kissinger.
"Trump tem um fraco conhecimento sobre política internacional, tem um fraco conhecimento sobre a Europa, tem um fraco conhecimento do que custa aos Estados Unidos construir parcerias e alianças duradouras"
Voltando à defesa e à divisão dos europeus: há quem defenda que a União Europeia devia ter um exército europeu. Concorda?
Nunca vai existir um exército europeu, entendido como uma organização única de tropas empenhadas numa causa europeia comum, vestida com fardas europeias, liderada por um comandante europeu. Isto não vai acontecer porque as estruturas nacionais na Europa são simplesmente demasiado fortes.
A forma mais eficaz de reunir os exércitos europeus é na NATO, onde existe uma estrutura de comando clara e comum sobre como vamos cooperar e um líder evidente a dizer faça-se.
E assistimos a uma mudança na maneira de pensar da União Europeia sobre este assunto. Ainda pode existir quem sonhe com um exército europeu, mas a realidade política é que a atualmente a UE acentua os meios para uma melhor cooperação, cooperação na indústria da defesa, na inovação da indústria da defesa, na tecnologia da indústria da defesa. E investe também na mobilidade militar.
A União Europeia envolveu-se mais nos detalhes básicos de produzir poder militar, mas a organização e o controlo político deste poder cabe às nações, e elas canalizam-no através da NATO. Ou seja, se os Estados Unidos deixassem a NATO, os europeus teriam de assumir o controlo da aliança, seria uma NATO europeizada, mas com uma estrutura de comando interna.
Antes da guerra na Ucrânia pouco se falava da NATO. O presidente francês, Emmanuel Macron, chegou a dizer que o cérebro da aliança estava morto...
Concordo que foi muito provocador fazer essa afirmação e penso que ele tinha razão, porque estava referir-se à incapacidade da aliança de lidar com o que estava a acontecer na Síria, aos motivos pelos quais a Turquia estava tão afastada da aliança e, também, num sentido mais alargado, à razão pela qual a aliança não estava a conseguir lidar com a Rússia, de uma forma ou de outra.
E tinha razão, foi um ponto baixo de coesão política na aliança. O que foi irónico no comentário é que o Macron fazia parte do cérebro, o que pressupõe que ele próprio estava morto, e não vi muitos comentários sobre isso da parte dele.
As pessoas olham para a NATO como a salvação em caso de crise, mas a diplomacia não tem sido capaz de evitar ou conter diversas guerras. A NATO está a cumprir o seu papel?
O objetivo principal da NATO é evitar a guerra. E prevenir a guerra sendo forte e estando preparada, ou seja, tendo forças que, de forma credível e inequívoca, defenderiam a Estónia ou Portugal ou a Turquia ou o Norte da Noruega se fossem atacados. E esta capacidade de defesa é o que mantém a Europa em paz, o que impede que estranhos arrisquem e sejam tentados a fazer alguma coisa. Portanto, este é um pilar da aliança, temos de estar prontos, porque se estivermos prontos, ninguém de fora vai tentar meter-se connosco.
O outro pilar da aliança é política. O que significa que mantemos canais de comunicação abertos com quem está de fora, queremos fazer parcerias com eles, queremos dialogar com eles, queremos estabelecer relações de cooperação, porque isso também evitará a guerra.
Mas temos de fazer as duas coisas, temos de estar preparados militarmente e temos de conversar. E esta é a melhor forma de manter a Europa em paz.
"A Ucrânia expôs profundas divergências de opinião dentro da Europa"
Ao longo deste anos, apenas uma vez foi ativado o Artigo 5.º da NATO (um ataque contra um é um ataque contra todos), aconteceu quando os Estados Unidos foram atacados no 11 de Setembro. Mas já existiram outras situações...
A NATO ativou o Artigo 5.º em Setembro de 2001, num ato de solidariedade com os Estados Unidos, para dizer que estamos juntos nisto. Mas há um ponto importante, sempre que um país da NATO é atacado a partir do exterior, o artigo 5.º da NATO é automaticamente ativado, não é preciso que o Conselho do Atlântico Norte tome a decisão. Apesar disso, no 11 de Setembro o Conselho tomou essa decisão por considerar que este era um sinal político muito forte. E tinha razão. Mas foi a primeira vez que um país da NATO foi atacado desde 1949.
É por isso que a Ucrânia quer entrar para a NATO. É sensato?
Essa é seguramente a posição da Ucrânia, se o país entrar na NATO, a Rússia será dissuadida de atacar a Ucrânia, não ousará continuar a atacar a Ucrânia.
A alternativa a trazer a Ucrânia para a NATO é dizer que ajudaremos a Ucrânia a obter armas ou a desenvolver as suas próprias capacidades para se defender. E é aqui que nos encontramos atualmente. Havia outra alternativa, que era deixar que a Ucrânia perdesse a guerra, deixar a Rússia ganhar e, então, teríamos paz. Muitas pessoas acreditam que a melhor solução é, não agora, mas daqui a alguns anos, deixar a Ucrânia entrar para a NATO e então a Rússia não se atreverá a atacar outra vez.
"O Partido Republicano pode passar de internacionalista a isolacionista e isso seria problemático também para a NATO"
Se for necessário atacar outra vez, porque ainda não sabemos qual será o desfecho desta guerra.
Bem, a NATO está a empurrar o problema com a barriga, não tem a certeza sobre o que quer fazer. Por isso fizeram uma comunicação muito enviesada no Summit deste Verão, a dizer que "quando os aliados concordarem e as condições estiverem reunidas" a Ucrânia será membro da NATO. Mas isso pode querer dizer qualquer coisa.
Ou seja, os países da NATO não estão de acordo. E não querem deixar a Ucrânia entrar enquanto a guerra estiver a decorrer, não querem provocar uma guerra ainda maior. Mas também não sabem o que vai acontecer entre a Rússia e a Ucrânia se a guerra acabar. Simplesmente não estão de acordo sobre deixar ou não a Ucrânia entrar na NATO.
O presidente Putin acredita que pode desfazer a NATO. Pode?
Bem, pode seguramente contribuir para isso, mas não acho que possa fazê-lo sozinho. Se os líderes ocidentais, os líderes da NATO, conseguirem organizar-se, Putin não conseguirá quebrar a NATO. Mas aqui voltamos a Trump, voltamos à saída do Reino Unido da União Europeia, que custou a deterioração das relações com a França, e voltamos ao facto de a Alemanha estar a ter muitas dificuldades em assumir um papel de liderança na defesa na Europa. Por isso, há muitas razões pelas quais a aliança está a dar a Putin oportunidades para causar mais danos. Não estamos politicamente nos melhores Estados da NATO.
O que deviam fazer os líderes ocidentais, os líderes europeus, qual devia ser a sua prioridade? E percebem a importância da NATO ou estão demasiado ocupados com os seus egos?
Bem, deviam saber ler os sinais, ver que isto é sério. E se os Estados Unidos deixarem a Ucrânia à sua sorte, isso poderá fragmentar a Europa de forma crítica. A União Europeia poderia deixar de funcionar como funciona hoje, a NATO poderia fragmentar-se e as nossas vidas mudariam.
Por isso, a Europa deve certificar-se de que é capaz de se defender a si própria - não se trata só de dinheiro, trata-se de organização -, deve encontrar um equilíbrio entre os aliados de leste, que têm uma opinião muito forte sobre a Rússia, e os aliados do , que temem pela instabilidade no Sul. Tem de lidar com este equilíbrio político e acertá-lo, ambos os lados terão de dar ao outro alguma coisa em troca. Portanto, tem de haver negociação política e construção militar.
"Se os Estados Unidos deixassem a NATO, os europeus teriam de assumir o controlo da aliança"
Nunca houve uma cimeira entre a NATO e a União Europeia. Faz sentido, é relevante?
Penso que seria muito difícil, tendo em conta a política turca e tudo o que tem a ver com esta matéria, pelo que não esperaria muito por isso. Mas acho que seria relevante o diálogo entre os Estados Unidos e a União Europeia. A cooperação entre os Estados Unidos e a União Europeia em matéria de defesa ou investimento direto da China impulsionaria o debate sobre a indústria da defesa e também sobre uma cooperação eficaz em benefício da NATO.
Penso que eles sabem isso e já tentaram. Já vimos a administração Biden tentar aprofundar esse diálogo, mas também vimos a administração Biden reagir à sua base interna sobre a necessidade de criar emprego industrial nos EUA, de combater a China e com a Lei de Redução da Inflação, como foi chamada, ele atraiu massivamente investimentos para os Estados Unidos em detrimento da Europa.
Isso leva-nos à pergunta: o que significa ser um bom aliado?
Essa é a pergunta que até Biden faz e questiona todos nós. Parece-me que estamos a entrar numa era de competição industrial que será difícil, será dura. Talvez haja uma guerra comercial transatlântica ou uma guerra industrial, uma guerra de investimento, e a Europa está condenada a perdê-la.
Ganhar significa que os aliados cooperam neste aspeto, que integram as suas opiniões sobre o que significa proteger as suas tecnologias críticas ou a suas infra-estruturas críticas ou as suas linhas de abastecimento críticas. Têm de se coordenar nisto, caso contrário estão a deixar a China dividi-los.
"Vai haver uma guerra comercial transatlântica e a Europa está condenada a perdê-la"
Antes de terminar, queria perguntar-lhe se esta é a altura para a NATO discutir, por exemplo, a forma como acontecem os processos de adesão. É uma aliança moderna?
Penso que a NATO está bastante bem adaptada aos nossos dias, no sentido em que continua a ser uma aliança Leste-Oeste, liga o Ocidente, os EUA e o Canadá, à Europa para a proteger contra a Rússia. Continua a estar voltada para isso, a ser relevante por isso. Onde a NATO não está não Ainda está virado para isso. No que a NATO está menos preparada é na relação Norte-Sul, seja em relação à imigração do Sul, à instabilidade do Sul ou aos chineses, um pouco do Sul ou de Leste. E é aqui que a NATO precisa de desenvolver as suas políticas, ainda está vulnerável nesta dimensão. E esta é, aliás, a dimensão que Trump e outros populistas estão a chamar à pedra.
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