A conversa foi decorrendo sensivelmente ao mesmo tempo que o juiz Ivo Rosa ia lendo a decisão instrutória da Operação Marquês, um processo que ganhou dimensão mediática por envolver o ex-primeiro-ministro José Sócrates (o preso 44), detido no aeroporto de Lisboa à chegada de Paris no dia 21 de novembro de 2014.

Passaram mais de seis anos e hoje ficou decidido por que crimes será julgado, ele e os restantes arguidos (inicialmente mais 27, 19 pessoas e nove empresas).

À medida que a conversa foi decorrendo, os crimes de que José Sócrates era acusado foram caindo - será acusado de seis dos 31 inicialmente previstos. O Ministério Público poderá recorrer (e já disse que o faria) para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas isso levará mais uns bons meses, talvez dois anos. Já há quem aponte o ano 2036, "com sorte", para uma decisão definitiva dos tribunais, ou seja, para a conclusão do processo.

Nuno Garoupa é professor de Direito na George Mason University, na Virgínia. Nos Estados Unidos foi também professor nas escolas de Direito do Illinois e do Texas A&M e investigador convidado nas escolas de Direito de Stanford, Harvard e Berkeley. A sua área de investigação é Direito e Economia e Direito Comparado. Nos últimos vinte anos a sua investigação tem incidido sobre instituições jurídicas e Direito e Economia.

Os seus livros mais recentes, "Portugal, Um Retrato" (com prefácio de António Barreto) e "Virar a Página" (com prefácio de Maria de Lurdes Rodrigues), incluem uma análise exaustiva da justiça, política e corrupção em Portugal. Foi nesses temas em geral e sobre a Operação Marquês em particular que falou ao SAPO24.

Começo por lhe pedir para traçar em poucas palavras um retrato da Justiça portuguesa.

A justiça penal portuguesa é ineficiente, ineficaz e desajustada da realidade do século XXI, incapaz de prevenir e reprimir os crimes de colarinho branco, inábil para reaver os ativos extraviados (os tais muitos mil milhões desaparecidos), mas de tal maneira complexa que ninguém sabe como reformar ou mudar seja o que for. 

Se ninguém sabe por onde começar uma reforma, qual a solução? Temos os exemplos de Espanha, dos Estados Unidos, não podemos segui-los?

Não tenho solução, sinceramente. Escolhemos sistematicamente o caminho errado desde os anos 90. O imbróglio não tem agora solução óbvia. Nem do ponto de vista jurídico, nem reduzindo a uma questão de personalidades, como faz alguma direita – como se a escolha da PGR [Procuradora-Geral da República] fosse o alfa e o ómega de uma organização de duas mil pessoas. Ou do presidente do Tribunal de Contas. Sem uma profunda mudança de cultura jurídica, não penso que seja possível mudar a atual degradação das instituições. A Itália e a Espanha foram fazendo reformas, nem sempre felizes, mas na direção certa. Portugal não.

"Os megaprocessos foram aclamados como a solução mítica para a incapacidade da justiça penal há cerca de dez ou 15 anos. Agora são os culpados de tudo"

Seis anos para decidir o que irá a julgamento. É muito tempo? O que falhou?

A operação não falhou. É o cumprimento da lei. A lei portuguesa - substantiva e processual - é que falhou aos portugueses. Este processo não é nenhuma exceção. Se fosse um processo residual, não haveria problema nenhum. Infelizmente, como sabemos, este processo faz parte de um conjunto de processos mediáticos que seguem todos o mesmo padrão – inquéritos prolongadíssimos, julgamentos lentos, centenas de recursos, arquivamentos e prescrições em muitos casos, condenações transitadas em julgado dez a quinze anos depois dos factos imputados. 

O Código de Processo Penal serve bem a justiça?

Penso que a questão não é tanto o CPP, mas a cultura formalista, burocrática e funcionalizada da justiça penal portuguesa. Geração após geração. E isso não se muda por decreto.

Há quem culpe o Ministério Público pelos megaprocessos. Os megaprocessos são um imbróglio?

Os megaprocessos foram aclamados como a solução mítica para a incapacidade da justiça penal há cerca de dez ou 15 anos. Agora são os culpados de tudo. Dito pelas mesmas pessoas. A experiência espanhola, italiana e francesa (sistemas penais que nos são próximos) mostra há mais de 20 anos que os megaprocessos são uma cultura organizacional errada porque dificultam a aplicação prática da justiça penal. Levamos duas décadas de atraso.

PS e PSD parecem estar finalmente de acordo para acabar com o Tribunal Central de Instrução Criminal e com os megaprocessos. Porquê só agora?

Mas não estavam de acordo há três meses. Aliás a própria estratégia nacional para a prevenção da corrupção pouco dizia disso, e está em discussão há já quase um ano. Nada sabemos sobre soluções alternativas para o Tribunal Central de Instrução Criminal. Até há três meses, PS e PSD recusavam uma Audiencia Nacional espanhola. Mudaram de ideia? Os megaprocessos são uma forma de cultura organizativa do Ministério Público. Vão mudar isso por decreto? Como? Temo que vamos ter mais uma reforma do CPP – talvez a quinta ou sexta desde o processo Casa Pia - em função de um caso concreto que, depois, não produz resultados relevantes. E cá estaremos em 2030.

"A responsabilidade cabe ao PS, PSD e CDS, que geriram a justiça penal com enorme inconsciência e incompetência nos últimos 40 anos"

Podia dar muitos exemplos, João Rendeiro foi condenado 15 anos depois (com factos que aconteceram há 20 anos), o Novo Banco é o que sabemos, os casos ligados ao futebol não têm fim. O que é que isto diz da nossa justiça?

Descrédito. Mas o poder político e as elites bem-pensantes acham que rematam esse assunto rotulando todos os que se preocupam com isso de populistas. Curiosamente, aliás, o próprio Chega pouco diz sobre estes assuntos, porque o imbróglio já é tal que não há soluções fáceis. Obviamente que a responsabilidade cabe ao PS, PSD e CDS, que geriram a justiça penal com enorme inconsciência e incompetência nos últimos 40 anos.

A justiça arquiva quase 90% dos crimes de colarinho branco. Porquê?

Porque é objetivamente incompetente. Ou porque abre inquéritos que não devia abrir, representando um enorme desperdício de recursos, ou porque é incapaz de obter provas para julgar e condenar os criminosos de colarinho branco. Note-se que a justiça penal é incompetente no seu todo, enquanto organização, não os procuradores ou os juízes individualmente. As leis são o que são, mas as estruturas organizativas e a cultura jurídica prevalecente são as grandes responsáveis. E não se mudam por decreto como anunciam o PS e o PSD periodicamente. 

Criminalização do enriquecimento ilícito. Sim ou não e porquê?

Tenho muitas dúvidas que seja possível reprimir a corrupção (a conversa da prevenção parece-me já vazia de consequências) sem criminalizar o enriquecimento ilícito. Mas tenho noção de que, no atual estado de degradação, não há soluções mágicas. Suspeito que pouco mudaria na prática dada a cultura hiper garantista (excesso de mecanismos de recursos) e a burocratização permanente da justiça penal.

"O combate à corrupção tem de ser feito no âmbito da Constituição e do Código de Processo Penal", diz Ivo Rosa. Isto não é quase uma declaração de impotência (ou de que muito da acusação cairá por terra)?

Penso que todos subscrevemos isso. Agora, ou Portugal é o único Estado de direito do mundo ou há uma interpretação curiosa do Estado de direito e da Constituição que impede uma justiça penal tão eficaz como no resto da Europa.

Por onde pode e deve começar o combate à corrupção?

Voltando ao passado e fazendo a reforma profunda que o PS e o PSD não quiseram fazer. Agora simplesmente não acho possível. Há um problema de cultura judiciária e funcionalizada que talvez possa ser superado daqui a uma ou duas gerações, se as faculdades de Direito fizerem uma revolução agora. Os juristas atuais são formalistas, burocratas e processualistas. Isso não se muda por decreto e o resto é demagogia.

O juiz Ivo Rosa diz que só foi possível avançar ao fim deste tempo devido à dedicação: prescindiram de fins de semana, feriados e tempo pessoal para se dedicarem ao processo. Quer comentar?

A fase de pronúncia foi transformada numa fase de pré-julgamento, como já disse o próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Não faz qualquer sentido. Mas não é a lei que obriga. E a prática e a cultura judiciária. Mais uma vez, não entendo como pretendem mudar isso por decreto.

"A lei portuguesa - substantiva e processual - é que falhou aos portugueses"

Dupond et Dupont, Ivo Rosa e Carlos Alexandre. Só temos estes juízes?

O PS e o PSD optaram pelo modelo Ticão em vez de outras alternativas (como a Audiencia Nacional espanhola, que referi). Foi uma opção aplaudida pelos especialistas (não todos, é verdade) e pelos comentadores. Agora, afinal, já é um desastre. Vamos ver o que se segue. Será certamente outra solução mágica.

Ivo Rosa vai mandar o Ministério Público investigar o sorteio que deu o processo ao juiz Carlos Alexandre. Faz sentido?

Se existem dúvidas, faz.

Houve transparência em todo este processo?

Houve transparência nos termos da lei. O resto é laxismo.

Há promiscuidade entre o governo e a justiça? Onde é que isso é visível?

A promiscuidade decorre da própria organização institucional. Desde logo as portas giratórias, que são agora abundantes. Nunca deviam ter sido autorizadas. Mas, uma vez autorizadas e generalizadas, não vejo muito bem como seja possível inverter isso. Mesmo que houvesse vontade política do PS e do PSD, que não há, levaria décadas. 

O PS ficou sempre conhecido como o partido dos jobs for the boys. Com razão?

Isso aplica-se ao PS, PSD e CDS. Boys e girls. Obviamente que se o PS governou 19 dos últimos 26 anos, naturalmente tem um exército muito maior de boys e girls para alimentar.

Esta semana o tribunal arquivou o caso Feliciano Barreiras Duarte (currículo falso). Que sinal dá aos portugueses?

O caso Feliciano Barreiras Duarte nunca deveria ter sido um inquérito do Ministério Público pela sua manifesta irrelevância. Mas como vinga o sacrossanto princípio da legalidade, e não o princípio da oportunidade, temos o desperdício de recursos que temos. O despacho de arquivamento é incompreensível para a opinião pública, uma vez que o arguido efetivamente nunca visitou Berkeley.

Os partidos deviam candidatar membros com processos às costas?

Enquanto vingar o princípio da legalidade não podemos excluir arguidos em fase de inquérito. Simplesmente não há mecanismos para prevenir inquéritos absurdos, potencialmente com o único objetivo de prejudicar politicamente os candidatos. Outra coisa é excluir pessoas em fase de pronúncia ou já em julgamento. Mas convenhamos que isso é uma ínfima minoria.

Faz sentido fazer um juízo ético sobre Sócrates, independentemente do julgamento nos tribunais?

Está feito. Faz sentido do ponto de vista político e social. Mas é também absolutamente natural – não podemos esperar dez anos.

Colocamos a legalidade à frente da ética? O que diz isso sobre os políticos que temos e sobre os eleitores que os escolhem?

Isso temos de perguntar aos eleitores, são eles os últimos responsáveis. Que eu saiba, PS e PSD continuam a ter 80% da Assembleia da República. Logo, a degradação das instituições não assusta grande parte dos eleitores. Há alguns indícios de problemas à vista, desde uma enorme abstenção até ao crescimento do Chega. Mas nada que leve PS e PSD no sentido de mudarem de opinião sobre a justiça penal para além da ambiguidade do momento. 

"Sócrates acabou politicamente. Nem o PS tem qualquer interesse estratégico nesse regresso"

Sócrates será acusado de seis em 31. Caíram 25. Como olha para este resultado?

É um resultado infeliz para a justiça portuguesa. Ou o Ministério Público realmente excedeu-se em fantasias o que é lamentável. Ou o juiz Ivo Rosa transformou a fase de pronúncia num pré-julgamento, o que é perigoso. Não há forma de sair bem do rácio seis em 31.

O Ministério Público já disse que recorreria. Faz sentido?

Isso é uma avaliação que o Ministério Público vai fazer. Presumo que, dentro do formalismo e burocratização processual que impera, provavelmente recorrerá. Eu sou adepto da doutrina de limitar do double jeopardy (Ministério Público não pode recorrer de decisões de arquivamento ou absolvição) em teoria. Mas no novelo processual penal português não sei o que é menos mau. Se impera o garantismo formalista, então limitar o double jeopardy não faz sentido.

Quanto tempo de Operação Marquês ainda teremos pela frente até começarem a ser proferidas sentenças?

Dependerá agora dos recursos. Fala-se em 2036. Tudo um absurdo.

Sócrates pode já começar a fazer companha para regressar à política?

Penso que Sócrates acabou politicamente. Nem o PS tem qualquer interesse estratégico nesse regresso.

O presidente do Supremo Tribunal, António Joaquim Piçarra, afirmou que a decisão terá repercussões na justiça e na política. Acredita que sim? Quais?

Penso que repercussões mínimas. Tal como o processo Casa Pia. Umas reformas legislativas mal pensadas e apenas para fingir que muda alguma coisa. Mas, do ponto de vista político, penso que ninguém muda de opinião depois da decisão do juiz Ivo Rosa. E o PS já perdeu os votos que tinha de perder. Isto é um assunto eleitoralmente amortizado.

Ivo Rosa foi dando diversas chazadas no Ministério Público, que não apresentou provas. Os magistrados responsáveis pela acusação, liderada pelo procurador Rosário Teixeira, não serão chamados à pedra, não terão de dar explicações a ninguém pelo seu trabalho, esta acusação não manchará os seus currículos?

Com sorte chegam ao topo da carreira. A avaliação dentro do Ministério Público é endogâmica, burocrática e completamente independente do desempenho. É a cultura da administração pública portuguesa.

Sócrates afirmou no final da leitura que quer "uma reparação". Ainda vamos ver o Estado português a pagar-lhe uma indemnização?

Sinceramente não sei. É possível. Mas ainda tem um julgamento pela frente e, obviamente, o recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa. Isto ainda vai levar mais uns anos. Uma coisa é ele querer, outra coisa é que ganhe.