Os protestos não eram de maio, ou sequer de 68, remontavam ao início da década, acompanhando a reeleição do presidente Charles De Gaulle e a conquista de nova maioria, em 1965. Todavia, subiriam de tom nos dois anos seguintes, 1966 e 1967, na sequência da revisão da lei da Segurança Social, que aumentava os descontos e o poder do Governo na negociação salarial — isto quando o salário mínimo por hora era de 2,2 francos franceses (0,34 euros, pela taxa de conversão de 1998), o que não dava para pagar cinco baguetes.
Ao mesmo tempo, havia entrado em vigor a reforma das universidades, lançada pelo ministro da Educação Christian Fouchet, que sacrificou equivalências, aulas práticas e especialização, improvisou professores e instalações de forma a acolher os primeiros “filhos do ‘baby boom’”, que mais do que duplicaram os alunos do ensino superior entre 1962 e 1968.
504 mil alunos do ensino superior, num universo de quase 700 mil estudantes. 7,4 milhões de operários, numa população ativa de 19 milhões, sendo que quase metade chegou à idade adulta após a II Guerra Mundial — 30% tinham menos de 30 anos e 50% menos de 40.
O desemprego afetava mais de meio milhão de pessoas (584,6 mil) e perto de 25% da população ativa não tinha contrato de trabalho, nem salário fixo. Os vencimentos, estimados à hora, tinham por referência os 2,2 francos do salário mínimo, isto quando uma baguete custava 45 cêntimos de franco (cerca de 0,7 cêntimos de euro), um litro de leite, 77 cêntimos, um jornal diário, 35 cêntimos, o litro de gasolina custava 1,04 francos.
Nesta França de 68, os censos de março de 1968, feitos pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos, identificaram 15,820 milhões de lares, cerca de 31% em sobrelotação. Nove por cento das habitações não tinha água corrente nem ligação à rede de esgotos; quase metade (48%) tinha apenas uma casa de banho coletiva (por imóvel ou por piso); 50% não possuía água quente, nem banheira ou ‘douche’ (53%). Apenas 15 por cento das habitações tinham telefone e só 35% beneficiavam de aquecimento. A II Guerra Mundial tinha acabado há 23 anos e a geração que lhe seguiu “aspirava a uma outra vida”, como escreveram Edgar Morin, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis em “La bréche” (“A Fenda”), ainda em 1968, numa primeira análise dos acontecimentos.
Assim, entre as principais reivindicações do operariado francês estava a celebração de contratos de trabalho, o aumento do ordenado mínimo e reconhecimento dos sindicatos nas empresas; enquanto os estudantes contestavam a reforma do chamado “Plano Fouchet” e reclamavam representatividade nas decisões das universidades.
Nanterre. Janeiro de 1968
E foi com um levantamento dos alunos da Universidade de Nanterre, perto de Paris, em janeiro de 68, que arrancou o movimento a que Maio deu nome.
A atual Universidade de Nanterre era então uma extensão da Faculdade de Letras da Sorbonne, o estabelecimento de ensino superior mais afastado e mais pobre da região de Paris. O corpo docente, porém, contava com professores como Emmanuel Lévinas, Paul Ricoeur, Jean Baudrillard, Henri Lefébvre, Michel Crozier, Alain Touraine ou o jovem Étienne Balibar. Nem todos apoiaram as manifestações.
Partilhada era a contestação à Guerra do Vietname, havia solidariedade para com as lutas pelos direitos cívicos da população negra norte-americana (Martin Luther King Jr. é assassinado a 4 de abril de 1968 em Memphis, Tennessee), acolhiam-se os ideais feministas, criticava-se a sociedade de consumo, irmanava-se com os protestos de estudantes nos Estados Unidos, no Brasil, no México, na Alemanha, e contestavam-se as ditaduras na América Latina e no Sul da Europa, em Portugal, Espanha e na 'Grécia dos coronéis'.
No dia 8 de janeiro de 1968, durante a inauguração de uma piscina em Nanterre, o ministro da Juventude e Desportos, François Missoffe, foi vaiado pelos estudantes, depois de ter respondido à provocação de um aluno – Daniel Cohn-Bendit, um dos protagonistas do movimento de Maio.
A reação conjunta da academia foi o primeiro sinal dos levantamentos que viriam a ter lugar meses depois. Outro aconteceria um mês depois, quando o Governo não renovou o mandato do então diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, fundador da instituição e um dos pioneiros da preservação da memória do cinema. Aos cineastas da ‘nouvelle vague’, como François Truffaut e Jean-Luc Godard, que se solidarizaram com Langlois, juntaram-se os estudantes de Paris, em manifestações e na ocupação da Cinemateca.
No dia 22 de março, a ocupação do edifício da direção de Nanterre teve origem na detenção de quatro alunos durante um protesto contra a guerra do Vietname. A faculdade foi fechada e os acontecimentos estão na base da criação do Movimento 22 de Março, liderado por Cohn-Bendit.
A contestação alastrou de imediato à Sorbonne e a alguns liceus de Paris, que exigiram a reabertura da Faculdade de Letras de Nanterre, que viria a ser ocupada pela polícia, no início de maio.
O movimento deslocou-se então para o centro urbano de Paris, primeiro para a Sorbonne, que também viria a ser encerrada, depois para o Quartier Latin e para as ruas da capital francesa.
Os protestos tinham entretanto reforçado a sua dimensão política, deixando de visar apenas o sistema de ensino superior, para se alargarem à presidência do general Charles De Gaulle — o herói da resistência francesa na II Guerra Mundial —, e ao seu Governo, no poder desde 1958.
A partir de então foi a escalada. Levantaram-se barricadas no Quartier Latin — que o ministro da Cultura, Andre Malraux, considerou uma “ação de teatro” — e aos protestos dos estudantes depressa se juntaram os dos operários, que arrastaram as centrais sindicais.
A 10 de maio, aconteceram os confrontos mais violentos entre estudantes e polícia, desde o início da crise, depois de uma audição do ministro da Educação, Alain Peyrefitte, no parlamento.
Em Cannes, abria o festival de cinema, que acabaria suspenso ao fim de poucos dias.
Dez milhões. Uma greve
A greve de 13 de maio, convocada dois dias antes pela Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e pela Confederação Democrática Francesa do Trabalho (CDFT) haveria de parar transportes, correios, comunicações, fechar repartições públicas, estabelecimentos comerciais, escritórios, casas de espetáculos, museus. A paralisação, que se estendeu por vários dias, teve um dos seus pontos altos a 22 de maio — dez milhões de pessoas responderam ao chamado.
A mobilização durou entre 12 e 28 dias e a atividade económica registou quebras de 22,8% em maio e 11% em junho, de acordo com o “Estudo estatístico das greves de maio-junho de 1968”, publicado em 1970 pela Revista Francesa de Ciência Política. A adesão à greve foi maior nas indústrias automóvel e têxtil (acima dos 94%), no setor energético (91%) e nos transportes (88%). Pelo contrário, menor adesão se registou na agricultura (36%), indústrias de calçado e de materiais de construção (44%).
Dois meses antes da greve geral, a 11 de março, o patronato francês propusera um aumento do salário mínimo 2,2 para 2,5 francos franceses por hora (de 0,34 para 0,38 euros, pela taxa de conversão de 1998). À proposta, os jovens operários responderam com o bloqueio da linha de caminho de ferro Paris-Quimper, na costa oeste do país.
Findas as negociações, no final de maio, o valor de referência do salário mínimo acabaria por se fixar nos três francos por hora (0,46 euros), um aumento de 35%, além de uma subida de dez por cento nos salários reais, em relação à inflação. A par, reconheceram-se também os direitos de representação sindical dos trabalhadores nas empresas. À data, o domingo era dia de descanso — o único dia de descanso — e o horário de trabalho estendia-se por 45 horas semanais.
Os chamados “Acordos de Grenelle” — assim denominados devido à localização do Ministério do Trabalho, na rua de Grenelle — foram alcançados a 27 de maio, depois de uma reta final de 48 horas, que envolveu centrais sindicais e o secretário de Estado dos Assuntos Sociais, Jacques Chirac. No entanto, nunca foram assinados por todas as partes.
E as greve estenderam-se pelo mês de junho, mesmo depois de dissolvida a Assembleia Nacional, e convocadas as novas eleições.
Esse “êxtase da História”, como o filósofo Edgar Morin o classificou, acabou encoberto por umas eleições gerais que davam continuidade aos dez anos de poder dos gaulistas.
No dia 30 de maio, uma manifestação de apoio a De Gaulle ocupou os Campos Elísios.
Em junho, com a primeira volta das eleições marcada para dia 23, os operários começaram a regressar às fábricas, a função pública aos seus postos e as escolas deram por findo o ano escolar.
O descontentamento das ruas não se refletiu nas urnas, e Charles De Gaulle saiu reforçado.
O movimento estudantil parecia dissolvido, e Cohn-Bendit, que tinha nacionalidade alemã, fora expulso do país.
Parceiros sociais foram, no entanto, obrigados a negociar contratos coletivos de trabalho, horários semanais e salário mínimo, enquanto o Ministério da Educação teve de rever currículos e avaliações, contra as perspetivas admitidas antes dos protestos. Os resultados, porém, nunca corresponderam à "imaginação ao poder", reivindicada pelos movimentos de maio.
"O Poder é detido não pela imaginação, mas por forças políticas organizadas", disse o ministro da Cultura de De Gaulle, Andre Malraux, meses mais tarde, numa entrevista à revista alemã Der Spiegel.
No último dia de junho, na segunda volta das eleições, os gaulistas obtiveram uma votação de 46%, que se traduziu em 354 lugares dos 487 da Assembleia Nacional – uma maioria de 75% no parlamento, a maior de sempre de De Gaulle -, a que se juntaram mais 42 assentos de outros movimentos de direita.
A esquerda francesa resumiu-se à eleição de 91 deputados, repartidos pelo Partido Comunista (34) e pela coligação socialista liderada por François Mitterrand (57).
O Maio de 68 foi “a revelação de contradições e de novos conflitos” de uma sociedade que se mantinha “arcaica”, incapaz “de pensar, organizar e promover mudanças” nas instituições, escreveu o sociólogo Alain Touraine, autor de “A sociedade pós-industrial”, que por esses dias foi professor em Nanterre, no ensaio “O movimento de Maio e o comunismo utópico” (1972).
68 hoje. O legado
Cinquenta anos depois do movimento de protestos e de greves que paralisaram a França em maio e junho de 1968, a historiadora francesa Ludivine Bantigny avisa que "68 não morreu".
1968 "não morreu porque há uma vontade de fazer viver o passado e de lembrar o que foi esta greve e os projetos que a acompanharam. Há uma memória que foi muito deformada. O que é interessante neste cinquentenário é que há uma verdadeira sede de saber mais sobre os projetos de 68 para melhorar a vida e as condições de trabalho", considera a historiadora, autora do livro "1968. De Grands Soirs en Petits Matins”.
Hoje, "o mundo dos empregados, operários, agricultores, artesãos e até estudantes do secundário quer recuperar a memória de 68" que lhes foi retirada pela "memória hegemónica dos media que destacaram personalidades como Daniel Cohn-Bendit".
"Não se trata de fetichizar 68 ou de fazer um modelo, mas creio que se vive algo próximo de 68, uma espécie de mistura entre diferentes movimentos", argumentou a professora de História Contemporânea na Universidade de Rouen, apontando várias greves em França.
Além dos ferroviários, estudantes universitários e funcionários públicos, foram registadas, recentemente, greves em "setores invisíveis", por exemplo, numa empresa de limpezas encarregue das gares parisienses e num hotel da região de Paris.
Ludivine Bantigny comparou as atuais paralisações "ao pico de greves que houve em 1967" e alertou que "68 não foi só a Renault e a Peugeot, foi um conjunto de muitas pequenas empresas que também entraram em greve".
"As condições objetivas e subjetivas estão reunidas porque as condições laborais degradaram-se”, considera. “Há uma competição generalizada, muita pressão, as pessoas estão fartas e há um desencanto com os políticos. Os ingredientes estão todos juntos", afirmou, quando questionada se pode haver um novo Maio de 68.
Para a historiadora, 68 foi um movimento mundial, de "aspiração à liberdade" e que, em França, se caracterizou pela greve geral e pelas ocupações de fábricas, escritórios, lojas, serviços públicos, estações de comboio, portos, liceus, universidades, museus, teatros e casas da cultura.
"É um movimento social extremamente subversivo porque é acompanhado por ocupações e por um debate sobre a utilização desses espaços, com uma grande aspiração para mudar de vida e para encontrar áreas de emancipação. Depois, há alianças únicas entre o mundo estudante, o mundo dos empregados e o mundo dos camponeses", descreveu.
Enquanto "movimento de aspiração à liberdade", naquela altura houve "a consciência que se podia questionar a sociedade sobre as desigualdades e sobre o modo de produção no qual se trabalhava demais".
"É isso que explica a rebelião e esta aspiração, digamos, revolucionária. É impressionante: todos falam em revolução. Todos têm a impressão de viver um momento quase revolucionário porque todos passam a poder tomar a palavra e há uma vontade crítica de falar das condições de vida, de trabalho e do mundo", continuou.
Quanto à dimensão internacional do movimento, além das mobilizações juvenis a nível mundial, há uma "bússola internacionalista e anticolonialista" contra as intervenções militares das grandes potências, contra a guerra americana no Vietname, e em França, notou-se "uma solidariedade entre franceses e estrangeiros".
"É uma solidariedade prática que passa, por exemplo, nos comités de greve, por panfletos redigidos em duas línguas, como francês e português, espanhol e francês, francês e árabe. Há cartazes em português, espanhol e árabe nos locais ocupados porque há muitos operários que vêm de diferentes países", conta, apontando que além das linhas geopolíticas, o movimento questionou "as fronteiras interiores”.
Na mesma linha, o historiador Gerard DeGroot considera que o legado do movimento de contestação de Maio de 1968 permanece vivo hoje, como prova o sentimento de confiança na "possibilidade de mudança" visível entre os estudantes norte-americanos que lutam pelo controlo da venda de armas.
"O que os estudantes do ensino secundário estão a fazer nos EUA lembra muito o sentimento de possibilidade que tivemos nos anos 1960 e é muito bom ver isso novamente porque acho que tivemos 50 anos de cinismo e pessimismo sobre a política", considera o académico da universidade escocesa de St. Andrews.
Autor de "The Sixties Unplugged", um livro publicado pelo historiador norte-americano em 2008 sobre os anos 1960 e onde retrata situações em diferentes partes do mundo, como no Congo, África do Sul, Cuba ou EUA, procurando analisar a década num tom mais sóbrio, defendendo a necessidade de olhar para aquela época sem nostalgia nem romantismo.
"Muitos dos meus amigos dos Estados Unidos, por exemplo, estão absolutamente convencidos de que foram pessoalmente responsáveis pelo fim da guerra do Vietname e pelas reformas dos direitos civis. Eu quis tentar romper com essa imagem glorificada e mostrar que a década de 1960 foi, em muitos aspectos, uma década parecida como as dos anos 1950 ou 1970, em que houve coisas positivas, mas também muitas guerras e violência", justificou.
Para além das manifestações estudantis, os anos 1960 são lembrados pelo ativismo pacifista, pela luta contra o racismo nos EUA e pelo espírito de amor livre materializado no festival de Woodstock, mas também pelas guerras no Vietname, no Médio Oriente e em África, ou pela repressão da Revolução Cultural na China.
No Reino Unido, a contestação estudantil sentiu-se em Londres ou em Newcastle, recorda DeGroot, mas a subversão juvenil foi visível sobretudo na criatividade que resultou na cultura popular das minissaias ou da música dos Beatles.
"O Reino Unido não tinha a guerra do Vietname, não tinha um problema racial grave e tinha um sistema social bastante saudável. Havia um nível elevado de emprego, por isso não tinham muito para reclamar. Mais do que uma revolução política, fizeram uma revolução cultural, que se expressou através da moda e da música", afirmou.
Os protestos dos estudantes britânicos foram, vinca o académico, "de certo modo, quase uma espécie de imitação por lá. Quase que pareciam estar a fazê-lo porque estavam a assistir aos que estavam a fazer os outros estudantes em outras partes do mundo".
Refletindo sobre o que resultou do espírito do maio de 1968, Degroot lamenta que se tenha instalado um certo cinismo relativamente à política e uma falta de confiança na possibilidade na mudança acionada pela própria sociedade.
"Seria bom reviver essa ideia de um movimento popular que era tão forte nos anos 60. Talvez seja o legado que podemos retirar: não necessariamente mudanças concretas, mas um espírito social e uma crença na possibilidade".
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