Para lá do Facebook, Twitter e sites de notícias. Para lá de gatinhos, tutoriais de cozinha e vídeos de música, há uma Internet onde se discutem ideias. São espaços usados por pessoas de todo o mundo para debater posições, discutir tendências; em suma, digladiar argumentos que podem ir da política ao mais insólito dos assuntos.
Para isso, os utilizadores destas plataformas agregadoras de gente que gosta de discutir (por vezes com grande violência) usam linguagens específicas, sejam códigos escritos, imagens ou ícones. Surgem, então, os memes, que, como o fórum 4chan (uma destas plataformas) descreve, são “basicamente uma ideia que é facilmente transferível de uma mente para outra.”
Na maioria das vezes têm como base uma imagem, um desenho, que pode ser desde o início concebido com um determinado significado ou, por outro lado, pode partir de uma imagem já existente a que são atribuídos novos significados, interpretações próprias dessas culturas online. Não há uma fórmula para fazer memes, até porque, lê-se também no 4chan, “um meme é criado quando um grande número de utilizadores se identifica com uma imagem ou slogan em particular”. E acrescenta: “o seu (mau)uso vai causar a destruição do universo.”
Foi o que já aconteceu ao universo de “Boy’s Club” (Clube de Rapazes), uma série publicada pelo cartunista e autor de livros infantis Matt Furie na rede social MySpace, em 2005. Pepe the frog era suposto ser um dos quatro animais que partilham um quarto e levam uma vida sob o efeito de substâncias psicotrópicas. A narrativa desta banda desenhada anda em torno de uma “vida simples de snacks e refrigerantes”. Pepe vive “feliz e pedrado”, como o autor lhe chama, numa combinação de cultura psicadélica, deslumbramento pueril e rebeldia adolescente. A editora Fantagraphics descreve o livro como “um clássico para stoners [utilizadores de canabinóides]”.
A personagem tornou-se popular nos círculos de internautas a que apelava. A deixa “sabe bem, meu”, pô-la no centro de blogues, páginas e fóruns de partilhas de memes. “Utilizadores online começaram a cortar e colar a cara de olhos pesados de Pepe e a frase “sabe bem, meu” em fóruns da Internet como uma rápida descrição de como se estavam a sentir depois de um evento. ‘Acabei o meu exame!... (“sabe bem, meu”)’. Esse foi o início do meme, por volta de 2008”, escreve Matt na revista ‘Time’.
Em suma, a fama cresceu de tal modo que os utilizadores se apropriaram de Pepe, e as reinterpetações e novos usos sucederam-se. Celebridades como Katy Perry ou Nicki Minaj também o usaram, ainda antes da reapropriação da personagem por parte da extrema-direita.
Com a fama, Pepe tornou-se naquilo a que se chama meme. Era uma personagem com uma mensagem específica (embora com significados por vezes dissonantes entre comunidades online). E entrou assim para as listas de memes de plataformas como 4chan, 8chan, Reddit ou 9gag.
“A cara do sapo passou por milhares de encarnações online feitas por utilizadores, expressando raiva, presunção, violência, felicidade, fleuma e, a mais conhecida, tristeza. Para ziliões de pessoas, sobretudo crianças, adolescentes e universitários, significava muitas coisas, mas sobretudo era uma grande piada”, diz o autor. Passou por crises, passou a raridade. Passou por tudo. Mas é destas encarnações que nasce o spin-off de Pepe. Uma segunda vida.
O autor aceitou o ciclo de vida da sua obra como uma incontrolável realidade. Se por um lado os memes trazem ao trabalho de artistas uma visibilidade e eternidade impossíveis de atingir de qualquer outra forma, por outro o autor perde qualquer controlo sobre as personagens, seja sobre o que dizem, por quem são usadas, pelo que significam, para o que são usadas e o que passam a significar.
De repente, o “anfíbio pacífico que representa amor, aceitação e diversão (e ficar pedrado)”, como descreve a editora de Matt Furie, passou a ser visto como uma representação da direita alternativa (alt-right), um grupo nacionalista que se diz contra o politicamente correto e o feminismo e inclui supremacistas brancos, anti-semitas e neo-Nazis, que ganhou proeminência com a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos da América.
Na corrida para a Casa Branca, a sede da presidência dos Estados Unidos, no ano passado, Pepe foi atirado para o centro do debate. De um momento para o outro, a personagem passou a ser protagonista depois de um dos filhos de Donald Trump, que era então o candidato republicano a presidente dos Estados Unidos, partilhar na rede social de imagens Instagram uma montagem, com base num anúncio do filme de 2010 Os Mercenários, que incluía Pepe junto de uma série de “Deplorables”, isto é apoiantes de Donald Trump, que assumia o lugar de Sylvester Stallone no cartaz original.
Os Deplorables (deploráveis) foram assim chamados por Hillary Clinton, a candidata democrata à Casa Branca. Mas acabaram por usar o suposto insulto como uma forma de se identificarem. Para além de Pepe, de Trump e do filho, Trump Jr., estão também no “elenco” Milo Yiannopoulos, banido permanentemente do Twitter depois de ataques à atriz de Ghostbusters Leslie Jones, e também por comentários racistas.
A nova vida de Pepe pô-lo a defender ideias de tal ordem ofensivas que a organização norte-americana Liga Anti-Difamação (ADL, na sigla em inglês), que desde 1913 procura “parar a difamação do povo judeu e assegurar a justiça e o tratamento justos para todos”, e que também defende a luta contra a discriminação, classificou o meme como um símbolo de ódio. Em setembro, Hillary Clinton, candidata derrotada à presidência dos Estados Unidos, denunciou o meme como um símbolo racista.
“É uma loucura que o Pepe tenha sido carimbado como símbolo de ódio pelos políticos, grupos de ódio, instituições, os media e, por causa deles, pela tua mãe. Antes de ficar envolvido em política, o Pepe era uma piada interna e um símbolo para quem se sente triste, ou se sente bem e muitas coisas pelo meio. Eu percebo que esteja fora do meu controlo, mas no fim de contas, o Pepe é quem quer que vocês digam que ele é, e eu, como o criador, digo que o Pepe é amor”, dizia Matt Furie em outubro do ano passado.
Pela mesma altura, Furie, com a ajuda da ADL, ainda tentou reabilitar a personagem com a campanha - "Salvar Pepe" -, inundando a internet com "pacíficas e agradáveis" representações da personagem numa tentativa de acabar com a sua associação a supremacistas brancos e anti-semitas.
No ensaio de Matt Furie, publicado na secção Ideas (ideias) da ‘Time’, o autor tentou defender a sua criação. Tentou separá-la do ódio, do antissemitismo, do racismo e de todos os significados que a personagem ganhou. Mas a vida do anfíbio verde não mais se conseguiu libertar da conotação com a alt-right.
A própria marca de moda espanhola ZARA, do grupo Inditex, viu-se enredada numa chuva de críticas, no mês passado, depois de ter anunciado no seu site uma saia com desenhos de um sapo semelhante à personagem Pepe the frog. A empresa negou a ligação da saia à reinterpretação de Pepe.
Incapaz de reclamar o controlo sobre os significados dados a Pepe, Matt Furie decidiu pôr um ponto final à vida do batráquio consumidor de erva. O funeral foi publicado no passado dia 6 de maio pela Fantagraphics. Em seis quadros, a banda desenhada mostra o velório de Pepe. Ao lado do caixão, os outros três colegas de casa - Andy, Brett e Landwolf -, de olhos embargados. Como despedida, abrem um lata de cerveja e deitam-na para a cara de Pepe.
A notícia da morte de Pepe the frog alertou todos os media. Finalmente o símbolo da cultura online da direita está morto. Mas matar uma personagem não significa que a história esteja no fim, e foi isso que os utilizadores do 4chan, a principal morada de Pepe, passaram as últimas horas a dizer.
Fake news, notícias falsas, dizem os utilizadores sobre os títulos e artigos que dão conta da “morte” da personagem. Em threads (tópicos de conversa) daquele fórum têm estado a ser publicadas mensagens que dizem ser impossível matar o que “é imortal”, bem como novas montagens a dar conta da “ressurreição”, ao terceiro dia, do meme. “A BBC e a CNN são tão estúpidas e não percebem a internet. O PEPE NÃO ESTÁ MORTO.”, escreve um utilizador dos Países Baixos. Mais abaixo o mesmo utilizador acusa Matt Furie, o autor do Pepe original, de ter feito um desenho que “nem se parece com o Pepe”.
Um utilizador da Noruega acusa os media de estarem a tentar fazer um meme do “nosso meme”. “Mal sabem eles que os memes são sonhos. E todos os homens sonham, mas não da mesma forma. Aqueles que sonham de noite, nos intervalos empoeirados das suas mentes, acordam de dia para encontrar que foi vaidade: mas os que sonham de dia são homens perigosos, pois podem agir pelos seus sonhos de olhos abertos, para torná-los possíveis.” Outro, do Reino Unido, refere Richard Dawkins, o autor da expressão meme, para dizer que “tecnicamente não se pode matar um meme. O termo [...] significa um traço ou legado que não existe biologicamente. É literalmente impossível de matar, e existe para lá das gerações.”
Esta ironia, esta ciência dos memes é muito daquilo que caracteriza a vida de Pepe como mascote da alt-right.
Matt Furie: M-Mas… Eu matei-te! Pepe: Quem raios és tu?
O Pepe de Matt morreu. Mas esse talvez já tenha morrido há muito; é que quando o meme nasce, deixa a fonte de dele ser dona. E se o Pepe era amor, tolerância e erva, o meme desse mesmo Pepe é uma outra ideia. Ou muitas outras ideias. E as ideias não dão para matar.
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