"Skeletons in the closet". A expressão, de origem anglosaxónica, popularizou-se e correu mundo à boleia da hegemonia do inglês, sendo traduzida para as mais diversas línguas. É por isso que entre nós já se tornou comum dizer que alguém tem "esqueletos no armário". O que é que isso significa? Que se tem segredos, traumas, factos inconvenientes de revelar e que é preferível ocultar como quem esconde um cadáver na despensa.
Não há família em Portugal que não tenha os ditos "esqueletos"; afinal de contas, nenhum de nós é santo e todos somos pecadores. Mas se muitas dessas feridas são do domínio exclusivamente pessoal e intransmissível, há muitas ligadas à história do país. Da Guerra Colonial ao movimento dos retornados para a metrópole, da violência do PREC à queda de daqueles que viviam à custa do Estado Novo, foram muitas as famílias que carregam no seu âmago chagas facilmente reconhecíveis. A que ocupa a trama de "Teoria das Catástrofes Elementares", é uma delas.
Este romance tem como protagonista uma mulher — de 40 anos e nome só no fim revelado — integrante de uma família que teve de se habituar à ideia de viver com a humildade que só via nos outros. A grande matriarca da família, a avó, teve de regressar para Portugal após o 25 de Abril de 1974, deixando para trás Moçambique e inaugurando um novo capítulo na sua história
"Esta é uma família desiludida com aquilo que a vida trouxe. O 25 de Abril trouxe muita liberdade, abriu muitas portas — esta mãe e esta filha, que são personagens importantes na história, gozam necessariamente de liberdades que jamais gozariam se não se tivesse dado a revolução —, mas, ao mesmo tempo, esta é uma mãe muito desiludida com as oportunidades que agora não tem porque já não beneficia de um sistema opressor e opressivo. Então, em três gerações, vemos esses pequenos cataclismos", conta Rita Canas Mendes ao SAPO24, no âmbito do ciclo "O 25 de Abril (também) foi uma ficção".
Esses "pequenos cataclismos" são as catástrofes que titulam o romance de estreia da escritora e tradutora, que já tinha enveredado pela não ficção e pela literatura infantil antes de dar este passo. Ao longo de 33 capítulos, forma-se um puzzle que é um retrato não só desta família, mas de uma classe média que persiste em Portugal — sem os meios financeiros de outrora, mas mantendo a influência. "Esta família joga muito com isso, com o capital social que ainda lhe resta, a cultura que teve, o quão bem relacionada ainda consegue ser", afirma a autora.
A forma como resiste às adversidades e se agarra ao apelido que vai perdendo o lustre doutros tempos funciona quase como uma metáfora à forma como Portugal ainda se relaciona com o seu passado. "Eu acho que é também por isso que é um tema ainda tão tabu na sociedade. Ninguém gosta de falar das suas misérias, ninguém gosta de falar do lado do perdedor. Só se cantam as conquistas, por poucas que elas tenham sido. E o mesmo se passa connosco como país, só falamos do aspecto grandioso, das descobertas e da coragem dos navegadores, calando completamente o lado da escravização e de outros problemas que se mantiveram até há muito pouco tempo", alerta.
Esta família, de resto, não é contra o 25 de Abril — mas também não é a favor. Simboliza uma indiferença com a data e as suas conquistas sintomáticas de um período que chegou ao fim. Hoje, Rita Canas Mendes — que chega às quatro décadas de vida no mesmo ano em que o 25 de Abril chega ás cinco — considera que Revolução é olhada com outra urgência: quer por aqueles que querem combater o legado abrilista, quer os que despertaram para a sua vitalidade, 50 anos depois.
"O passado não passou; ele está sempre presente, está sempre dentro de nós, os ecos estão sempre a reverberar, vindos lá de trás"
No cerne desta história temos uma mulher a contas com as diferentes “catástrofes” pelas quais ela e a sua família passaram. O que te interessava explorar com este romance?
Vários temas, sobretudo os ligados à identidade pessoal e familiar — que depois, inevitavelmente, se vão entretecer com a identidade nacional. Quando se começa a puxar o novelo de um, vai-se necessariamente chegar à outra camada. É o retrato de uma mulher com cerca de 40 anos e que está a olhar para a sua infância, para a sua adolescência, para os seus traumas, para os seus pais. E, ao mesmo tempo que tenta dar sentido a várias coisas que lhe aconteceram, está também sempre a tropeçar no fio da história do país: do passado colonial e de uma série de circunstâncias sociais que têm a ver com classe, com a identidade de género, com questões raciais. O pessoal é universal, e começando a fazer essa exploração pessoal — o livro é narrado na primeira pessoa —, começam a surgir os outros temas. Foi algo natural e muito bem-vindo, que nunca quis cortar. Pelo contrário, quis sempre alimentar e estabelecer essas ligações — este é um livro sobre ligações familiares, afetivas, políticas.
Essa questão das ligações também parece estar relacionada um pouco com a própria estrutura do livro. Assemelha-se ao nosso monólogo interno, de quando vemos algo — seja na televisão, seja alguma coisa que nos acontece — e vamos buscar um episódio familiar que, de certa forma, esteja relacionado com isso. Serve para fazer uma exploração sobre a nossa mentalidade a partir de pequenos episódios?
Sim. Há duas ideias que estão no livro e em que acredito. Uma é que o passado não passou; ele está sempre presente, está sempre dentro de nós, os ecos estão sempre a reverberar, vindos lá de trás. A outra ideia é de que ninguém se lembra do seu passado de forma linear — todos fazemo-lo em episódios, em vinhetas, por associações, às vezes distorcemo-lo muito. Este é um livro também sobre a força da memória e como ela pode ser, às vezes, tão enganosa. Puxa-nos o tapete debaixo dos pés. O romance está dividido em 33 capítulos relativamente curtos, que se articulam entre si e que, à medida que vamos lendo, vai emergindo o retrato desta narradora e desta família, mas sempre neste modelo de pequena vinheta, de pequena "catástrofe" — porque quando olhamos para trás, nunca conseguimos ver o filme todo. Só vemos partes da história.
Ao mesmo tempo, a História, como é tingida pela memória, nunca está completamente certa nem é totalmente fiável. A narradora inicia um dos capítulos a dizer "o meu avô morreu disto, o pai da minha mãe morreu daquilo e o marido da minha avó morreu certamente de uma coisa diferente". Tem que ver com isto, que o passado não está quieto lá atrás, está sempre em movimento e vai significando coisas diferentes para gerações diferentes. Sempre que analisamos o presente, fazemo-lo com os óculos dessa bagagem toda e o livro pretende pôr isso em evidência — não através de uma "tese", mas de uma maneira solta e bem-humorada, apesar algumas das "catástrofes" serem até bastante duras. A ideia é ir lembrando sempre isso com humor, de que a história não é passado e nunca está bem contada, há sempre mais qualquer coisa para descobrir nela.
Esse exemplo do avô praticamente estabelece essa premissa do romance. O leitor encara estes 33 capítulos e vai dar sentido àquela história para perceber todo o contexto, um pouco como o historiador que pega em factos desconexos e tenta fazer-lhes ligações, dar razão ao porquê que as coisas funcionaram daquela maneira, não é?
Resumiste, basicamente, o que o livro faz! (risos) No meio do labirinto do caos, ir sempre à procura do fio, do sentido. Esse fio está sempre a fugir das mãos, mas é preciso agarrá-lo. A narradora, ao longo dos capítulos, está sempre a tentar tecer a manta de retalhos que é a realidade e a aperceber-se de que as pessoas à volta dela nem sempre vêem essa realidade da mesma forma — tanto porque o pai tem veios de megalomania, a irmã entra em rutura psicótica a dada altura, a avó só vê ou só fala do passado pela lente da grandeza, só quer ver as partes boas. Portanto, a realidade é sempre muito caleidoscópica, vai-se construindo com esses elementos todos que às vezes são muito díspares. E a narradora é a personagem que conta a história, mas ela é muda ao longo de quase todo o livro, limita-se a ouvir aquilo que os adultos e as pessoas à volta dela dizem. Só mesmo no final é que a ouvimos [em discurso direto] na primeira pessoa, quando ela tem uma conversa com o pai e depois outra com a mãe. Aliás, é só aí que descobrimos o nome dela.
Andamos para trás e para a frente, à procura de estabelecer um sentido. Eu sou formada em filosofia, já li mil ideias, mil propostas diferentes para o sentido da vida, e aí alinho com os existencialistas e com outros filósofos parecidos, que o sentido da vida não existe, temos de ser nós a fazê-lo. E esse é o exercício dela. Ninguém lhe vai dar a explicação: os médicos não dão a explicação para o que se passa com a irmã, a mãe nunca lhe explica a história completa, o pai desconversa. Então tem de ser ela, com muito sacrifício, e é isso que é o processo de amadurecimento, que no fundo acontece com todos nós. Vamos amadurecendo e vamos decifrando o mundo à nossa maneira, seguindo os nossos caminhos. Há quem possa virar para a extrema esquerda, há quem possa virar para a extrema direita, há quem possa manter-se no meio, mas cada um vai trilhando o seu caminho à medida que vai encontrando e fabricando o seu próprio sentido.
"Todos os portugueses, de uma forma ou de outra, tiveram um pé em África— se não na altura do período colonial, então já na guerra. Temos pais e avós em Portugal aos muitíssimos milhares que vieram de lá com grandes sequelas. Nem todos bebem, nem todos batem nas mulheres e nos filhos, cada um vai reagir à sua maneira, mas como sociedade fica-se profundamente marcado."
"Teoria das Catástrofes Elementares" toca numa fatia da população muito particular que raras vezes é analisada com este detalhe, que é a classe média caída em dificuldades no rescaldo do 25 de Abril. A frase que o sintetiza é quando a protagonista admite "não nos faltava nada de essencial, mas faltava-nos praticamente tudo o que queríamos". Que grupo social é este?
Este é um livro que nas entrelinhas — lá está, sem teses — fala muito sobre classes, sobre classe social, ansiedade de estatuto... Percebe-se claramente que naquela família houve um passado de grandeza e, de repente, uma perda de estatuto socioeconómico. E há umas tentativas de manter, pelo menos, uma certa imagem. A mãe inscreve as filhas num colégio de freiras, a família come esparguete à bolonhesa num subúrbio mas fá-lo com um faqueiro de prata que é herança desse passado. E há essa tensão de estatuto: a da avó que perdeu tudo em África, a da mãe que já cresceu sem acesso a essa era dourada, mas que ainda…
Traz os mesmos vícios?
Exatamente! Embora não possa custear aquele colégio privado para as suas filhas, vai fazer o esforço de pô-las lá e depois a coisa não corre bem. Há sempre uma tentativa daquela família dizer "nós somos mais do que remediados. Podemos ser remediados, mas já fomos donos e senhores". E há aí, inevitavelmente, uma raiva, um ressentimento, uma desilusão. Esta é uma família desiludida com aquilo que a vida trouxe. O 25 de Abril trouxe muita liberdade, abriu muitas portas — esta mãe e esta filha, que são personagens importantes na história, gozam necessariamente de liberdades que jamais gozariam se não se tivesse dado a revolução —, mas, ao mesmo tempo, esta é uma mãe muito desiludida com as oportunidades que agora não tem porque já não beneficia de um sistema opressor e opressivo. Então, em três gerações, vemos esses pequenos cataclismos. A avó perdeu tudo em África, vendeu o que tinha, foi dar uma volta ao mundo para gastar o dinheiro, porque na altura não podia trazê-lo para Portugal ou coisa assim do género.
Foi gastar "o que restava da sua pouca aristocracia”, tenho aqui anotado.
E o que é a aristocracia? O que é o sangue azul? O que é o anel de brasão no mindinho? São meros artifícios, coisas que, de um dia para o outro, desaparecem. É teatro. Então, esta é uma família que já não tem as posses materiais, mas tem as poses teatrais de um meio cultural em que cresceu, e há esse choque. Esta é uma coisa que aconteceu a muitas famílias, não só as que tiveram algum tipo de ligação mais direta a África. Acho que é uma coisa que aconteceu muito nos anos 90 e 2000 — antes do 25 de Abril éramos um país maioritariamente analfabeto, em que as mulheres tinham pouquíssimos direitos. Houve imensas conquistas desde então. Depois da entrada da União Europeia, houve ali um período de graça — com os fundos europeus, a "época das vacas gordas", etc... — mas isso acabou tudo muito depressa. E a geração nascida sobretudo nos anos 80 é depois confrontada com um choque enorme, porque foi-nos vendida a história de que cada geração seria mais próspera do que a anterior.
Por um lado, embora sejamos ainda uma sociedade muito desigual, as pessoas hoje consomem os mesmos produtos, vão aos mesmos supermercados, veem as mesmas novelas, os mesmos filmes, consomem da mesma cultura de massas. Já não há tantos marcadores de distinção como havia antigamente, quando vivíamos quase numa sociedade de castas. Por outro, as gerações mais novas, embora até façam um percurso académico que pode ser mais prolongado que o dos seus pais, não têm de todo o seu quinhão garantido. E são gerações que depois vão enfrentar crises económicas, em que a ideia da terra prometida, de terem mais meios socioeconómicos do que os seus pais, vai ser desiludida, porque a sociedade económica e politicamente não lhes vai dar isso. Mas estou a generalizar, claro.
"Há a sensação de que às vezes se vive em dois planos de realidade que nunca se tocam. Isso é cruel e tem inúmeras consequências — como é que se fazem políticas públicas para pessoas que não vemos, cuja existência não reconhecemos?"
Parece-me que, mais do que com outros grupos sociais, esta classe média descrita com esse sentimento de perda em relação ao passado é quase como um microcosmos perfeito para retratar o que é a própria mentalidade do país — de um passado glorioso e futuro incerto, de tentar agarrar-se às conquistas que se teve. Há aqui um paralelo que pode ser feito?
Absolutamente. Este livro tem alguns episódios irónicos que pretendem mostrar isso mesmo, como a mãe da protagonista, que contrata uma empregada doméstica que conduz um Mercedes, ao contrário dela, que vai de transportes públicos para o trabalho. E há, assim, essas assimetrias e uma certa inversão de papéis, em que quem mandava vê-se agora sujeito [a essa inversão]. E isto aconteceu muito rapidamente, no espaço de uma geração. Eu acho que é também por isso que é um tema ainda tão tabu na sociedade. Ninguém gosta de falar das suas misérias, ninguém gosta de falar do lado do perdedor. Só se cantam as conquistas, por poucas que elas tenham sido. E o mesmo se passa connosco como país, só falamos do aspecto grandioso, das descobertas e da coragem dos navegadores, calando completamente o lado da escravização e de outros problemas que se mantiveram até há muito pouco tempo. Portanto, há este lado de só falar do que é bonito e do que fica bem na fotografia. Só que varrer o lado B da realidade para debaixo do tapete tem enormes consequências. Ninguém fica incólume engolindo esses traumas. E, portanto, o ressentimento vem ao de cima de muitas formas — na forma de racismo, de violência doméstica, através de uma geração inteira ou várias gerações de rapazes que estiveram na guerra à força e que, quando voltam para Portugal, não são como dantes. Isso vai ter um impacto gigantesco na nossa sociedade e quase não se fala no assunto.
Desde o pai que combateu na Guerra Colonial até à família da mãe que viveu com privilégio no Portugal colonial, este parece ser um romance que, mesmo por vezes de forma indireta, é todo ele ensombrado pela experiência do ultramar português. Não podemos esquecer que um milhão de retornados foi para Portugal em 1975. Este acaba por ser o espelho de uma fatia significativa da população?
Enquanto escrevia esta história, de vez em quando tinha aquela dúvida, "será que esta é uma história passada num contexto tão específico que as pessoas depois não vão identificar-se de alguma forma?" E depois afastava esse fantasma rapidamente e percebia que estas experiências acompanharam, direta ou indiretamente, uma enormíssima parte da população. Todos os portugueses, de uma forma ou de outra, tiveram um pé em África— se não na altura do período colonial, então já na guerra. Temos pais e avós em Portugal aos muitíssimos milhares que vieram de lá com grandes sequelas. Nem todos bebem, nem todos batem nas mulheres e nos filhos, cada um vai reagir à sua maneira, mas como sociedade fica-se profundamente marcado. E isso vem ao de cima de muitas maneiras, às vezes de formas microscópicas, como a maneira como alguém nos trata no café.
Se calhar um dia ainda escrevo um conto sobre isto, mas há uns anos estava no dentista, a pagar a conta na receção, e estava a haver obras ali ao lado, e ouviu-se um grande estrondo. E um senhor ao meu lado, já com alguma idade, estremeceu. Ele ficou acanhado, mas teve uma reação em que todos nós reparámos, e ele sentiu necessidade de explicar que "foi a guerra". E isso está por todo lado. Como não falar disto? Este não é um livro sobre a guerra, é sobre identidade e família. Mas um livro assim, em Portugal, vai sempre tocar em África... aliás, a revolução do 25 de Abril nasce em África, portanto não estaríamos aqui agora a celebrar os seus 50 anos se não tivessem sido os movimentos de libertação e resistência a contribuírem para isso também. Está tudo muito ligado.
Alguma da nossa literatura que aborda a descolonização trata mais diretamente do trauma, do desenraizar, do "vir com uma mão à frente e outra atrás" para Portugal. "Teoria das Catástrofes Elementares" parece ser um seguimento lógico disso, são já os filhos dessas pessoas a pegar os cacos dos pais.
A imagem dos cacos a dada altura aparece mesmo num dos capítulos. O que é que sobrou de 500 anos de império? Uns cacarecos em que de vez em quando até nos cortamos. Mas sim, a família neste livro é muito diferente d'"O Retorno" de Dulce Maria Cardoso, por exemplo. É radicalmente diferente. Esta família opta por fazer o mesmo que tantas outras, que é não falar muito do assunto. Aquela avó, que viveu em África e foi, no fundo, uma retornada — embora nunca se referisse a si própria nesses termos —, falava dos tempos de África quase como umas férias douradas, um período dourado da sua vida. Não fala propriamente da amargura daquilo que perdeu, continua a manter o seu estatuto de grande senhora, magnânima com os serviçais, com a pessoa que a atende no banco, com a menina da lavandaria...
"O "saber falar" e o "saber estar" são coisas que fazem muita diferença numa entrevista de emprego, por exemplo, ou em certos círculos sociais. Pode-se perfeitamente conviver com as classes mais altas sem ter um tostão na carteira, apenas indo quase à boleia."
Ela mais tarde junta-se a um senhor e os dois têm formas de racismo muito vincadas, mas muito distintas na sua desumanização. Ele pauta-se pelo nojo, ela pela total indiferença.
O segundo marido dela, que é americano, tem aquele racismo muito antagónico para com a população negra, ao passo que esta mulher que viveu em África e que viu os negros como paisagem apenas, como figurantes na sua vida, vai tratá-los com a maior condescendência. São duas formas de violência muito fortes, muito extremas, uma é apenas mais disfarçada do que a outra. E a mesma coisa que vemos com os aspectos raciais também observamos com os de classe. É a maneira como ela trata as empregadas, diferente de como depois a filha vai tratar as suas empregadas — porque, aliás, foi criada por uma. Aquela avó trata as empregadas todas por Maria, porque não está para lhes decorar os nomes e porque, como ela diz, "hão de ser todas Marias de qualquer coisa". O que ela faz é horrível, mas aquilo tem um fundinho de verdade, porque em Portugal, as mulheres, até recentemente, eram todas "Maria de qualquer coisa" ou "qualquer coisa Maria". Mas é horrível apagar a identidade de alguém recusando-se usar o seu nome próprio. É das coisas mais ofensivas que se pode fazer — isso ou pronunciar mal o nome e estar-se nas tintas para o caso.
Uma coisa que ouvi — que podia ter entrado no livro e não entrou — deu-se num centro de saúde, em que uma rapariga negra foi chamada pela enfermeira e esta enganou-se, usou um nome completamente errado. A rapariga corrigiu o nome e a enfermeira fez algo semelhante à a avó da história, que é dizer o nome e duas ou três variantes do mesmo, encolher os ombros e afirmar "é indiferente". Até hoje tenho muita pena de não ter dito, mas na altura pensei em dizer "gostava que lhe chamassem Nerfanda em vez de Fernanda? Não era divertido, pois não, se alguém dissesse que é tudo igual?" É uma grande violência. Mas essa pequena passagem algo cómica da avó que trata toda as desempregadas por Maria põe também a nu uma certa realidade, que são aquelas massas de trabalhadoras que vinham da província, muitas vezes para Lisboa, uma massa que parecia, aos olhos das classes altas, completamente amorfa. Eu não fui muito por aí de todo, mas há um livro muito interessante chamado "No Tempo das Criadas" [de Inês Brasão], publicado pela Tinta da China, que mostra o que foram essas vivências e como eram todas muito apagadas. Elas dormiam no quarto da criada, eram todas Maria, e eram mais uma vez figurantes na vida daquelas pessoas.
Fazendo um certo paralelo — e mostrando como tanto mudou e tanto ficou na mesma desde então —, vemos hoje o mesmo com os chamados trabalhadores das periferias das grandes cidades, não é? Esses movimentos de pessoas que acordam às seis da manhã para trabalhar e que muitas vezes também lhes é negada a sua humanidade, servem para fazer o trabalho que mais ninguém quer.
Quem anda de transportes públicos, vê; quem só anda de carro, em geral, consegue ficar numa bolha. Vemos essas pessoas que muitas vezes saem às seis da manhã de um turno, depois de terem estado a madrugada inteira a lavar um edifício de escritórios, onde a seguir os advogados ou os publicitários ou os inspectores da Polícia Judiciária vão estar. Eu lembro-me disto porque vivia na Estefânia e todas as manhãs via uma mancha predominantemente negra de trabalhadoras a saírem da sede da PJ, que é um edifício todo moderno na Estefânia, e a irem apanhar o autocarro para a Margem Sul depois de terem estado noite fora a limpar o edifício. E nunca ninguém as viu, nunca ninguém saberá quem é o nome da pessoa que tirou o pó da secretária, que trocou o lixo dos caixotes, que limpou as janelas.
Há a sensação de que às vezes se vive em dois planos de realidade que nunca se tocam. Isso é cruel e tem inúmeras consequências — como é que se fazem políticas públicas para pessoas que não vemos, cuja existência não reconhecemos? Como é que se dá importância a uma boa rede de transportes públicos se nunca se anda nela? Como é que se criam boas condições na escola pública quando os filhos dos decisores andam em colégios privados? Então temos estas realidades paralelas e há sempre uma parte mais fraca que fica invisível e é prejudicada.
Não querendo insistir muito mais no tema, recordo uma ideia que mencionaste num podcast recentemente, de que a classe média acima mencionada, mesmo tendo perdido muitos dos seus privilégios, mantém acesso e estatuto, nomeadamente através do vocabulário ou do sotaque. Perdeu o poder de compra, mas manteve o capital simbólico, continua a ter uma palavra a dizer sobre o país. As castas não desapareceram completamente?
Não, e é muito difícil que algum dia venham a desaparecer. Por muito que brademos pela igualdade, a verdade é que o ser humano gosta de se distinguir, vai haver sempre quem queira sobrepor-se a outros. Estamos melhor hoje do que estávamos há 50 anos, sem dúvida, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Esta família joga muito com isso, com o capital social que ainda lhe resta, a cultura que teve, o quão bem relacionada ainda consegue ser. O "saber falar" e o "saber estar" são coisas que fazem muita diferença numa entrevista de emprego, por exemplo, ou em certos círculos sociais. Pode-se perfeitamente conviver com as classes mais altas sem ter um tostão na carteira, apenas indo quase à boleia. O que interessa é exibir um certo número de marcadores, tem muito mais que ver com a aparência, com a forma de falar, com o vocabulário que se usa ou com certas escolhas mais até do domínio estético do que propriamente do dinheiro. Porque a classe é muito mais do que aquilo que as pessoas têm no banco, é um conceito muito complexo e que se manifesta de formas muito variadas.
Então, esta narradora observadora está constantemente a ver os vários mundos que existem à volta dela. Ela visita a casa de uma pessoa pobre que era uma empregada, visita a casa de outras pessoas humildes que são amigos do pai dela e que vivem num subúrbio "ainda mais subúrbio" do que o dela, vai também vai à casa dos tios ricos. Vai fazendo essas pequenas visitas de estudo e vai movendo-se por estes vários sítios tentando encontrar uma coerência, tentando perceber onde é que ela encaixa no meio disto tudo. Porque alguém que tem muito dinheiro e não domina os códigos de classe vê-se muitas vezes numa alhada — como há uns anos se troçava muito do "novo rico" em Portugal, que tinha mau gosto, não sabia comer à mesa, até tinha dinheiro mas tinha uma casa muito foleira.
"[Este] é um livro que, sem falar da Revolução dos Cravos uma única vez, põe em relevo todas as conquistas que houve desde então e tudo aquilo que ainda ficou por fazer —maioritariamente por ter sido varrido para baixo do tapete."
Uma palavra sintomática dessa mentalidade é "possidónio", que é referido por pessoas da família do lado da mãe e que, lá está, é usada por pessoas que se calhar não têm um tostão e mantêm-se no alto de um pedestal.
Exatamente. "Eu não tenho dinheiro para mandar cantar um cego, mas conheço os ditames todos do gosto. Posso não andar com as roupas da última moda, mas ainda tenho o casaco de peles da minha avó". São coisas desse género e, portanto, são alhadas diferentes: a de quem tem muito dinheiro e não tem o capital social e a de quem tem capital social mas está na penúria. E depois temos esses pequenos grandes choques culturais que dão histórias interessantes, que levam mulheres e homens a casarem-se por interesse. Nada disto é novo, já acontecia muito antes, quando apareceram os portugueses que fizeram fortuna com o ouro do Brasil nos séculos XVII e XVIII e vieram para Portugal construir casas forradas a azulejos — o azulejo era uma coisa muito cara, note-se — casar-se com portuguesas aristocratas que queriam salvar a sua família da pobreza. Enfim, há muita literatura sobre isto e é um fenómeno muito interessante. No meu livro, falo desse mesmo fenómeno, mas passado nos anos 90 e 2000.
Outra das frases muito marcantes no romance é mencionada pela protagonista quanto aos problemas do pai: ”Não há volta a dar. Por mais que queiramos esquecer o passado, ele não se esquece de nós”. Apesar de "Teoria das Catástrofes Elementares" quase nunca falar ou apontar diretamente ao Estado Novo, o romance aborda várias questões de racismo, de sexismo, de violência que parecem perdurar desde então. É pertinente fazer essa leitura, de um contínuo desse período que ainda não conseguimos deixar para trás?
Sem dúvida. Este é um livro pós-25 de Abril que põe o dedo em várias feridas que ficaram por sarar devido a uma série de tabus. O processo de descolonização foi mal conduzido e isso levou a uma grande ferida social; os traumas de guerra nunca foram referidos e isso levou a outra ferida; a mulher viveu durante séculos numa posição inferior à do homem em termos de direitos e isso não desapareceu com o 25 de Abril — continua a ver-se como a posição dela é ainda mais vulnerável em vários aspectos. É um livro que, sem falar da Revolução dos Cravos uma única vez, põe em relevo todas as conquistas que houve desde então e tudo aquilo que ainda ficou por fazer —maioritariamente por ter sido varrido para baixo do tapete. Tal como em Espanha, na sequência da guerra civil, houve um pacto no país para não se falar de certos temas. Assim como houve um pacto para não haver uma caça aos pides e eles foram integrados na sociedade, ou como houve um pacto para integrar o mais rapidamente possível dos retornados. Eles sofreram muitíssimo em vários casos, mas a ideia foi de integrá-los e fingir que nada disto aconteceu, vamos tentar seguir em frente.
Há outra frase do livro que é qualquer coisa do género, "mais vale vivermos como se tudo aquilo que nos aconteceu realmente nos tivesse acontecido". Há imensos problemas, tanto psicológicos a nível individual como sociológicos em termos de nação, em recalcarmos as coisas, fingirmos que nada nos aconteceu. Porque tudo vem ao de cima de outras formas, algumas por vezes muito perigosas ou surpreendentes. Voltando ao 25 de Abril, o livro então mostra, por um lado, a enorme evolução que houve, porque vemos a protagonista no final do livro a participar em marchas, é feminista e tenta até recrutar a sua mãe para esse movimento, com um discurso que era impensável há 50 anos. Só que, ao mesmo tempo, a dada altura ela narra um episódio em que o padrasto diz uma coisa absolutamente reacionária, que acha indecente que as mulheres não saibam cozinhar, que é obrigação delas saberem. É algo que podíamos ter ouvido em 1973 mas está ali a ser dito em 2000 e tal. Portanto, muita coisa mudou, mas muita coisa ficou por mudar. O livro não pretende ser um diagnóstico, mas acaba por colocar essas coisas todas à mostra.
O diálogo com a mãe é muito elucidativo, porque mostra como ela é uma pessoa entre duas eras — ao mesmo tempo que tenta entender este lado emancipado e reivindicativo da mulher nos dias de hoje, acha que já ficou para trás, que já não consegue dar esse passo.
É mesmo um diálogo entre gerações. A mãe da protagonista tem um papel em que tem uma perna no passado e outra perna no presente, faz ali de ponte e sente-se essa tensão palpável em que quer acompanhar a filha na sua revolta e na sua reivindicação de direitos mas ao mesmo tempo também lhe diz coisas como "dantes isto era muito pior, tenta ser compreensiva". Enfim, se calhar está a tentar transmitir alguma da sua sabedoria à filha, de que as coisas não mudam do dia para a noite, diz-lhe "se calhar não te entregues demasiado às lutas e às raivas porque isso também não te vai ajudar muito".
E, ao mesmo tempo, começa a enumerar casos de violência sexual que lhe aconteceram de uma forma tão banal que mostra como os normalizou
É uma cena bastante agridoce, porque a filha está a pedir colo naquela conversa, está a dizer "mãe, eu passei por todas estas coisas difíceis" e quer compreensão. E a mãe, o que faz, ao invés de a consolar ou de lhe dar respostas, é dizer "olha para as minhas feridas, eu também as tenho". O que dizer a isso? Fica-se com a ideia de que essa mãe falar das feridas que tem já é um grande progresso, já não é varrer para debaixo do tapete. Por outro lado, a filha fica chocada com as coisas que a mãe lhe conta porque não sabia, é uma conversa com bastantes revelações, e fica sem saber que resposta dar. É verdade que as coisas antes conseguiam ser ainda piores e fica-se nesse impasse.
Como é que a protagonista falará com a geração seguinte vai ser muito interessante ver. Acho que isto não é um grande spoiler, posso dizer que a protagonista tem filhos — ficamos com a curiosidade de como é que falará com eles, porque as gerações mais jovens não o são durante muito tempo. A força do tempo vai empurrá-las para serem a geração-ponte entre gerações e dali a umas décadas para serem a geração mais velha de todas. O próprio lugar na pirâmide geracional vai mudando e vai transformando os discursos. Esse capítulo deu muito gozo fazer, porque foi mesmo pôr duas gerações em confronto direto — uma e outra querem dar colo perante aquelas feridas, mas uma acha que não há muito a fazer, que o mundo é mesmo assim, e a mais nova quer ir para a rua protestar.
Falam as duas português, mas a dada altura parece que estão a falar línguas diferentes.
Exatamente, já para não falar depois do diálogo que ela também tem com o pai e essa é uma conversa de surdos. A conversa com a mãe é intergeracional, mas ao menos estão a falar mais ou menos do mesmo tema. Foi muito divertido pô-la a falar em discurso direto com o pai porque a oralidade tem um imediatismo que dá outro colorido à cena, e aí já temos uma distância completa, ficamos com a sensação que não há entendimento possível entre as gerações. Essa conversa acaba com esse desacordo, com essa dificuldade em conciliar duas visões do mundo.
"Eu, que tenho acompanhado as lutas feministas dos últimos anos, estou francamente preocupada com os rapazes e a masculinidade na nossa sociedade. Acho que as mulheres já se libertaram, agora falta libertar os homens, que ainda estão muito agrilhoados. Embora estejam no lugar de privilégio que continuam a ocupar, ainda têm muito por onde se libertar."
Referes que vai ser muito interessante como a geração da protagonista vai falar sobre estes temas e sobre o país aos filhos, mas ousaria dizer que ainda é mais interessante perceber como é que os filhos vão receber isso. Porque o que temos visto — e até tem sido um dos temas que têm marcado estes 50 anos do 25 de Abril — é como, de certa maneira, parece haver um refluxo das conquistas de Abril, um rejeitar daquilo que significa. Tanto eleitoralmente, como tem sido demonstrado, como até mesmo na própria ideia da valorização do que a Revolução trouxe. Que contas é que ainda temos a ajustar?
Todas as revoluções não se fizeram; fazem-se, têm de continuar a fazer-se todos os dias. O 25 de Abril de 74 é uma data marcante, uma data de viragem, É, sim senhora, e continuará a ser, o dia da liberdade, mas é uma data que só tem sentido enquanto continuarmos a fazer por lembrá-la e vivê-la. Todos os movimentos de progresso enfrentam sempre resistência e vivemos numa constante dança de dois passos para a frente, um passo para trás, dois passos para a frente, dois passos para trás. Há ciclos, inclusivamente ciclos relacionados com a memória. Aquilo que estamos a assistir hoje, 50 anos depois do 25 de Abril, desta viragem, é uma normalização do discurso de extrema-direita, desta... [pausa]
De uma certa reapreciação crítica do Estado Novo? De que "não fez tudo mal"? Não deixa de ser verdade em certa medida, mas é algo usado quase sempre para branquear o passado.
Esse discurso existiu sempre. Desde que me lembro, sempre ouvi todos os escalões da sociedade dizerem que dantes alguma coisa era melhor. "Havia mais segurança", ou "havia mais respeito", ou "as ruas estavam mais limpas". Havia sempre qualquer coisa dantes que era de aproveitar, de que "o Salazar podia ser muita coisa, mas ao menos..." Essas ressalvas não são de agora, mas aquilo a que estamos a assistir é uma reação violentíssima à luta que houve por mais direitos sociais de mulheres e de pessoas das minorias, de homossexuais, transgénero, etc... E também a falar de questões de racismo, que nos últimos anos foram de grande reivindicação. Estamos a assistir agora a um movimento contrário, porque a onda avança e depois há uma força oposta que vai tentar contrariar esse progresso. Estamos a viver isso e também uma fase de esquecimento. Estes 50 anos do 25 de Abril significam que muitas das pessoas que fizeram pela Revolução, que lutaram por ela, que lhe deram corpo, são pessoas que começam a desaparecer, e a memória coletiva vai perdendo corpo. Começa a ser mais fácil distorcer os factos quando já não está cá tanta gente para repor a sua verdade.
Estamos a passar por uma altura em que só me ocorre um termo em inglês, "backlash", há muita teoria feminista escrita sobre isso. Houve conquistas em relação ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, começou-se a falar — como há muito tempo não se falava — de racismo em Portugal, porque houve crimes de ódio racista — estou a lembrar-me do Bruno Candé. E também porque houve polémicas relacionadas com estátuas, como aquela infame estátua do padre António Vieira que lá continua em Lisboa. Estes temas todos têm estado quentes e então estamos a assistir ao movimento oposto, mas as conquistas de Abril só manter-se-ão e ampliar-se-ão se todos juntos fizermos por isso. E os filhos da protagonista têm o seu futuro muito incerto. Será que vão alinhar com a mãe e ser progressistas? Porque, atenção, são filhos rapazes, como é que vão ver isso? Não sabemos. Eu, que tenho acompanhado as lutas feministas dos últimos anos, estou francamente preocupada com os rapazes e a masculinidade na nossa sociedade. Acho que as mulheres já se libertaram, agora falta libertar os homens, que ainda estão muito agrilhoados. Embora estejam no lugar de privilégio que continuam a ocupar, ainda têm muito por onde se libertar. E de que lado é que estes filhos rapazes ficarão? Fica a especulação para o leitor.
Lídia Jorge afirmou neste mesmo ciclo de conversas que, apesar de poder haver hoje uma maior rejeição ao 25 de Abril, a data também reveste-se de maior urgência. Especialmente em comparação aos anos 90 e 2000, quando a entrada na União Europeia e o "período das vacas gordas" que se seguiu fizeram-na cair em esquecimento. Como alguém nascido nos anos 80 e cresceu nesse período, como é que o recordas?
Falando de mim, Rita, enquanto filha e neta da revolução, cresci num mundo relativamente parecido com o da protagonista. Em minha casa não se falava do 25 de Abril, nem para dizer bem, nem para dizer mal. Portanto, não se ouvia canção de intervenção, não se falava dos nomes dos heróis de Abril, mas também não se dizia mal. Era uma coisa que tinha acontecido na nossa história e o rumo tinha sido aquele. Acho que a minha família, pessoalmente, percebeu os ganhos que houve com o 25 de Abril e portanto nunca se atreveram a criticá-lo. Era simplesmente um não-assunto, era esse esquecimento que tu dizes. Os anos 80 e 90 foram a época do "uau, apareceram telemóveis! Uau, passámos a ter Walkmans e depois Discmans! E agora todas lemos a Cosmopolitan!" Acho que houve um deslumbramento tal com essa abertura de possibilidades que a postura foi "vamos deixar isso para os políticos" — ao passo que, imediatamente após o 25 de Abril, as pessoas tiveram todas uma consciência política muito forte e foram às urnas, mesmo que fosse para votar ao calhas. Foram exercer o seu direito e estavam muito conscientes do seu papel de cidadão interventivo. Entretanto também vivemos muitos anos no Cavaquistão, isso ajudou a esquecer Abril.
Agora estamos no período da urgência, numa altura em que pensamos "o que é que vamos fazer como sociedade?" Vamos deixar o 25 de Abril para trás e virar mais à direita, deixar o Chega crescer na Assembleia da República, dar cada vez mais espaço à Iniciativa Liberal e a outros partidos de direita? Vamos acreditar naquilo que eles dizem? Ou vamos ler a história e fazer por manter cumprir as promessas de Abril? Sinto que há essa urgência nestes 50 anos do 25 de Abril — não é por acaso que o Passos Coelho prefacia aquele livro e dá a cara por ele agora, é uma figura salazarenta e as pessoas identificam-no com o velho regime. Estamos num momento de decisão, em que temos de escolher outra vez, 50 anos depois, que caminho tomar. Acompanho o que se está a passar com alguma preocupação. Não perco a esperança, mas olho com preocupação para o que está a acontecer e, tal como a Lídia Jorge, acho que estamos num momento de urgência e que está a ser sentida de parte a parte.
Há uma frase de que gosto muito, é sobre guerras, mas também se pode dizer absolutamente o mesmo em relação à Revolução. "Uma guerra luta-se duas vezes: a primeira no campo de batalha, a segunda no campo da memória" [Viet Thanh Nguyen]. A Revolução é exatamente a mesma coisa: ela fez-se em 25 de Abril de 74 em Lisboa, deu-se no Largo do Carmo e no campo da história cronológica, mas também aconteceu na memória coletiva. O que é que a memória coletiva vai fazer disso? Vamos descobrir, temos de arregaçar as mangas.
Uma frase para estes 50 anos do 25 de Abril?
Vou repetir o que já tinha dito, uma revolução não se fez, faz-se todos os dias. E 25 de Abril de 74 é o princípio de qualquer coisa; foi o fim de muitas coisas, mas é e será sempre um ponto de partida. É onde temos de voltar muitas vezes, mas é o ponto de partida, o princípio. A Revolução não serve de nada: ou é feita todos os dias, ou então não existe, no fundo, é apenas uma curiosidade histórica. Temos de vivê-la, de encarná-la.
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