Que a publicidade chega cada vez menos para pagar os custos dos media é um facto. Que para muitos a “culpa” é da internet também. O que Julia Cagé, autora do livro “Salvar os media” começa por dizer é que estamos perante uma encruzilhada há muito anunciada. “O principal problema é que as empresas de media acreditaram durante anos que podiam sustentar o seu modelo de negócio através da publicidade, especialmente na era digital. Mas o que evidencio no meu livro é que se olharmos para a evolução de longo prazo as receitas de publicidade estavam destinadas a secar”.
Destinadas a secar? Como assim? As receitas de publicidade têm, afirma taxativamente a economista, vindo a diminuir. “É uma evolução de longo prazo e não é provável que se inverta. Em Itália, na França, na Alemanha o total de gastos em publicidade em percentagem do PIB está a cair desde o ano 2000, tal como nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, desde esse ano nunca mais voltaram aos níveis de 1987”.
Como se pode explicar esta quebra quando há mais consumidores de media do que nunca na história da humanidade? Porque o espaço disponível aumentou muito mais rapidamente do que a procura pelo mesmo, sobretudo devido ao espaço publicitário na internet – o que fez precipitar a queda dos preços. Além disso, não só o investimento em publicidade diminuiu, como a quota dos media nos investimentos de publicidade também está em queda há já algum tempo. Nos Estados Unidos, as receitas de publicidade dos jornais em percentagem do PIB estão em queda desde 1955. Sim, leu bem: 1955, quase 40 anos antes do boom mass-market da internet.
As empresas de media já perceberam, por esta altura, que a publicidade online não vai inverter esta tendência, porque os preços praticados no digital são ainda mais baixos do que noutros suportes. Soma-se o facto de, em 2015, o Google e o Facebook terem ficado só à sua conta com quase 2/3 dos 60 mil milhões de investimento em publicidade na internet.
Estão os media ditos tradicionais – sobretudo jornais, mas também televisões e rádios – condenados ao progressivo empobrecimento que para muitos meios de comunicação social já significou mesmo extinção?
Na opinião de Julia Cagé há um risco e uma oportunidade. “Infelizmente vemos cada vez mais zombies nos media, ou seja meios com história que produziam informação de grande qualidade e que viram as suas redações ser reduzidas a metade ou a um terço nas últimas décadas. Os jornalistas que trabalham nestes meios estão a tentar sobreviver e a continuar a fazer jornais diários ou semanais, mas faltam-lhes recursos. O que precisamos hoje são mais media independentes que consigam ter suficientes recursos para os seus jornalistas produzirem informação de elevada qualidade”.
Música para os ouvidos de jornalistas nos quatro cantos do mundo e também para os patrões dos media. Mas, a pergunta é: como? “Repensar o modelo económico dos media tem de estar no cruzamento entre o Estado e o mercado, o setor público e privado”, adianta a economista.
O modelo de sociedade de media sem fins lucrativos
O modelo preconizado por Julia Cagé assenta na criação de « nonprofit media organization » (NMO), sociedades de media sem fins lucrativos. Trata-se de um modelo híbrido inspirado no modelo das fundações usado em muitas universidades internacionais, que combina atividades comerciais e não comerciais (assentam numa combinação de propinas, bolsas de investigação, donativos e financiamento público).
Um dos objetivos é garantir financiamento permanente aos media através do congelamento do capital. O segundo objetivo é limitar o poder de tomar decisões através de estatutos restritivos.
Olhando mais em detalhe, quais as regras de uma sociedade de media sem fins lucrativos? Em primeiro lugar, sendo não lucrativas, não pagam dividendos e os investidores não podem recuperar os seus investimentos (como acontece nas fundações).
Mas, tal como uma fundação, este tipo de sociedade pode aceitar doações ilimitadas. Qualquer pessoa ou entidade pode contribuir – em particular leitores e empregados dos órgãos de comunicação social. Essas contribuições são dedutíveis nos impostos – como acontece com as doações a fundações.
Do ponto de vista do enquadramento legal, é dado algum poder adicional aos pequenos contribuidores que são encarados como parte ativa na gestão da empresa e não meros doadores. Mais precisamente, segundo nos explica Julia Cagé, a lei deveria especificar que qualquer investimento acima de uma determinada fasquia de capital numa sociedade de media sem fins lucrativos daria direito a uma votação menos proporcional que o valor investido em direitos de voto.
Por exemplo, investimentos acima de 10% do valor do capital podiam apenas dar direito a 1/3 de voto adicional por ação. Em contrapartida, os pequenos contribuidores receberiam um incentivo inverso ao investirem em menos de 10% do capital, de forma que o total dos direitos de votos de ambas as partes perfizesse sempre 100%.
Na verdade, os maiores investidores não teriam poder proporcional ao seu investimento.
Porque haviam então de investir para além de um limite após o qual os seus direitos de voto deixam de aumentar em proporção com o seu investimento? – a pergunta é lançada pela própria economista enquanto clarifica o modelo proposto. “Um otimista poderia dizer que eles poderiam fazer isso para demonstrar a 'pureza' das suas intenções. Uma resposta mais realista é que poderiam responder a um incentivo de reduções fiscais. Os benefícios fiscais compensariam efetivamente a perda de direitos de voto associada aos maiores investidores”.
O interesse de grandes investidores e milionários nos media é percecionado como um pau de dois bicos. Nomes como o de Jeff Bezzos, fundador da Amazon e um dos homens mais ricos do mundo, que comprou um dos principais títulos da imprensa americana, o Washington Post, ou dos milionários Herb and Marion Sandler, fundadores da ProPublica, um dos mais admirados novos projetos de media. Por um lado, são eles por vezes a tábua de salvação de empresas de media em situação de grande fragilidade económica. Mas, por outro, a tomada de controlo de media lembra sempre – seja por parte do poder politico ou económico – que não há almoços grátis.
Também por isso Julia Cagé defende as virtudes de um novo modelo versus a adaptação linear do modelo de fundações ao negócio dos media. “Os ‘generosos’ doadores, como os Sandler (ProPublica) que descobriram a fórmula das fundações de media tendem a intervir na gestão destas fundações; por outras palavras, mantêm os seus direitos de voto e criam estatutos para garantir que o poder se mantém nas mãos dos doadores. Por isso, o modelo que proponho é a meio caminho entre a fundação e uma sociedade por ações, e resolve a questão da relação entre os recursos financeiros e o poder de tomar decisões”.
Quanto vale o jornalismo no PIB
Outra das vias de discussão sobre a sustentabilidade dos media prende-se com o papel do Estado ou dos Estados. É um tema tão ou mais sensível que a entrada de milionários nos media, e, no que respeita ao Estado, levando a discussão para temas como quem deve ou não decidir que media apoiar e quais as razões pelas quais um determinado Governo apoia ou não um conjunto de órgãos de comunicação social.
Julia Cagé introduz vários critérios de avaliação da intervenção do Estado. Um deles prende-se com o peso dos media na geração de riqueza e de emprego. Em França, a cultura representa 3,2% do PIB (mais que a indústria automóvel) e no Reino Unido as indústrias criativas equivalem a 5,2% da riqueza nacional. Quando se olha para o peso da educação e da investigação científica, estamos também em valores de ordem de grandeza semelhante: representa 3,8% do PIB em França e 5,6% nos Estados Unidos. Mas, o setor dos media não é o predominante. “Na maior dos países que estudei, os media representam uma pequena parte do setor da cultura. Em França, a imprensa, rádio e televisão contribuem com menos de 30% do total do setor do conhecimento no PIB. Da mesma forma que, no que respeita ao emprego, há quase duas vezes mais professores e investigadores do que jornalistas, e nos Estados Unidos este número é três vezes mais”.
Significa isto que os media não importam? “De todo!”, responde a economista. “O setor dos media mantém-se relevante pelo tamanho da sua audiência”. Ilustra esta afirmação com exemplos: a educação universitária em França chega a 2,4 milhões de estudantes – um número que é cerca de 1/3 do número de leitores de um jornal diário local; o espetáculo lírico em França atrai mais de 1,4 milhões de espetadores em cerca de 1000 espetáculos por temporada – menos de 1/6 dos visitantes únicos mensais do site do Le Monde, o principal jornal francês.
Face ao impacto na audiência, como deve o Estado olhar para os media? “Na minha opinião, a informação é um bem público como a educação. E como bem público, não pode ser deixado nas mãos do mercado. O Estado devia financiar em parte este bem público, da mesma forma que financia a educação”. Esta equação complica-se quando se coloca no mesmo plano financiamento público e independência dos media. “Em França, há subsídios aos media, mas os media estão fora de qualquer intervenção governamental. Encontramos o mesmo no Reino Unido. O modelo que proponho também ajuda a preservar a independência dos media: a única forma em que o Governo se envolve é através de deduções fiscais. Não pode escolher que meio apoiar ou não, nem tentar influenciar o conteúdo dos media”.
A crise dos media é, em simultâneo, uma crise económica e uma crise de confiança. Mas a crise de confiança acentua a crise económica: os cidadãos desconfiam cada vez mais dos media tradicionais e, como consequência, cada vez compram menos jornais. Segundo Julia Cagé, estudos similares realizados em França, Estados Unidos e Portugal, mostram que, em média menos de 25% das pessoas inquiridas afirma confiar nos media.
Menos confiança equivale a menos vendas e à perda de receitas para os media. Menos vendas e menos audiência implicam menos receitas de publicidade. E isto é um círculo vicioso porque à quebra de receitas sucede-se menos investimento na redação, o que por sua vez leva a uma quebra na qualidade e a um aumento da desconfiança.
O jornalismo é caro
O facto de a informação poder ser entendida – ou dever – como um bem público tem de ter presente uma evidência: o jornalismo é caro. Sobretudo o jornalismo de investigação que é também uma das premissas fundamentais de democracias saudáveis. Um jornalista de investigação de um dos meios de comunicação social mais prestigiados no mundo pode ganhar 250 mil dólares/ano e não produzir mais do que um grande trabalho nesse ano.
Adicionalmente, escreve Cagé puxando os galões da análise económica, "os media são uma indústria com grandes custos fixos e esses custos fixos são função da qualidade (ou da quantidade) de informação produzida. Eles fazem face àquilo a que se chama os crescentes rendimentos de escala: os custos de produção aumentam com a qualidade e não com a dimensão do mercado servido. Assim, os media têm todo o interesse em maximizar a dimensão de mercado: isso aumenta-lhes o volume de negócio sem aumentar os custos de produção na mesma proporção". Tem sido essa a estratégia seguida por meios globais como o jornal britânico The Guardian que desdobrou a sua redação nos Estados Unidos. O New York Times é outro dos títulos globais que já tira partido da dimensão, estando presente em todo o mundo com o International Herald Tribune, agora renomeado como The International New York Times. É por ter escala que o New York Times é um primeiro (bom) exemplo de um jornal que já “só” depende em 50% da publicidade, tendo os outros 50% de receita pagos através dos subscritores da assinatura digital do site. 50% de dois milhões é garantidamente diferente de 50% de 100 mil.
“É por isso que a indústria de media é tão complexa. Por um lado, não queremos monopólio, precisamos de pluralismo para garantir liberdade de imprensa e qualidade de informação. Por outro lado, a competição é má para os media de um ponto de vista económico, porque é uma indústria caracterizada por retornos crescentes com aumento de escala. Se queremos preservar os media locais, não os podemos deixar entregues às mãos do mercado”, afirma Cagé. Na sua opinião, as paywalls – mecanismos de pagamento de conteúdos nos sites de informação – são parte da solução também. “Os media nunca conseguirão monetizar a sua audiência através de receitas de publicidade. Foi um erro disponibilizar conteúdo gratuito. Acredito que o único modelo de negócio sustentável para o futuro da indústria de media é através da introdução de paywalls. Os jornais que o fizeram no passado recente – como o New York Times e o Le Monde – estão a recuperar a sua rentabilidade”.
O Facebook e o Twitter podem decidir o que uma enorme parte dos cidadãos do mundo sabem (ou não sabem)
Num mercado em profunda transformação, a tecnologia tem sido um dos fatores de aceleração da mudança. O desenvolvimento de algoritmos que selecionam informação de acordo com determinados parâmetros e a criação de “robots” que executam funções para-editoriais são vistos por alguns patrões de media como uma solução e pelos jornalistas como mais uma ameaça. “Continuamos a precisar de jornalistas! Não quer dizer que algoritmos e outros robots não sejam importantes, mas os algoritmos usam a informação produzida pelos jornalistas para produzir mais informação. Precisamos de jornalistas e se combinarmos a sua força com todas as inovações digitais, num bom enquadramento empresarial, podemos produzir melhor informação do que no passado”.
Mais preocupante do que as máquinas é, para autora de “Salvar os Media”, a preponderância das redes sociais. “Na minha perspectiva são uma ameaça porque agem como curadores, como filtro. Temos estado focados na liberdade da imprensa. Mas as redes sociais podem agir como censores hoje em dia. É uma ameaça gigante à democracia, especialmente porque há poucos players de social media. O Facebook e o Twitter sozinhos podem decidir o que uma enorme parte dos cidadãos do mundo sabem (ou não sabem)”.
Também são uma ameaça para os media, acrescenta, porque as empresas de social media ficam atualmente com a maior fatia da publicidade online e por causa disso os media têm menos receitas para financiar as suas redações. O que pode conduzir a uma espécie de sede universal da informação centrada em duas ou três empresas. “Se nada for feito a nível internacional, será infelizmente o que vai acontecer. Espero que haja alguma reação, pelo menos na Europa. E penso que os cidadãos devem ganhar noção que o peso dado ao Google e ao Facebook como curadores é perigoso. As pessoas usam o Facebook para consumir notícias, porque confiam mais nos seus amigos do que nos media convencionais, o que posso compreender. O problema é que deviam perceber que os algoritmos do Facebook não são confiáveis”.
Seja qual for o caminho dos media, a verdade inequívoca é que vivemos uma época de mudanças profundas. Para Julia Cagé, estamos perante o fim de uma época em que a publicidade era o modelo de negócio para empresas de media com o objetivo de produzir informação de elevada qualidade. O que se segue? “É uma escolha nossa e uma das razões porque escrevi este livro. O financiamento público é importante: a informação é serviço público. Como leitores devíamos também ganhar noção que é importante pagar para que seja produzida informação independente”. O que leva até à última pergunta da entrevista: porque devemos salvar os media? “Porque acredito que precisamos de informação independente de elevada qualidade numa democracia que funcione bem. Se as pessoas estão desinformadas ou mal informadas, qual é a vantagem de lhes pedirmos que votem? Um voto democrático é um voto bem informado”.
A crise dos media não é apenas dos jornais - apesar de estes terem sido o elo mais fraco nos últimos dez anos. Toda a cadeia de produção de informação está sob pressão, confrontada com novas formas de concorrência, novos e velhos players, e com as receitas publicitárias, o pilar de décadas do negócio de media, não só em queda como repartidas por mais destinatários. O que faz com que todos nos media procurem novos modelos de negócio ou esperem encontrar "o" modelo salvador. Julia Cagé entra nesta discussão com a proposta de criação deste novo estatuto de "sociedade de média sem fins lucrativos", um formato a meio caminho entre o estatuto de fundação e o de sociedade por ações.
“Cada um de nós convirá que um jornal vivo e maltratado vale porventura mais do que um jornal morto e respeitado. Então, que fazer à parte de nos lamentarmos?". A interrogação é de Thomas Piketty, o conceituado economista autor "O capital no século XXI", no prefácio de este livro de Julia Cagé, a economista que se apaixonou pelos media e que é também a sua actual mulher.
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