Grupos ligados à extrema-direita convocaram recentemente uma manifestação “Contra a islamização da Europa”, com a qual pretendiam percorrer as ruas da Mouraria e as zonas do Martim Moniz e do Intendente, em Lisboa.
A propósito disso, a Lusa contactou o Museu de Lisboa, que realiza vários percursos guiados pela capital, um dos quais chamado “Lisboa Muçulmana”, e, com a ajuda de dois especialistas, um historiador e uma mediadora cultural, foi à procura da influência islâmica em Lisboa.
Dentro do Castelo de São Jorge, junto à área arqueológica onde se descobriram ruínas de duas casas islâmicas do período final da presença muçulmana em Lisboa, imediatamente antes da conquista de 1147 pelos cristãos, o historiador do Museu de Lisboa Paulo Almeida Fernandes recorda os portugueses enquanto “herdeiros de civilizações milenares, incluindo a muçulmana, que tantos vestígios deixou”.
Desse prisma, o historiador vê na marcha convocada “um sinal dos tempos” — de intolerância, polarização e mediatização –, que resulta de “uma grande ignorância em relação à história e ao legado” islâmico.
“A presença muçulmana em Lisboa tem vários séculos” e “é uma constante”, assinala, notando que vai além dos vestígios arqueológicos e entra no quotidiano, no azeite que pomos na mesa ou no olá que dizemos diariamente.
“Somos herdeiros de uma cultura islâmica muito forte”, destaca.
Joana Olivença, mediadora cultural do Museu de Lisboa, concorda: “Nós também somos muçulmanos”.
Lisboa tem influência islâmica nos costumes e hábitos, “não há é conhecimento ou vontade de reconhecer esta herança”, lamenta.
No Pátio da Senhora de Murça, onde uma enorme parede de pedra revela um pedaço da Cerca Moura, Joana Olivença — uma das guias do percurso “Lisboa Muçulmana” — aponta os vestígios islâmicos que “fazem parte da identidade” da capital.
Alfama — que vem do árabe al-hama, ou banhos quentes, referindo-se às fontes de águas termais que ali se localizavam — é disso prova, com o seu traçado de ruas estreitas e labirínticas, casas que avançam sobre a rua nos pisos superiores e janelas saídas, protegidas por tabuinhas.
“Caminhamos por estas estradas e estas vias todos os dias e podíamos estar a caminhar numa medina, não é muito diferente”, compara, admitindo que “a maior parte [dos lisboetas] não se apercebe” dessa influência.
“Ganharíamos mais em conhecer a história, sobretudo a história de Lisboa”, aconselha Almeida Fernandes, lembrando que, aquando da conquista de 1147, Afonso Henriques e os cristãos quiseram que os muçulmanos “ficassem na cidade”, até porque precisavam deles para o povoamento.
“Não por acaso, o primeiro foral que é dado à cidade é precisamente à comunidade moura”, lembra, realçando que os muçulmanos permanecem em Lisboa até ao édito de conversão forçada ou expulsão, em 1496.
No último sábado, o passeio para conhecer Al-Uxbuna (“Lisboa Muçulmana”) — que faz o percurso da Casa dos Bicos ao Castelo de São Jorge — esgotou.
O interesse “tem vindo a crescer”, conta Olivença, notando que há hoje “mais curiosidade (…) pela história de como foi a convivência entre mouros e cristãos e judeus na Lisboa do século VIII ao século XII”. O percurso voltará a fazer-se no dia 29 de setembro.
Na sexta-feira, a Câmara Municipal de Lisboa comunicou que não autoriza a realização da manifestação convocada por grupos ligados à extrema-direita, na base de um parecer da Polícia de Segurança Pública (PSP), que considera haver “um elevado risco de perturbação grave e efetiva da ordem e da tranquilidade pública”.
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