Francisco Gentil percebeu muito cedo que o estudo do cancro e uma assistência cuidada, personalizada e de elevada qualidade aos doentes oncológicos implicava uma organização independente, uma enfermagem eficiente e um exigente nível científico.
O Instituto Português para o Estudo do Cancro, com sede provisória no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, foi criado em 29 de dezembro de 1923 pelo então ministro da Instrução Pública António Sérgio, através do decreto 9.333, que nomeou uma Comissão Diretora presidida por Francisco Gentil
Desde logo e por proposta de Francisco Gentil, o Instituto ficou ligado à faculdade de medicina da Universidade de Lisboa, tendo como objetivos a investigação, o ensino e a assistência a doentes com cancro, objetivos pioneiros que só 60 anos mais tarde seriam consagrados pela União Internacional Contra o Cancro e a Organização Mundial de Saúde.
O legado de Francisco Gentil foi lembrado à agência Lusa pelo seu neto, o cirurgião pediátrico e plástico António Gentil Martins, hoje com 93 anos, que trabalhou graciosamente no instituto entre 1953 e 1957, porque o seu avô só decidiu pagar-lhe depois de mostrar “a necessária competência”.
Gentil Martins, que em 1960 criou a primeira Unidade Multidisciplinar de Oncologia Pediátrica a nível mundial no IPO, contou que o seu avô sempre se interessou pelo cancro e começou a lutar para criar consultas para o tratamento da doença.
“O doente era o rei, era como ele dizia”, recordou Gentil Martins em entrevista no IPO de Lisboa, lembrando a máxima também defendida por Francisco Gentil de “ser fundamental que os direitos não abafem os deveres”.
Gentil Martins recordou um doente a dizer que ia ao instituto porque era “fonte limpa”, o que considerou ser um “forte argumento” para a liberdade de escolha que todo o doente deve ter sobre o local em que quer ser tratado.
O cirurgião que separou pela primeira vez gémeos siameses em Portugal comentou à Lusa que “hoje fala-se muito de centros de referenciação”, mas observou que “essa ideia vem de há 100 anos”.
Na altura, já Francisco Gentil defendia que deviam existir centros específicos para o tratamento do cancro espalhados pelo país, considerando, contudo, que os centros de referência deviam localizar-se em Lisboa, Porto e Coimbra.
Também foi um forte impulsionador da formação, ensino e exercício da enfermagem, tendo criado em 1940 a Escola Técnica de Enfermeiras, a primeira no país.
Consciente de que o Estado não conseguia resolver tudo, o fundador do IPO considerou que era necessário o apoio da sociedade civil, surgindo assim em 1931 a Comissão Particular de Luta Contra o Cancro e 10 anos depois a Liga Portuguesa Contra o Cancro.
Em 1943 foi criado o primeiro lar para doentes e um ano depois foi instituído no hospital “o quarto de repouso”, onde eram colocados os doentes em fase terminal e onde podiam ter a família ou quem quisessem junto deles, modalidade que “acabou com a revolução do 25 de Abril”, lamentou Gentil Martins.
Com “um marcado sentido de serviço público”, Francisco Gentil colocava o doente sempre em primeiro lugar, uma premissa que todos tinham que respeitar.
"Quem não o fizesse ouviria de imediato a frase terrível: Estrada de Benfica e não voltaria mais ao instituto, porque ele queria todas as pessoas a tratar os doentes da melhor maneira possível”, contou o neto do fundador do IPO.
O seu pioneirismo também levou à criação em 1956 do Serviço de Visitação Domiciliária e um ano depois do Serviço de Saúde do Pessoal, o primeiro serviço de saúde hospitalar do país.
Para Gentil Martins, “a luta contra o cancro em Portugal é indissociável da vida e obra do professor Francisco Gentil”, que morreu aos 86 anos, em 1964, “daí o merecido relevo que deverá ser dado ao que conseguiu concretizar e a justiça de manter o seu nome ligado ao nome do Instituto”.
O escritor e médico Fernando Namora, que trabalhou com Francisco Gentil no IPO, dedicou-lhe uma biografia em que destaca a sua obra, e a sua personalidade vigorosa: “E mestre Gentil permanece porque foi arquiteto, obreiro e dinamizador de uma empresa que desafia um gigante: a luta contra o cancro em Portugal”.
“Partindo do nada, e num meio que se apavora das iniciativas, ele, de tenacidade em tenacidade, usando da sagacidade e altivez, armas do seu prestígio, ergue um Instituto de Oncologia. Tinha um agudo instinto da oportunidade e um apuradíssimo conhecimento dos homens: para os converter nunca, porém, se dobrou, nunca lhes serviu a bandeja da humilhação ou da lisonja: impunha-se como soberano que concede mercês em vez de as aceitar”, escreveu.
*Por Helena Neves (texto) e Tiago Petinga (foto), da agência Lusa
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