De Belém a Jerusalém são cerca de 10 quilómetros. Numa primeira vista, o percurso não parece ter nada de complicado. Mas a verdade é que a primeira cidade fica na Palestina e a segunda em Israel. E se a História tem vindo a mostrar que as dinâmicas naqueles territórios não são fáceis, em tempos de guerra ainda menos.

Nicolas Ghobar é um palestiniano cristão de Belém, cidade onde nasceu Jesus. Poderia surpreender o facto de falar português, mas a profissão assim o obriga: é guia turístico na Terra Santa.

Chegou há poucos dias a Lisboa, cidade que o recebe já há algum tempo pela altura do Natal. "Era para sair mais cedo, mas não consegui. Há fronteiras fechadas entre as cidades", começa por dizer ao SAPO24.

O mais difícil, conta, foi "chegar até à Jordânia". "Nós não temos aeroporto, temos de ir ao da Jordânia. Lá foi muito mais fácil".

"Se Belém não tem turistas é um deserto"

A partir de Lisboa, olha agora para a cidade que deixou. "Belém vive do turismo, não temos outra fonte de rendimento, só que tudo está fechado. Sem turismo, Belém está a morrer", evidencia.

"Belém é como Fátima. Se os peregrinos não comprarem coisas e não ficarem nos hotéis, Fátima fecha. Se Belém não tem turistas é um deserto", compara Nicolas.

Por isso, mais do que nunca, a sua vinda a Portugal pode ser uma forma para ajudar quem por lá ficou. Como tem sido habitual, vem vender peças de artesanato feitas pelas famílias cristãs de Belém, em madeira de oliveira, perto da Basílica dos Mártires, no Chiado. A entrada é algo escondida, faz-se pelo n.º 10 da Rua Anchieta, na esquina com a Bertrand.

"Os nossos produtos simbolizam o espírito de amor e da paz da Terra Santa. Tem de tudo: presépios, cruzes, imagens de Nossa Senhora, santos... não são coisas de fábricas, são de pessoas que fazem isto. Algumas deixaram de vender na época da covid, outras agora porque já não têm esperança até que a guerra termine, por causa da economia. E voltar ao turismo vai ser difícil", nota.

Além do dinheiro para as famílias, é também necessário "manter viva a presença de Cristo e os lugares sagrados". "Somos poucos cristãos na Terra Santa, quase menos de 2%", evidencia o guia turístico.

"Precisamos de ajuda para manter o coração de Belém a bater"

Contudo, recorda que "nem todos os cristãos vivem do artesanato. Outros são vendedores, outros são taxistas, outros trabalham na igreja da Natividade, que é a mais importante, e fechou".

"Agora, mais do que nunca, precisamos de ajuda para manter o coração de Belém a bater. A compra de um artigo único e original permite ajudar ao sustento da comunidade cristã e ajudar a perpetuar a presença viva de Jesus", acrescenta.

EPA/ALAA BADARNEH

Enquanto estiver em Portugal, Nicolas Ghobar pretende fazer os possíveis e os impossíveis para conseguir aumentar as vendas dos produtos que trouxe consigo. "O tempo passa rápido, mas quero ver onde posso divulgar, como igrejas, escolas ou feiras. Falei com alguns amigos porque estou sozinho", conta.

Mas não é apenas Belém que funciona como uma cidade deserta neste momento, pela ausência de turistas. Também Jericó e Betânia, na Cisjordânia ocupada, estão assim. Lá em cima, Jerusalém — a grande cidade para três religiões — também parou.

Com a guerra, "a cidade está vazia e triste"

Wassim Razzouk vive em Jerusalém e pode comprovar que muita coisa mudou nos últimos tempos. Representa a 27.ª geração da sua família — são cristãos coptas que saíram do Egito — a trabalhar como tatuador na Cidade Velha, desde o ano 1300.

"A atmosfera da Cidade Velha costuma ser mágica"

Na sua loja, costumam tatuar "mais de 100 pessoas por mês", incluindo muitos peregrinos que visitam a cidade santa, conta ao SAPO24. Na pele levam motivos religiosos como recordação, com base em selos de tatuagens antigos, alguns dos quais com centenas de anos. Mas agora tudo está diferente.

"A atmosfera da Cidade Velha costuma ser mágica. É muito especial. As pessoas chegam à loja com muita energia, normalmente depois de terem visitado muitos sítios sagrados e de terem feito as suas orações e peregrinações. Normalmente, estão cheias do Espírito Santo. E isso sente-se facilmente", começa por dizer. "O espírito de todas aquelas pessoas fantásticas por toda a cidade é lindo. Depois da guerra, a cidade está vazia e triste. A sombra da má energia está em todo o lado".

Por tudo isto, também a sua atividade profissional se ressentiu. "Perdemos 100% do negócio que já tínhamos reservado, era suposto ser uma época muito boa".

"É quase impossível manter tudo. Tivemos de despedir a maior parte do pessoal. Os senhorios não nos deram um desconto na renda e os impostos ainda têm de ser pagos. Por isso, estamos a pagar tudo com as nossas poupanças. Esperamos que esta situação se resolva o mais depressa possível", refere.

Mas parar totalmente não era opção, por isso foi tempo de aceitar um convite que já vinha de longe: Wassim e os dois filhos deslocaram-se até Glasgow, na Escócia, a convite de um estúdio de tatuagens.

"Convidaram-nos inicialmente antes da Covid, mas acabou por não dar. Depois, quando a guerra rebentou, voltaram a convidar-nos. Foi muito difícil encontrar bilhetes para sair de Telavive, tivemos de sair pela vizinha Amã", capital da Jordânia, conta.

"Se não fosse a tradição, procuraria um lugar mais pacífico e estável para viver"

Depois disso, foram para outro estúdio na Polónia, ao mesmo tempo em que conseguiram que a loja em Israel reabrisse, embora com "quase nenhuns" clientes. Para já, ainda não têm data de regresso a casa, mas esperam não ter dificuldades no processo, "enquanto houver voos para Telavive".

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Todavia, a guerra não é uma novidade para a família Razzouk, que ao longo de tantas gerações tem acompanhado a história da Terra Santa. "Infelizmente [temos visto muitos conflitos]. E enquanto houver dois povos a lutar por uma terra e a matarem-se uns aos outros por causa dela, receio que continuemos a ver".

"Se não fosse a tradição com mais de sete séculos, eu levaria a minha família e procuraria um lugar mais pacífico e estável para viver. Infelizmente, isso é algo que nunca poderei fazer", confidencia Wassim.

De Portugal a Israel: talvez só daqui a uns anos

Se quem lá está não quer sair, quem é de longe quer conhecer aquelas paragens pela primeira vez, ou repetir a viagem já conhecida. A Terra Santa é ponto de encontro de vários pontos do globo — e Portugal não fica de fora. Samuel Infante é um dos organizadores das peregrinações propostas pelo Estefânia Viagens, um grupo que parte do hospital lisboeta.

"Não resta outra alternativa senão cancelar a viagem"

No final de setembro, o grupo anunciou uma nova peregrinação à Terra Santa, entre os dias 4 a 13 de março de 2024, acompanhada pelo capelão hospitalar, o padre Carlos Azevedo.

"A viagem estava planeada e aconteceu o que se vê no telejornal: a guerra. Houve muitas agências que cancelaram logo de imediato, mas eu sou um bocado esperançoso. Como tinha até meados de dezembro para cancelar a viagem sem custos, decidi esperar. Isto aconteceu no início de outubro e ainda eram dois meses, podia ser que houvesse um sinal de esperança. Como não há, não resta outra alternativa senão cancelar a viagem. Também não é nosso objetivo pôr as pessoas em risco", conta Samuel ao SAPO24.

"Agora, arrumamos o assunto e ficamos com a cabeça tranquila. Já informei as pessoas envolvidas em Israel de que não há condições para continuarmos. Pode ser que o país esteja seguro internamente, pode ser que não esteja. Mesmo que lá digam que é seguro, as informações que recebemos são contraditórias. Quem lá vive sabe melhor do que nós", reflete.

"Vamos lá e fingimos que não aconteceu nada?"

Nesta fase, havia já "muitas pessoas com intenção de ir e algumas já inscritas, a quem vai ser devolvido o dinheiro". "Não há volta a dar. Mesmo que me dissessem que as coisas hoje estão resolvidas, eu próprio não me sentia bem em lá ir. Vamos lá e fingimos que não aconteceu nada?", questiona.

Samuel Infante organiza estas peregrinações desde 2009 e recorda a última vez que esteve na Terra Santa, numa altura também difícil para aquele território — mas por outros motivos. "A última vez que fomos foi no estalar da covid, em março de 2020. Já havia muitas pessoas que nem queriam ir", começa por recordar Samuel, licenciado em turismo.

"Nunca se sabe o que se vai encontrar"

Contudo, apesar de irem "com o coração na boca", a "nível de logística foi das melhores" peregrinações que já organizou. "Chegámos lá e não estava ninguém. Acredito em Deus e foi uma experiência um bocado curiosa. Três dias depois, o governo decretou quarentena obrigatória para quem chegasse. Ora, já lá estávamos, por isso não fomos obrigados a isso. No dia em que estávamos para sair, o governo proibiu todas as peregrinações. Ninguém saía dos hotéis, mas nós já íamos embora".

Desta vez, ir para encontrar as cidades desertas não é sequer uma hipótese. "Numa próxima vez, daqui a muito tempo, quem tinha interesse na peregrinação vai ser chamado". Mas quando? Samuel tem dúvidas de que seja assim tão cedo: "Israel? Para aí daqui a cinco ou seis anos. As pessoas têm medo da guerra. Nunca se sabe o que se vai encontrar", remata.