Para as gerações agora à volta dos 20 anos talvez seja difícil compreender que Mário Soares tenha sido um herói no combate pela liberdade, amado pelos cidadãos portugueses que em 1991 o reelegeram presidente da República, com 70% dos votos. Nessa reeleição, o PSD do primeiro-ministro Cavaco Silva decidiu apoiar o socialista Mário Soares. Assumindo-se sempre como um homem de esquerda, “republicano, socialista e laico”, Soares já tinha tido a direita da política portuguesa a apoiá-lo com entusiasmo no verão revolucionário de 1975 quando ele liderou o combate contra “o desvio totalitário da revolução”. O “socialismo em liberdade” foi o lema para o combate que Mário Soares conduziu logo após a revolução do 25 de abril de 1974.
Quando em 1996 chegou ao fim de uma década na presidência, com popularidade na casa dos 70%, o país tinha Guterres como primeiro-ministro e Sampaio como presidente. O “muro de Berlim” e a União Soviética tinham acabado, na Europa que antes tinha tido maioria de governos da social-democracia, esta esquerda começou a mudar, a ser menos esquerda e mais liberal. Foi o tempo da terceira via de Blair que coincidiu com Bush em Washington. Soares, sempre ativo a intervir, assumiu-se crítico dessa via liberal no socialismo europeu. As críticas, ásperas, a Blair chegaram a tocar também em Guterres. Cinco anos depois, quando foi preparada a invasão do Iraque, Soares liderou a contestação e desfilou nas ruas ao lado da esquerda revolucionária.
Soares passou para um discurso quase radical, à esquerda. Os factos davam-lhe razão (de facto, ao contrário do que quase todos agitavam, o Iraque de Saddam não tinha armas de destruição maciça). Mas esse desvio contestatário para a esquerda levou ao desgaste da sua imagem. É assim que o candidato presidencial que em 1991 foi reeleito com três milhões e meio de votos (70%), em 2006, quando decidiu recandidatar-se contra Cavaco Silva, não chegou aos 800 mil votos, apenas 14,3%, num cenário de fratura no PS e de zanga com o velho amigo Manuel Alegre, também candidato, que alcançou 20,7%, enquanto Cavaco Silva conseguia 50,5%. Teve assim início um período em que Mário Soares deixou de ser a respeitada e cimeira referência política que tinha sido ao longo de mais de duas décadas. No tempo do governo de Passos Coelho, contundente, disse ao Expresso “estes gajos (PSD/PP) estão a dar cabo do país”. O que chegou a ser Soares em estado de graça tornou-se Soares detestado por muitos. Outros condescendiam: a Mário Soares, pelo que fez pelo país, perdoam-se as coisas que agora anda a dizer.
A fronteira política do 25 de Abril de 1974
Soares tinha 49 anos de idade e quase 30 de luta contra a ditadura quando aconteceu a revolução dos cravos. Filho de um pedagogo e ministro da Primeira República (João Soares, fundador do Colégio Moderno), Soares teve na sua formação académica a influência de formadores iluminados como Agostinho da Silva, António Sérgio, Bento de Jesus Caraça e também Álvaro Cunhal – que era o perfeito que tomava conta do colégio do pai. Era o tempo da II Grande Guerra, Soares aderiu ao Partido Comunista ao mesmo tempo que convivia com a boémia artística e conspirativa da época e se tornava amigo de artistas e escritores, de Almada Negreiros a João Abel Manta e Júlio Pomar, passando por Aquilino Ribeiro, Rodrigues Miguéis, Sophia de Mello Breyner ou Jaime Cortesão. Vem daí o seu imenso gosto pelas artes e pelos artistas, reforçado pelo casamento com uma atriz corajosa e também activista política, Maria de Jesus Barroso.
Mário Soares foi sempre um amante dos prazeres da vida, divertido, grande contador de histórias, sempre pronto para uma boa conversa, apreciador de boa comida e de bons pratos. Grande leitor, não perdia uma exposição de pintura – frequentava regularmente uma livraria-galeria, a 111, de Manuel de Brito, no prédio onde sempre viveu, na esquina do Campo Grande com a rua que leva ao colégio da família.
A polícia política no tempo de Salazar tinha-o sempre debaixo de olho, viu que militou no PCP, mas afastou-se logo por volta dos 25 anos (1949); viu que foi militante ativo nas empolgantes campanhas presidenciais de Norton de Matos (1949) e de Humberto Delgado (1958) e nos congressos e múltiplas acções da oposição à ditadura. Levaram-no por 11 vezes para a prisão. Foi deportado para São Tomé, em 1970, já o tempo de Marcello Caetano. Corajoso, visionário, tenaz, após três décadas a combater o regime de ditadura, Soares preparou-se para conduzir os destinos políticos de Portugal quando fosse possível instalar a democracia. Um ano antes da revolução de 1974 fundou o que veio a ser o Partido Socialista. Teve de ser uma fundação no exílio, na Alemanha.
Quando o 25 de abril fez cair a ditadura, Mário Soares tinha grandes contactos na Europa do socialismo democrático. Soares agarrou de imediato os três “D” do Movimento das Forças Armadas: para o D de democratizar, com a mobilização do PS para a politização de um povo que o regime anterior tinha querido despolitizado; para o “D” de descolonizar, liderando ele próprio negociações com os movimentos de libertação das ex-colónias – o processo implicou a abertura de muitas feridas e houve quem ficasse a odiá-lo; para o “D” de desenvolvimento, Soares teve a visão que mudou Portugal: liderou o processo de integração de Portugal na Europa. Era uma forma de garantir que não poderia haver retorno de Portugal à ditadura (nesse tempo ainda instalada em Madrid e acabada de cair em Atenas) e, ao mesmo tempo, chamando a solidariedade europeia, levar a que Portugal recuperasse de anos e anos de subdesenvolvimento e pobreza. Os amigos europeus corresponderam ao slogan “A Europa connosco”: Olof Palm, Willy Brandt, “son ami” Mitterand, depois Felipe Gonzalez multiplicaram presenças de apoio a Portugal.
Quando em 25 de abril de 1975 surgiram as primeiras eleições livres, ainda não havia sondagens como agora, mas a opinião nos media apontava para grande força do PCP. Quem se impôs foi o PS de Mário Soares (37,8%), seguido pelo PPD de Sá Carneiro (26,4%) e a seguir o PCP de Álvaro Cunhal (12,5%). O tempo era revolucionário, os militares comandavam o país. Soares teve de esperar um ano para, nas legislativas de 76, se tornar primeiro-ministro de Portugal – o PS ganhou estas legislativas de 76 com 34,9%, o PPD alcançou 24,3%, o CDS de Freitas do Amaral com 16% suplantou o PCP por um ponto e meio. Soares fez um primeiro governo só do PS, depois uma coligação PS/CDS. Este segundo governo caiu no parlamento no final de agosto de 78, então com Soares a dizer a sorrir que se sentia livre como um passarinho. Eanes tinha sido eleito presidente da República e Soares não gostava daquele estilo de militar.
Após cinco anos de governos à direita, Soares voltaria a levar o PS à vitória em legislativas a 25 de abril de 1983. Foi o governo de “bloco central” com o PSD de Mota Pinto, e tempos de grande austeridade, com presença do FMI, manifestações hostis em série e alta impopularidade. Apesar do grande êxito, marcante, de ter concretizado a integração de Portugal na então CEE.
Um caso de estudo: de 8% a presidente de (quase) todos os portugueses
O desgaste daquele governo colocou Mário Soares com apenas 8% das intenções de voto na grelha de partida para as presidenciais de 1986. Mas o otimismo sempre esteva na sua natureza, incluindo perante as causas que todos davam como perdidas. Impôs o slogan “Soares é Fixe” e foi eleito numa segunda volta em que Cunhal propôs aos comunistas que tapassem os olhos, mas votassem em Soares.
As presidências de Soares tiveram retumbante apoio popular, só comparável ao que agora tem Marcelo Rebelo de Sousa – embora este, agora, supere tudo. Ao longo da vida, Soares teve sempre muitos adversários. Mas cultivou a estima de quase todos. Francisco Pinto Balsemão e Diogo Freitas do Amaral são dois dos exemplos.
Pelo mundo, os políticos do seu tempo foram desaparecendo. Fez amizade forte com Mitterand, com Brandt, com Palm, com Craxi, com Shimon Peres. Encontrou-se com Savimbi e hostilizou o regime do MPLA em Angola. Foi amigo dos líderes de Cabo Verde, também do moçambicano Joaquim Chissano. Soares quis dinamizar a comunidade lusófona e fez boa parceria com Fernando Henrique Cardoso, que se tornou seu grande amigo. Também com Lula. Com o espanhol Felipe Gonzalez foi diferente: amizade mas com divergências. Manteve-se sempre laico, mas com relações privilegiadas com dirigentes católicos. Quis estar no primeiro encontro ecuménico em Assis, Itália.
Sempre amou viajar, Paris era a cidade preferida. Foi até lá sempre que pôde. Ia ver exposições, comprar livros, era um quebra-cabeças para os seguranças.
A encefalite que o atacou no começo de 2013 diminui-lhe a grande vitalidade que teve durante quase 90 anos.
Tudo o que Mário Soares fez na vida foi sempre com ganas. Com optimismo e grande vontade de viver.
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