Estava agendada para hoje, às 18h30, uma conferência na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-NOVA) com um único orador, o historiador Jaime Nogueira Pinto, subordinada ao tema “Populismo ou Democracia: O Brexit, Trump e Le Pen”. Estava agendada mas já não está, tendo sido desmarcada durante o dia de ontem pela direção da faculdade.
Na origem do cancelamento está um clima de confronto latente entre o grupo organizador da conferência, que se designa como Nova Portugalidade, e outros grupos de alunos da faculdade, nomeadamente a Direção da Associação de Estudantes (AEFCSH). Politicamente são grupos de tendências opostas, o primeiro - a Nova Portugalidade - conotado com a direita nacionalista, e o segundo por tradição mais próximo da esquerda.
Tudo começou com um simples pedido de reserva de sala por parte de um aluno com o objectivo de realizar uma conferência. A sala foi reservada e só posteriormente se soube que o professor convidado era Jaime Nogueira Pinto e o tema a análise a vários fenómenos políticos recentes, como é o caso do Brexit, da eleição de Trump e da ascensão de Marine Le Pen. Mais problemático, contudo, que o convidado e que o tema, terá sido a entidade organizadora, o grupo Nova Portugalidade considerado em vários círculos da FCSH próximo dos territórios nacionalistas que emergem em vários países europeus.
O mal-estar levou à apresentação na Reunião Geral de Alunos (RGA), realizada no dia 2 de março, de uma moção visando o cancelamento da reserva da sala. A própria associação o relata na sua página de Facebook, a 5 de março: “Na última Reunião Geral de Alunos/as, no dia 2 de Março, foi apresentada e aprovada uma moção que vinculava a DAEFCSH a tudo fazer para que o evento promovido pelo núcleo Nova Portugalidade, "Populismo ou Democracia? O Brexit, Trump e Le Pen", a realizar no dia 7 de Março pelas 18h30, não acontecesse”. Na mesma publicação, sublinha-se que “a Reunião Geral de Alunos/as constitui o órgão deliberativo máximo das e dos estudantes e é independente da DAEFCSH”.
A moção foi aprovada e a associação levou-a à direção da faculdade, liderada por Francisco Caramelo, que num primeiro momento não acolheu essa proposta. A direção viria a mudar de posição já durante o dia de ontem, anunciando o cancelamento.
Na notícia inicialmente avançada pelo Correio da Manhã eram referidas ameaças que teriam impedido a realização da conferência e o próprio orador, Jaime Nogueira Pinto, comentou as mesmas. “Tenho pena. Trata-se de intolerância de quem quer calar opiniões contrárias”.
Fontes da FCSH afirmam, todavia, que não existiu nenhuma ameaça explícita, mas sim um clima de mal-estar. Ao Público, o diretor da FCSH, Francisco Caramelo, garantiu que o cancelamento não tinha a ver com Jaime Nogueira Pinto, nem com o tema da conferência.
A página de Facebook do grupo Nova Portugalidade tem vindo a crescer ao longo do último ano (completou um ano de existência a 23 de fevereiro). No total, conta com quase 10 mil fãs (9898 à hora de publicação deste artigo, tendo vindo a ganhar fãs ao longo da noite) e ontem alterou a imagem da página, colocando um selo de “visado” pela censura sobre a imagem anterior que anunciava a conferência com Jaime Nogueira Pinto.
O grupo descreve-se evocando referências ao passado português: "A Portugalidade é uma ideia e uma forma de estar. É uma civilização. Mais que uma constelação de Estados, o mundo português é uma aliança de povos com um passado partilhado e um futuro em comum". Na mesma descrição, a língua e a economia são apresentadas como razões de fundo para a recuperação da ideia de portugalidade, apresentando todavia como primeira razão "a necessidade - que é justa e natural - de reerguer uma família de povos que só por trágico equívoco se desfez". A contestação à descolonização tem sido um dos temas chave do grupo que declara querer "resgatar é, pois, tudo – os feitos, os símbolos, os costumes, o idioma - o que nos irmana. Assim se fará a Nova Portugalidade".
Flores para Salazar
Um dos líderes do núcleo é Rafael Pinto Borges que na sua página de Facebook se apresenta, além de aluno da FCSH, como vice-coordenador do Gabinete de Estudos Gonçalo Begonha, por sua vez também apresentado na mesma rede social como orgão responsável pela formação política e ideológica da Juventude Popular. Rafael Pinto Borges não esconde as suas simpatias pelo antigo regime, nomeadamente pela figura de Salazar. Em 24 de agosto de 2016 publicou na sua página de Facebook uma fotografia da sua homenagem a Oliveira Salazar, colocando flores na lápide do cemitério onde se encontra sepultado. Na publicação associada escreveu: "Ontem, no Vimieiro, município de Santa Comba Dão, para honrar o Professor Salazar com as suas flores predilectas. Visitei também, e pelo segundo ano consecutivo, a casa onde nasceu aquele homem notável. Fica na Rua Prof. António de Oliveira Salazar, a única do concelho que resistiu à maníaca purga de 74 e 75. Na capital da autarquia, nem um busto. Sobrou-me chorar os mortos, já que os vivos nos dão tantas provas de os não merecerem.”
Sobre o cancelamento da conferência, o grupo publicou um longo post em que afirma que “a Direcção determinou o cancelamento da conferência em razão do perigo credível de que o orador, os organizadores, ou o público, fossem perturbados por elementos da esquerda radical atuantes na Faculdade, sem que a Direcção estivesse em condição de prevenir vexames e agressões perpetrados contra os presentes”.
A Nova Portugalidade estabelece ainda paralelismo entre o que aconteceu ontem e a repressão na década de 60 em Portugal: “Pareceria até há bem pouco que o cancelamento de um evento académico numa Universidade, motivado pela ameaça do uso de violência física e moral contra o orador e o público, não teria lugar no Portugal democrático, quatro décadas volvidas sobre a Revolução. Desde a década de sessenta que não se suprimia na Universidade portuguesa (…) À Nova Portugalidade não passa desapercebida a trágica ironia histórica.”
Por seu lado, no comunicado publicado também na sua página de Facebook, a direção de estudantes da FSCH, além de relatar o processo de organização da conferência até ao cancelamento, assume abertamente “uma nota de repúdio ao evento e ao cariz ideológico nacionalista e colonialista do núcleo que o promove e que se refere de forma indirecta à descolonização no seu manifesto como ‘trágico equívoco’”. A associação afirma que nada no evento é “exclusivamente académico, como a descrição quer dar a entender, e que tentar fazer crer às pessoas que não há substrato político no que está a acontecer é, no mínimo, desonesto”.
A ata da reunião foi publicada e nela pode ler-se que durante a RGA, no quarto e último ponto da ordem de trabalhos: Outros Assuntos, foram entregues três moções pelas alunas e alunos presentes na assembleia. "A primeira moção (anexo 4) tratava-se de um pedido à assembleia para que fosse cancelado o pedido de reserva de sala feito pelo proto-núcleo Nova Portugalidade. Os proponentes desta moção justificaram-na explicando que os princípios ideológicos da entidade referida eram totalmente contrários ao espírito da Constituição da República Portuguesa, assim como aos mais básicos princípios da democracia". A moção foi levada a votação, tendo sido aprovada com vinte e quatro votos a favor, quatro votos contra e três abstenções, contabilizando um total de trinta e cinco votos.
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