"Eu até gosto de ter fotografias a fumar, porque detesto a militância anti-tabagista. [Tosse] Tenho 76 anos, fumo desde os 16 e nunca me fez mal nenhum." É assim que Vasco Pulido Valente, Vasco Correia Guedes antes de ter adoptado o apelido do avô materno, que o ensinou a pensar, responde à pergunta do fotógrafo, que quer saber se o incomodam as fotografias de cigarro na mão. A resposta revela o humor e a impaciência para grupos.
Historiador e investigador, muito mais do que um pessimista é um anti crónico, uma espécie de desmancha-prazeres do sistema. Confessa que é difícil envelhecer, mas admite que a idade e o distanciamento de cena lhe dão uma visão mais abrangente e até mais divertida sobre quase todos os acontecimentos, mesmo aqueles a que antes não dava importância. Talvez por isso defenda que devia haver uma lei a proibir a inscrição nos partidos de miúdos com menos de 18 anos, "acabavam-se as jotas".
Foi secretário de Estado da Cultura e secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro. Diz que a vida é hoje incomparavelmente melhor do que quando nasceu e que nem sonhem que há mais corrupção. Foi sempre assim ou muito pior, a diferença é que antigamente era uma coisa aceite, garante.
Publicou recentemente "No Fundo da Gaveta" e agora estabelece um paralelo entre Portugal do século XIX e o país actual; os mesmo vícios. Falámos no dia em que o Brasil foi eliminado pela Bélgica do Mundial de Futebol, que tem seguido com atenção. Sentado na sala de estar da sua casa no centro de Lisboa, desliga-se do aparelho de televisão e centra-se no gravador do telemóvel para iniciar a entrevista.
Também segue, depois dos jogos, os comentários do presidente Marcelo Rebelo de Sousa?
O nosso presidente da República comenta tudo, até se comenta a si próprio. Comenta o futebol, comenta a política internacional, comenta o tempo... Tudo.
E comenta-se bem?
Não interessa. É o presidente que os portugueses elegeram, é o presidente que têm.
Defendeu um sistema presidencialista para Portugal, mas o presidente da República não exerce todos os poderes que tem.
O presidente da República Portuguesa tem muito poucos poderes. E tem um único poder importante, que é o de dissolução da Assembleia da República. O resto são poderes de influência.
Que outros poderes precisava de ter?
Não sei. A Constituição foi feita em 1976 e alterada em 1982. Naturalmente os partidos que já existiam não queriam um regime presidencialista; nem o PC, nem o PS, nem o PSD, nem o CDS. Queriam um regime parlamentar. E eu não defendo um regime presidencial, defendi.
E agora, o que defende?
Agora não defendo nada. Já não me interesso muito por política.
Interessa-se pelo quê?
Leio, por exemplo. Não estou interessado em política, como não estou interessado noutras coisas; aos 76 anos as pessoas desinteressam-se um bocado do mundo, é assim.
Quer explicar melhor? Também podia ser ao contrário.
Não, não podia. Na medida em que eu já não participo. O grau de participação que eu tenho na vida portuguesa, como na vida em geral, não é o mesmo de há 20 anos ou até de há dez. Isso acontece à medida que as pessoas envelhecem; reformei-me e, pouco a pouco, deixei de participar na vida em geral e na vida pública em particular.
Isso faz com que observe mais ou menos o que se passa à sua volta?
Faz com que observe mais e de maneira diferente. Tenho mais tempo e vejo o que se passa à minha volta com mais interesse, a observação à distância é menos deformada pela minha participação, olho para tudo como quem assiste a um espectáculo, vejo o filme todo e isso faz com que o faça mais assiduamente e mais pacientemente do que quando intervinha, mesmo em relação a coisas nas quais normalmente não estaria interessado.
Por exemplo?
Por exemplo a guerra no Sporting. Eu, que não sou de nenhum clube.
Se eu fosse professor de Ciência Política tinha dito aos meus alunos para assistirem àquele drama todo [Sporting], porque aquilo é o modelo do ditador populista
Como olha para esses dramas do Sporting e de Bruno de Carvalho?
Se eu fosse professor de Ciência Política tinha dito aos meus alunos para assistirem àquele drama todo, porque aquilo é, digamos, o modelo do ditador populista. Não só do que o ditador populista faz e diz, mas a forma como o passa e também de como fazem as pessoas que estão à sua volta e que acabaram por o destituir. Mas isto ainda não acabou, as coisas não são ainda muito claras à data de hoje.
Ora aí está um presidente que não cantou com os Xutos & Pontapés no Rock in Rio. Portugal é uma alegre casinha?
Não foi só o presidente da República que cantou, foi também o presidente da Assembleia da República, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o primeiro-ministro... Todos os altos dignitários do Estado. Acho bem, compete aos altos dignitários do Estado fazer um orfeão, podiam gravar um disco.
Como se chamaria o disco?
Podia chamar-se "Órgãos de Soberania".
A avaliar pela generalidade dos comentários, embora as generalizações tenham os seus perigos, parece que as pessoas acharam normal e até gostaram.
Eu não penso que toda a gente ache isto normal, acredito que já foi levado a um extremo e que muita gente começa a avaliar isto pelo que é.
E o que é isto?
É uma charlatanice. Há um patamar abaixo do qual os dignitários do Estado – chamam-se dignitários do Estado por uma razão – não podem descer. E quando se desce abaixo desse patamar à procura de popularidade e de votos penso que se preparam coisas do pior. Depois, quando for preciso – e provavelmente vai ser preciso – um exercício de autoridade muito impopular, não vão ser essas pessoas que vão exercê-lo, com certeza.
As pessoas não podem, como fez António Costa, ir ao Rock in Rio cantar "A Minha Casinha", como se estivesse entre amigos, e sair dali e ir para a televisão dizer: "Meus caros amigos, não há aumentos para ninguém"
Por que motivo acredita que vai ser preciso um exercício de autoridade? Muita gente vai comentar: lá está ele com o pessimismo do costume a achar que vai correr tudo mal...
Não estou a dizer que vai correr mal, estou a dizer que o Banco Central Europeu anunciou que a partir de Setembro não nos vai comprar dívida, a economia europeia está a abrandar, a economia portuguesa também está a abrandar e para fazer face às dificuldades vamos ter de pedir dinheiro emprestado e o dinheiro vem em piores condições, provavelmente com juros mais altos. Esta história do virar de página, de que a austeridade acabou, tem sustentado o governo e não correu mal, mas anunciam-se dificuldades. E quando chegarem as dificuldades, como já se está a ver, vai ser preciso exercer autoridade. E este período, que não foi de prosperidade, foi de alívio de dificuldades, vai pagar-se caro. As pessoas não podem, como fez António Costa, ir ao Rock in Rio cantar "A Minha Casinha", bater o ritmo com o pé num dia, como se estivesse entre amigos, e sair dali e ir para a televisão dizer: "Meus caros amigos, não há aumentos para ninguém". É difícil fazer esta transição do braço dado para o braço de ferro. E já está a suceder. Não pode ser. As pessoas não podem fingir que fazem parte da populaça num minuto e duas horas depois estar a dizer a essa mesma populaça que tem de gastar menos, de fazer sacrifícios. E menos ainda fazer promessas: "Olhem que não há aumentos, mas é só por um bocadinho, para o ano já vai haver". As pessoas não acreditam em promessas de compinchas, de iguais.
Não?
Não.
As pessoas não têm memória curta, como se costuma dizer? O que vai ser desta aliança entre o PS, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista?
Têm lá memória, não há memória. A aliança entre o PS e o PC foi possível, e isso foi uma coisa que não se percebeu em Portugal, a partir do momento em que o PC deixou de querer e de poder ocupar parte do Estado português. Porque a grande política do PC era uma política de ocupação do Estado. A União Soviética colapsou, o comunismo deixou de ser uma organização internacional forte e deixou de ser uma ameaça para o Estado português. Isso tornou possível, desde fins do século passado, início deste século, uma aliança entre o PS e o PCP, não sei porque é que ninguém acordou para essa realidade. A única pessoa que sentiu isso foi o Dr. Soares, que percebeu que o governo do PS tinha de passar por outro caminho.
Os dirigentes do BE e os dirigentes mais novos do PS são da mesma geração, têm a mesma educação, o mesmo percurso social, vestem-se da mesma maneira, gostam das mesmas coisas, comem as mesmas porcarias, acreditam nas mesmas parvoíces
E o Bloco de Esquerda, onde entra nessa equação?
O Bloco de Esquerda é uma coisa diferente. Os dirigentes do Bloco de Esquerda e os dirigentes mais novos do PS são da mesma geração, têm a mesma educação, o mesmo percurso social, vestem-se da mesma maneira, gostam das mesmas coisas, comem as mesmas porcarias, acreditam nas mesmas parvoíces. Vai ser muito difícil ao Partido Socialista suportar esse peso, na medida em que o PS tem hoje um grande peso numa asa, não digo na asa esquerda, porque não acho que a asa seja de esquerda. Mas digamos que a ala esquerda do PS é também a ala mais nova, aquela que nasceu com os computadores, para quem ir à televisão é uma coisa natural, a que está à vontade na modernidade. Porque as coisas são diferentes do tempo do Fefé [Ferro Rodrigues], do meu tempo. A nova geração do PS é indistinguível da geração do Bloco, há ali uma grande continuidade, que é material, inclusive, e portanto política. E pode haver uma situação em que o PS de hoje seja posto perante este problema: em que medida é que rejeitando o Bloco, para este não vir a ter na organização e na política o peso que as circunstâncias o chamam a ter, deve fazer uma política isolacionista, caso em que se arrisca a uma cisão na sua ala esquerda, ou aceitar uma colaboração do Bloco, que, a prazo, se pode tornar uma amálgama.
O Bloco já disse que queria fazer governo com o PS.
Pode haver uma situação – e isto é claro para toda a gente e para o Bloco também – em que o PS não tenha maioria nas próximas eleições, mas tenha maioria com o Bloco. Se tiver maioria com o Bloco de Esquerda tem de se ligar com o Bloco e tem de fazer governo com o Bloco, não pode fazer uma aliança com o PSD, sob pena provocar uma cisão dentro do PS. Esta gente mais nova do PS não foi educada a pensar num Bloco Central, para eles isso é, como hei-de explicar...
Esta gente mais nova do PS não foi educada a pensar num Bloco Central, para eles isso é contranatura, não viveram a circunstância que o tornou necessário. A nova geração do PS já nasceu contra o PSD, contra a direita
Contranatura?
Contranatura. Não viveram a circunstância em que o Bloco Central se tornou necessário e recomendável, não partilharam os problemas que o tornaram possível. Fez-se a revisão constitucional, acabou-se com o Conselho da Revolução e o governo era da confiança do presidente. A nova geração do PS já nasceu contra o PSD, contra a direita. Em 1900 e troca o passo havia uma comunhão entre o PSD e o PS e muitas outras pessoas, que queriam normalizar constitucionalmente e economicamente o país. Não podíamos aderir sequer à Comunidade Europeia com aquela Constituição. Não podíamos sentar-nos em Bruxelas com o Conselho da Revolução, cujo presidente era o presidente da República, que ao mesmo tempo era Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. Isto não existia na Europa e as pessoas que queriam que Portugal fosse um país europeu tinham de resolver este problema. E com quem é que o PS se entendia, que era um grupo engraçado? Com o PSD. Eu andei com o PSD e até fui do PSD. Porque havia um espaço comum.
Que hoje desapareceu?
Hoje em dia não há nenhum espaço comum senão na cabeça do Dr. Rui Rio. E as pessoas da sua geração, o senhor João Galamba e a senhora Isabel Moreira e o senhor Pedro Nuno Santos não fazem ideia do que era essa comunhão de interesses entre o PS e o PSD, que não era uma comunhão nem social nem política - quer dizer, era política, mas apenas nestas áreas fundamentais. Toda a gente estava interessada nisso: queria que Portugal fosse um Estado normal, uma sociedade europeia, de acordo com critérios europeus, a favor da Comunidade Económica Europeia, depois União Europeia. Quando o Dr. Soares conseguiu a adesão de Portugal à CEE a primeira coisa que a elite portuguesa festejou foi a garantia da democracia portuguesa, não foi "vamos ser mais prósperos e ter uma economia mais assim ou assado". Foi "a democracia está garantida", eu vi e estive muitas vezes o Dr. Soares nesse tempo e sei disso. Porque a democracia não estava garantida, foi preciso que ele fosse presidente da República e que se liquidasse o PRD para a democracia ficar garantida. Isto não era uma brincadeira, como agora, em que as pessoas vão mais para a esquerda ou para a direita. A política portuguesa fez-se sobre problemas fundamentais e básicos até ao fim dos anos 80, agora é que é uma espécie de recreio e tanto se pode estar aqui como ali e fazem-se alianças aqui e acolá.
Há quem, como Jaime Nogueira Pinto, diga que não há direita em Portugal. Concorda?
Não concordo. Há.
O Dr. Cavaco teve a máxima responsabilidade neste campo. Aceitou políticas que não devia ter aceitado nunca, não naqueles termos. Sobretudo porque era ignorante. Era um homem ignorante e de pouca decisão.
É a de Rui Rio?
Está a brincar comigo?! A direita que existe e deve existir em Portugal é uma direita favorável ao investimento no sector privado da economia. São precisos grandes investimentos na indústria, nos serviços, na agricultura, mas sobretudo na indústria e na agricultura – no interior norte – no interior sul, menos - há uma sociedade rural onde a economia é de subsistência, com pouco capital, alfaias rudimentares, e que é preciso transformar, não chega atirar dinheiro para cima daquilo, tem de haver políticas. Era preciso convencer as pessoas das aldeias ali à volta, agregar todas aquelas pequenas terras, concentrá-las em propriedades maiores. Quem governa o país devia a certa altura ter percebido e ter agido – não me incluo nisso porque só estive no governo um ano, não tive grandes responsabilidades –, mas os governos deste país têm grandes responsabilidades, sobretudo o Dr. Cavaco, pela maneira como negociou a PAC para Portugal, que foi desastrosa. Mesmo naquela altura contava-se anedoticamente que toda a gente tinha ido comprar motocicletas para ir beber café à vila mais próxima com o dinheiro das vacas, o que também era uma graça. O Dr. Cavaco teve a máxima responsabilidade neste campo. Aceitou políticas que não devia ter aceitado nunca, não naqueles termos. Sobretudo porque era ignorante. Era um homem ignorante e de pouca decisão. E note, dessa ignorância ainda temos esse problema com imensa gravidade, como tínhamos há 40 anos. Com maior gravidade, porque entretanto passaram 40 anos.
O mesmo Cavaco Silva que agora vem dizer que "Portugal não precisa de mais auto-estradas, precisa de mais crianças"?
Pois, como eu lhe digo, é uma pessoa muito ignorante, o Dr. Cavaco. E não é muito inteligente. Depois diz enormidades como essa. Para haver mais crianças é preciso haver mais família. Para haver mais família é preciso que as pessoas estejam mais próximas, porque são mais exigentes, querem beneficiar da extraordinária civilização material que temos, em que tudo nos chega com facilidade, da comida às tecnologias, das viagens aos filmes e programas de televisão, passando pelos livros – há por aí uma coisa que se chama "Kindle" onde se encontram os livros todos, até os meus. Coisas que não existiam. A civilização material é importante. E como houve uma migração maciça para as cidades, as pessoas não tem nem educação nem rendimentos suficientes para ter filhos.
Não é esta vida e fazer filhos e não fazer auto-estradas. Embora eu compreenda que fazer filhos e fazer auto-estradas para o Dr. Cavaco seja mais ou menos o mesmo.
Os estudos, a estatística, mostram que os mais ricos não têm mais filhos.
Isso não é assim, desculpe. Olhe, há um mito de que eu gosto muito e nós nem nas estatísticas sobre quem somos devemos acreditar, percebe? O que vem nas estatísticas não vale nada sem interpretação. As famílias camponesas precisavam de filhos, não havia pensões de velhice, e eram eles que asseguravam a continuação das suas estruturas, que representavam a sobrevivência. Para os mais velhos poderem envelhecer, para poderem ficar doentes e até morrer, tinha de haver outros, mais novos, capazes de cultivar a terra, de fazer outras tarefas. No momento em que as pessoas vão para as cidades passam a viver melhor e acabam as famílias extensas. Eu tinha sessenta e tal primos, 30 e tal de cada lado, mas hoje há as famílias nucleares. E sobretudo famílias de geração urbana. E é preciso creches, porque o pai e a mãe trabalham, na altura trabalhava só o pai. Agora ambos querem uma vida autónoma, é preciso uma creche, o que de resto diminui o interesse pela criança. Ou seja, precisam dos serviços do Estado. Portanto, só o Dr. Cavaco, uma mente estreita como a do Dr. Cavaco, poderia fazer uma afirmação dessas, uma coisa horrível de se dizer. Toda a gente sabe fazer crianças... O problema aqui é este: fazer uma sociedade onde possa haver famílias. Se as pessoas, como acontece, forem trabalhar no centro da cidade e viverem nos subúrbios da grande Lisboa, do grande Porto e, se calhar, da grande Coimbra e grande Faro, e levarem uma hora e meia ou duas horas nos transportes para casa e viverem em quartos alugados ou em T1, é claro que não têm filhos. Não é esta vida e fazer filhos e não fazer auto-estradas. Embora eu compreenda que fazer filhos e fazer auto-estradas para o Dr. Cavaco seja mais ou menos o mesmo.
Voltando a Rui Rio. O que é Rui Rio na direita?
Rui Rio é uma personagem que era presidente da Câmara Municipal do Porto. E um mau presidente.
Porque é que não gosta dele?
[Pausa] Já percebeu o que é que ele quer um dia? Pertenci àquele partido, ao partido que conheci e para onde fui com o Dr. Sá Carneiro e que fez a Aliança Democrática e onde havia pessoas inteligentes e que teve as duas primeiras maiorias antes de ter havido qualquer maioria de esquerda - e não eram maiorias sociais, eram maiorias políticas. Custa-me ver esta estupidez do Dr. Rui Rio a fazer campanha pela natalidade quando há problemas sociais de tal maneira graves que não são resolúveis com campanha nenhuma. A França foi dos primeiros países a fazer campanhas pró-natalidade, porque os franceses começaram a perceber que eram menos do que os alemães e que os alemães eram o perigo, estava-se por volta de 1870, imagine, altura da primeira guerra contra a Prússia. Durou até à Segunda Guerra Mundial, sem resultado nenhum, como é evidente. Assim como distribuir 500 mil euros por quem tiver bebés nos próximos anos é uma coisa tão meridiana que não é possível que aconteça. Na altura havia pessoas que tinham um olhar inteligente sobre os assuntos.
Quem eram essas pessoas?
O PSD era um partido nacional, agora é um partido dirigido por antigos presidentes de câmaras municipais, incluindo Rui Rio, que acha que a intervenção na sociedade se faz com uma campanha a favor da natalidade e é essa a grande novidade que traz: uma coisa que na Europa toda a gente percebeu que era uma estupidez de dimensões extraordinárias por volta de 1930. Quando há uma baixa de natalidade é porque há deformações e problemas gravíssimos na sociedade que não há campanha que lhes valha. Repito: os franceses fizeram campanhas pró-natalidade desde 1870. Vem o presidente de um partido e faz uma coisa destas? O que quer que lhe diga de um homem destes? A natalidade é como o resto: uma pessoa está a morrer de cancro e vem um idiota e dá-lhe uma aspirina.
Existe um paralelo entre o Portugal oitocentista de "O Fundo da Gaveta" e o tempo actual?
Sim. A segunda parte do livro é a descrição de vários conflitos políticos, dos quais saiu o radicalismo. E o problema é sempre o mesmo: há o défice para cobrir. E ou se aumentam os impostos ou se pede dinheiro emprestado. Se se aumentam os impostos, o povo, os contribuintes ficam maldispostos. Se se pede dinheiro emprestado, vai-se acumulando uma dívida cujos encargos são cada vez mais elevados, pelo que o que se pode pedir a cada ano vai diminuindo. Hoje é mais ou menos aceitável por todos não querer conflitos sociais muito agudos. Mas se o Banco Central Europeu deixar de comprar dívida portuguesa como comprou até aqui – e já anunciou que é o que irá acontecer a partir de Setembro - teremos de ir ao mercado. E aí as coisas vão mudar. Em 2011, 2012 e 2013 colocámos dívida em más condições, depois do descalabro a que nos levou o governo Sócrates. Ficámos em muito má posição. Toda a gente culpa o governo da altura, mas o governo da altura não tinha outra solução, era cortar em todo o lado ou deixar de pagar, porque em última análise é isso que pode suceder. Pode dizer que houve uma austeridade extraordinária, mas o défice hoje está altíssimo.
Há sempre outra hipótese: reduzir a despesa.
Não há outra hipótese, essa é uma hipótese académica. Sempre se disse que se pode reduzir a despesa do Estado, que há funcionários a mais, que o Estado está em áreas onde não deve intervir, etc. E no entanto nunca foi possível cortar significativamente nas despesas do Estado, ou seja, tanto que bastasse para suprir as dificuldades do crédito. Nunca foi possível. As economias que se fizeram foram sempre marginais.
A classe média portuguesa é de tal maneira uma emanação do funcionalismo público que cortar a despesa do Estado é acabar com os rendimentos dessa classe média
Porquê? Por que motivo nunca se fez uma reforma administrativa a sério, apesar de ser aceite por todos que é necessária?
Porque a classe média portuguesa é de tal maneira uma emanação do funcionalismo público que cortar a despesa do Estado é acabar com os rendimentos dessa classe média. E como é a classe média que elege os governos, ou é nela que os governos se apoiam, isso nunca será possível. Como é que se vai fazer uma reforma do Estado? O Estado tem funções que não devia ter numa extensão e num grau em que, extinguindo essas funções, afectaria a economia com repercussões que a tornam impossível. Há coisas que se dizem, gestos de impaciência, mas governo atrás de governo, atrás de governo, em 40 anos a mesma história: não me lembro de um governo que, desde 1976, não tenha entrado com o propósito ou o programa de fazer uma reforma do Estado, incluindo racionalizar ou reorganizar o funcionalismo público, suprimir certas funções consideradas inúteis. Mas há razões para não se fazer.
Então não há solução, é isso que está a dizer?
Pois se lhe digo que até o governo onde eu estive tinha o ministro da Reforma Administrativa que não reformou nada! Durante muito tempo houve esse cargo em vários governos – nos II e VII Governos Constitucionais, 1978 e 1981, com Mário Soares e Pinto Balsemão, e no XVI Governo Constitucional, em 1999, com António Guterres [Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, extinto em 2002]. E desde 2015 existe o Ministério da Presidência e da Modernização Administrativa. O Ministério da Reforma Administrativa era ali nas Laranjeiras, ao pé do Jardim Zoológico, e nunca reformou nada, zero. Todos os partidos têm isso nos programas e sou eu que tenho que resolver o problema?!
(...) o que digo é que a classe média teria de assumir a intenção de reformar o Estado, e isso não é possível na medida em que ela depende do Estado e ao mesmo tempo dirige-o. Isso seria o mesmo que pedir-lhe para cortar nos seus próprios rendimentos
Não estou a dizer que tem de resolver a situação, estou a perguntar se, como intelectual, como alguém que pensa o problema, vê uma solução ou se estamos condenados.
Não digo que este problema seja irresolúvel, o que digo é que a classe média teria de assumir a intenção de reformar o Estado, e isso não é possível na medida em que ela depende do Estado e ao mesmo tempo dirige-o. Isso seria o mesmo que pedir-lhe para cortar nos seus próprios rendimentos. Teoricamente pode haver uma solução, é que a indústria portuguesa, os serviços, a agricultura, se capitalizem, o sector privado se capitalize, e então passemos a ter uma classe média que não dependa do Estado. Mas isso neste momento está longe de suceder.
No seu livro também se percebem os jogos de poder. A corrupção já tinha os níveis que tem hoje?
Sempre teve. Os governos portugueses sempre foram corruptos. E mais corruptos antigamente do que agora, muito mais. Naquela altura a coisa era pública e geralmente aceite, hoje é condenada. Na época não passava pela cabeça de ninguém processar alguém porque roubava dinheiro ao Estado, isso era uma prática normal, só não roubava quem não podia e até havia um dito: "Quem se arranjou, arranjou. Quem não se arranjou, que se arranjasse".
Falou no governo Sócrates. O governo de António Costa...
Sócrates é uma personagem da história portuguesa. O que acha que foi a nobreza liberal senão um roubo generalizado?
Mas é suposto os tempos evoluírem...
Não, qual evoluir. A nobreza inglesa nunca roubou o Estado.
Já a espanhola...
A espanhola é como a portuguesa. A inglesa não. Nem a francesa nem a alemã e por aí fora. Quer dizer, algumas delas roubaram o Estado medieval.
Mas o facto de sempre se ter feito torna a coisa mais legítima?
Não, mas é mais ou menos aceitável perante a sociedade. Até muito tarde, quando as pessoas eram promovidas, ou por outra, quando lhes davam títulos, estava implícito que lhes davam os meios para usarem esses títulos dignamente. Um duque tinha de ter um ducado, um couto.
Mas os governos terem sido sempre corruptos justifica que continuem a ser? O ter tido uma taxa de analfabetismo altíssima justifica que continuemos a ter?
Isso, desculpe lá, para que é que os rurais do século XVIII ou XIX haviam de ser alfabetizados quando não tinham livros para ler? E no século XIX a pequena burguesia das cidades já sabia ler. Leu "O Crime do Padre Amaro"? Lembra-se que o padre Amaro chega a Leiria na posta, uma carruagem puxada por quatro cavalos, que fazia o percurso entre o caminho-de-ferro e as cidades? Era a posta que trazia os livros, que não havia.
Mas é normal que as pessoas procurem informar-se, modernizar-se, queiram mais ou não?
As sociedades mudam pelos critérios e pelos comportamentos pessoais, pelas atitudes que existem em cada indivíduo.
No meu tempo de estudante éramos 6 mil em todas as universidades, hoje são 300 mil, para lhe dar uma ideia da escala.
Como e em que mudou a sociedade portuguesa?
O mundo inteiro mudou. E claro que noto mudanças na sociedade portuguesa. Há uma diferença abissal entre a sociedade de hoje e aquela em que eu nasci. Em tudo. A vida material é melhor, não havia nada, nem televisão, e quando apareceu era só um canal e a preto e branco. Não havia telefone. As diferenças sociais eram enormes e hoje estão esbatidas. No meu tempo de estudante éramos 6 mil em todas as universidades, hoje são 300 mil, para lhe dar uma ideia da escala.
A esperança de vida aumentou. A qualidade de vida aumentou proporcionalmente?
A esperança de vida aumentou imenso e a vida das pessoas tem melhorado. Os homens passaram de ter uma vida curta e brutal para ter uma vida mais longa e mais cómoda, mais protegida. E isso passa-se em toda a parte em graus diferentes: se tiver muito dinheiro e viver num país desenvolvido é melhor, mas mesmo as pessoas com rendimentos muito baixos vivem melhor, é menos letal. O Sistema Nacional de Saúde mudou muito nos últimos dez anos, não há uma comparação em termos de meios de diagnóstico.
Esteve hospitalizado há relativamente pouco tempo. Num hospital público ou privado? Pode contar a sua experiência?
Estive num privado, mas tenho ADSE. Funcionou tudo optimamente. A medicina mudou muito. Os avanços tecnológicos impuseram um padrão de prática clínica que se aplica em toda a parte, não há uma excepção para o senhor Silva ou para o senhor Lopes. Toda a gente é tratada da mesma forma, não só porque o sistema em si é igualitário, mas porque os procedimentos impõem essa igualdade em termos de diagnóstico e de tratamento, consoante o grau de gravidade e de urgência, se vai para a enfermaria, para os cuidados intermédios ou intensivos, etc. Todas as variáveis entram em linha de conta. É a medicina moderna que assim o exige. Outra questão bem diversa é se há pessoal ou não pessoal suficiente, se as máquinas estão obsoletas, se há vagas e listas de espera ou mesmo camas disponíveis nos hospitais. Esse é outro problema. É claro que é preciso investir mais na modernização e nos serviços hospitalares.
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