A história do Sport Lisboa e Benfica mudou no dia 7 de julho de 2021, quando, no âmbito da operação Cartão Vermelho, que averigua negócios e financiamentos superiores a 100 milhões de euros, suscetíveis de causar prejuízos para o Estado e outras sociedades, incluindo a SAD do clube lisboeta, o 33.º presidente e o mais duradouro da história dos encarnados foi detido por ser considerado suspeito dos crimes "de abuso de confiança, burla qualificada, falsificação, fraude fiscal e branqueamento".
Luís Filipe Vieira, que já tinha sido condenado por um roubo de um camião em 1984, estava de novo envolvido em outro processo judicial por suspeitas de crimes económico-financeiros, dois meses após ter sido ouvido na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as perdas registadas pelo Novo Banco.
Considerado o segundo maior devedor desta entidade (rótulo que o próprio rejeita), viu uma das suas empresas gerar durante quatro anos perdas de 225,1 milhões de euros, numa dívida total de 760 milhões, embora tenha reiterado por diversas vezes não ter tido "nenhum perdão de dívida, nem de juros" — frase que uma verificação de factos do Observador considera enganadora.
Desde 2015 que Vieira se tornou alvo de um interesse crescente das autoridades ao colecionar processos movidos em diferentes ritmos, com a maioria a aguardar por sentenças e alguns a cercarem as 'águias' na justiça desportiva.
No caso Saco Azul, em curso desde 2018, foi constituído arguido há mais de um ano, a par do administrador da SAD Domingos Soares de Oliveira, tendo em conta alegados crimes de fraude fiscal suscitados numa investigação da Autoridade Tributária.
Já em setembro de 2020, Vieira tornou-se um dos 17 arguidos na 'Operação Lex', ao ser acusado pelo Ministério Público de recebimento indevido de vantagem, em coautoria com o vice-líder das 'águias', Fernando Tavares, e o advogado do presidente do clube, Jorge Barroso.
Menos adiantado está o caso 'Mala Ciao', que gerou buscas na Luz em novembro do ano passado, até porque recaiu sobre os lisboetas a suspeita de controlar clubes de menor expressão através da transferência de atletas para garantirem vantagens desportivas.
Luís Filipe Vieira também é um dos principais visados neste inquérito, desencadeado em junho de 2018 e finalmente englobado num megaprocesso dedicado a e-mails que teriam exposto uma alegada teia de influências entre colaboradores das 'águias' e agentes desportivos.
Um ano antes, o FC Porto divulgou no Porto Canal mensagens de correio eletrónico do rival, sobre o qual levantou suspeitas de tráfico de influência e corrupção passiva e ativa, com o MP a pronunciar Paulo Gonçalves, antigo assessor jurídico da SAD do Benfica.
À investigação dos e-mails foi anexado outro caso independente, o dos vouchers, com origem numa denúncia em 2015 de Bruno de Carvalho, então presidente do Sporting, sobre ofertas do Benfica a árbitros, observadores e delegados antes dos seus jogos.
O processo desportivo foi arquivado há três anos, mas prossegue na justiça desde 2017, ano que precedeu a operação 'E-toupeira', relativo ao acesso indevido a processos com envolvência do Benfica e até de clubes rivais, tendo a SAD sido ilibada em sede de instrução, enquanto Paulo Gonçalves e dois funcionários judiciais vão a julgamento.
A título pessoal, Luís Filipe Vieira viu ser arquivadas em abril as acusações de burla qualificada, falsificação de documentos e branqueamento num processo ligado ao BPN, à imagem do caso da transferência de Pedro Mantorras do Alverca para a Luz, em 2007.
Já o cadastro judicial deriva de 1993, quando enfrentou 20 meses de prisão por ter roubado um camião nove anos antes, embora duas leis de amnistia lhe tenham valido o perdão total das penas — embora ainda esteja implicado, indiretamente, na operação 'Porta 18', associada ao tráfico de estupefacientes num veículo do Benfica pelo seu ex-motorista José Carriço.
Os processos são muitos, mas só este último levou aquilo que ninguém já acreditava ser possível: a saída de Luís Filipe Vieira do Benfica.
Momento de amargura
A investigação que envolve negócios e financiamentos superiores a 100 milhões de euros, com prejuízos para o Estado, SAD do Benfica e Novo Banco levou a que o dirigente desportivo tivesse suspendido, primeiro, as funções como presidente dos encarnados, e, depois, derrotado, a renunciar à presidência das águias após a direção do clube lhe ter dado 30 dias para provar que, apesar da prisão domiciliária que cumpria à data, podia exercer as funções no conselho de administração do Benfica.
Vieira escolheu sair pelo próprio pé, mas nem isso o fez sentir menos humilhado. Prova disso é a conversa que o seu advogado, Manuel Magalhães e Silva, revelou ter tido com ele na esquadra da PSP de Moscavide após este — ainda que de forma interina e antes do histórico dirigente ter saído definitivamente do clube — lhe ter contado que Rui Costa, com poupa e circunstância no relvado onde acabou a carreira de jogador de futebol, assumiu a si a liderança do clube da Luz.
“Com um ar de amargura disse-me: 'Fizeram isso?'”, disse na altura Magalhães e Silva à TVI, após relatar o momento a Luís Filipe Vieira.
Quem podia, num exercício plenamente hipotético, uma semana antes, adivinhar que o homem que em outubro de 2020 tinha sido reeleito para um sexto mandato consecutivo, aquele que o próprio tinha assumido que ia ser o último à frente do Benfica, num percurso iniciado em outubro de 2003, quando rendeu Manuel Vilarinho, ia cair assim?
Afinal de contas, se Luís Filipe Vieira era atacado por muitos devido às teias da justiça, a verdade é que outros tantos, sobretudo aqueles que se lembravam da queda do Benfica às mãos de João Vale e Azevedo, enalteciam o trabalho e secundarizavam outras questões.
De Alverca ao Estádio da Luz
Luís Filipe Vieira tinha chegado à Luz em maio de 2001 na condição de diretor desportivo, concluindo uma década na presidência do Alverca, marcada pela subida da antiga II Divisão B até à I Liga e pela modernização do clube ribatejano.
Criado no Bairro das Furnas, em São Domingos de Benfica, estudou até à quarta classe, filiou-se nos rivais FC Porto e Sporting e variou o rumo profissional antes da vida próxima dos relvados, ao vender pneus e criar empresas no setor imobiliário e na construção civil.
Eleito seis dias depois da inauguração do novo Estádio da Luz, Vieira beneficiou da credibilidade institucional reposta por Manuel Vilarinho, após o mandato turbulento de Vale e Azevedo, e fez recuperar um Benfica moribundo na viragem do milénio.
O regresso à estabilidade financeira e competitividade desportiva ficou expresso na conquista de sete campeonatos nacionais de futebol, três taças de Portugal, sete taças da Liga e cinco supertaças Cândido de Oliveira, intercaladas com duas finais da Liga Europa perdidas.
Além da melhor década das modalidades, os lisboetas construíram dois pavilhões, uma piscina, o Museu Cosme Damião e o centro de estágios do Seixal, pilar onde crescem talentos, que já renderam quase 480 milhões de euros e viabilizaram sete anos seguidos de lucros.
Só que esse vigor financeiro não foi sinónimo de 'pentacampeonato' e encarou fracassos sucessivos na fase de grupos da Liga dos Campeões, que o Benfica falhou em 2020/21, quando fez regressar o treinador Jorge Jesus, seduzido por um investimento de 105 milhões de euros, sem acrescentar títulos e deixar de somar polémicas diretivas, judiciais e reputacionais.
Depois de Luís Filipe Vieira ter anunciado a suspensão de funções "como presidente do Sport Lisboa e Benfica, bem como de todas as participadas do clube", a direção do Benfica reuniu-se e o vice-presidente Rui Costa acabou por assumir a presidência do clube, bem como a liderança da SAD 'encarnada’ — em entrevista à TVI, explicou que senão tivesse assumido cargo estaria a cometer um ato de cobardia.
Incertezas e eleições
Em plena pré-temporada e a pouco menos de um mês da disputa das pré-eliminatórias da ‘Champions’, a prisão domiciliária de Luís Filipe Vieira afigurava-se um duro revés na estratégia desportiva e financeira das ‘águias’, sobretudo tendo em conta aquilo que aconteceu no verão de 2020, quando o Benfica foi eliminado pelo PAOK.
Mas Vieira não deixou só incertezas para o futuro do clube, deixou também de herança um acordo entre o seu velho amigo José António dos Santos, mais conhecido como Rei do Frangos, com o investidor norte-americano John Textor para a venda de 25% das ações do Benfica — acordo esse que está suspenso até ao final das eleições que agora se avizinham.
Porém, não demorou muito até que a liderança de Rui Costa viesse a ser contestada. Uns acusando-o de uma espécie de golpe de estado, outros questionando a integridade de quem esteve tantos anos ao lado de Vieira e outros pedindo a legitimidade dos votos.
As eleições marcaram-se para este sábado, dia nove de outubro. Se num primeiro momento Rui Costa quis tratar de confirmar o apuramento para a Liga dos Campeões e arrumar o início de temporada, segundo sugeriu, iria depois então confirmar aquilo que se esperava, ou seja, de que será candidato.
"Foi no Benfica que me fiz homem e vivi os melhores momentos da minha vida. Este é um dos momentos mais desafiantes da história do clube e eu jamais poderia deixar de responder a esta chamada", justificou.
Antes, já Francisco Benitez, líder do movimento Servir o Benfica, tinha anunciado a candidatura à presidência dos ‘encarnados’, depois de nas eleições anteriores ter desistido para apoiar João Noronha Lopes.
Todavia, quem decidiu ficar de fora desta corrida eleitoral foi precisamente Noronha Lopes.
"Candidatei-me para lutar por um Benfica mais transparente e denunciei os vícios do ‘vieirismo’, e dos riscos que o clube corria. O que se passou desde aí confirmou o que eu tinha dito. A história deu-me razão", disse, antes de anunciar, visivelmente abatido, que não se recandidata à presidência do clube ‘encarnado’.
Noronha Lopes assumiu que ponderou recandidatar-se em função das graves circunstâncias que rodearam a saída de Luís Filipe Vieira, mas fortes razões familiares e profissionais não permitiram que o fizesse, naquela que foi "uma das decisões mais difíceis" da sua vida.
No entanto, esse facto não o inibiu de criticar o processo eleitoral em curso, sem ter sido aprovado, como devia, o regulamento eleitoral, sem se saber em que circunstâncias vai decorrer o voto físico ou como vão decorrer os debates na Benfica TV, sem que esteja garantido o acesso aos cadernos eleitorais de forma igualitária por todos os eventuais candidatos.
"Não é pelo ato eleitoral ser cedo demais, é por ser à pressa e sem conhecimento das regras de como vai decorrer. Ora, isto não sugere uma mudança. Quem faz parte do passado não tem condições para ser uma solução para o futuro", disse Noronha Lopes, numa alusão direta a Rui Costa.
No sábado o Benfica terá um novo presidente e a expectativa será para perceber o quão distante ele será de Luís Filipe Vieira para conseguir tirar o clube da rota dos constantes processos e poder-se focar naquele que foi o grande objetivo que Vieira nunca conseguiu: um título europeu para a equipa principal de futebol que, curiosamente, tem brilhado neste início de época.
O que defende cada uma das candidaturas?
Quase um ano após a recondução para um sexto mandato seguido do mais duradouro presidente da história das ‘águias’, que esteve no cargo durante cerca de 18 anos, os associados voltam às urnas para votar nos corpos sociais para o quadriénio 2021-2025.
Rui Costa (lista A) concorre pela primeira vez à liderança do Benfica e tentou ‘blindar’ ao máximo a preparação da época 2021/22, mas, apesar do fulgor da equipa de futebol, líder isolada da I Liga e com pujança na Liga dos Campeões, nunca escondeu a intenção de ser legitimado pelos sócios, com a demissão em bloco dos corpos sociais, em 1 de setembro, a acelerar a marcação do ato eleitoral.
Sob o lema ‘Por Todos. Com Todos. Benfica’, o antigo diretor desportivo almeja plantéis competitivos no futebol, com orçamentos sustentáveis e um máximo de 25 atletas, além de tetos salariais nos primeiros contratos seniores e na massa salarial global do plantel.
A afirmação da grandeza europeia do clube estende-se ao futebol feminino, secção que poderá ser transferida para a futura Cidade Desportiva das modalidades, onde será construído um centro de alto rendimento, visando a conquista anual de 10 títulos, para lá da criação da Casa do Sócio na Luz e da expansão do centro de estágios do Seixal.
Rejeitando o epíteto de “príncipe herdeiro” de Luís Filipe Vieira, a antiga ‘glória’ das ‘águias’ nos relvados (1991-1994 e 2006-2008) mantém na direção os ‘vices’ Fernando Tavares, Domingos Almeida Lima, Sílvio Cervan, Jaime Antunes e Rui do Passo.
Com José Eduardo Moniz e João Varandas Fernandes de saída, entram Luís Mendes, José Gandarez e Manuel de Brito, filho do ex-líder do Benfica Jorge de Brito, enquanto Fernando Seara, ex-autarca da Câmara de Sintra e deputado parlamentar, foi incitado a presidir a Mesa da Assembleia-Geral e Fernando Fonseca Santos o Conselho Fiscal.
A lista de Rui Costa recebeu o apoio do grupo de sócios ‘Benfica Bem Maior’, liderado pelo antigo ‘vice’ João Braz Frade, que se opunha a Luís Filipe Vieira.
Do outro lado da corrida está Francisco Benitez (lista B), principal rosto do movimento ‘Servir o Benfica’. O empresário, de 57 anos, candidatou-se mediante seis condições, que a Mesa da Assembleia-Geral, liderada por António Pires de Andrade, aprovou no regulamento eleitoral, com destaque para a adoção do voto físico em urna em Portugal continental.
Pedro Casquinha, Carlos Lisboa Nunes, Bernardo Correia, Pedro Brinca, José Miguel da Luz e Victor Conceição serão vice-presidentes, ao passo que João Pinheiro e Nuno Leite são escolhas para a Mesa da Assembleia-Geral e o Conselho Fiscal, respetivamente.
Criticando Rui Costa por representar um “símbolo do ‘vieirismo’” desde que se despediu dos relvados, Francisco Benitez pretende remodelar a composição do Conselho de Administração da SAD e da estrutura para o futebol, que passará a ter administradores, diretor desportivo, ‘team manager’, diretor de prospeção e responsável pela formação.
Se a secção de futebol feminino vai ser integrada na SAD e deslocada para o Seixal, o râguebi mudará para o relvado secundário da Luz e haverá novas equipas de futebol e voleibol de praia e de eSports, enquanto o local de fundação do clube será recuperado.
Consultar os sócios sobre a designação de estádio e centro de estágio e a posição do clube quanto à centralização de direitos televisivos, bem como fazer auditorias regulares, são outros objetivos do empresário, que desistiu nas últimas eleições para apoiar João Noronha Lopes, candidato derrotado por Luís Filipe Vieira e ausente da atual corrida.
Pontos comuns às duas listas passam pela diminuição do número de jogadores sob contrato, crescente utilização da formação, estudo do regresso do ciclismo, reforço do projeto olímpico, renovação da Luz, relançamento da BTV ou uma revisão estatutária.
As candidaturas, ponto por ponto
Francisco Benitez
- Diminuição do número de jogadores do plantel principal
- Reestruturação da composição do Conselho de Administração da SAD
- Definição de critérios claros na atribuição de prémios na SAD
- Nomeação de um Director Geral para todas as modalidades
- Inclusão no Orçamento Anual das despesas e rendimentos previstos para cada modalidade
- Proposta de revisão dos estatutos vigentes desde 2010
- Criação da figura de Provedor do Adepto
- Promoção de uma auditoria à SAD do Clube
- Garantia de transmissão dos jogos das equipas do clube na Benfica TV
- Alteração dos critérios editoriais da Benfica TV
Rui Costa
- O Benfica deve ser dos sócios e dos adeptos
- Foco na afirmação e liderança desportiva, na valorização da formação e na sustentabilidade do clube
- Futebol e modalidades como principais bandeiras
- Um clube mais eclético com destaque para a procura de um parceiro para o ciclismo
- Ser uma referência institucional, social, desportiva, económica e de modernidade
- Rigor, clareza, e democratização do clube
- Liderança nos movimentos de transformação e modernização, sem abdicar da salvaguarda dos seus interesses
- Integração de ex-atletas na construção de equipas
- Evolução das infraestruturas desportivas do clube
- Afirmação nacional e internacional
As eleições do Benfica decorrem no sábado, das 08:00 às 22:00, no Pavilhão n.º 2 do Estádio da Luz, em Lisboa, e em 24 casas do clube de norte a sul do país, sendo que os sócios residentes nos Açores, na Madeira ou no estrangeiro irão votar por via ‘online’.
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