Na passada noite de 10 de outubro, os Estados Unidos jogavam a última ronda da fase decisiva do apuramento entre nações da CONCACAF, em Trinidad e Tobago. Os anfitriões só iam cumprir calendário, e os norte-americanos até poderiam perder e garantir a qualificação, com uma feliz conjugação de resultados no Honduras-México e no Panamá-Costa Rica. Ter chegado a esta situação limite, numa qualificação de formato hexagonal onde os competidores diretos são claramente inferiores, já era, por si só, preocupante. Porém, um empate na casa do último classificado do grupo parecia perfeitamente ao alcance para uma equipa que conta com Tim Howard, Michael Bradley, Christian Pulisic, Jozy Altidore, entre outros. 2-1 a favor dos tobaguenhos foi o resultado final, e nem os resultados dos parceiros continentais safaram o escândalo.
“Não podemos arranjar desculpas. Falhámos hoje”, rematou o seleccionador Bruce Arena, que apresentou entretanto a sua demissão. “Aquele autogolo vai-me assombrar para sempre. Desapontámos uma nação inteira”, revelou desolado Omar Gonzalez, autor involuntário do primeiro tento dos opositores. O guardião Tim Howard pouco ou nada conseguia dizer aos jornalistas no final do encontro, concentrado sobretudo em conter as suas próprias lágrimas.
Nas televisões norte-americanas, ressoavam as críticas à equipa, sendo que as mais fortes provinham de antigos internacionais. Cobi Jones falou em “falta de esforço”, ao passo que Marcelo Balboa utilizou a expressão “falta de coração”. Taylor Twellman não focou a sua insatisfação nos jogadores, preferindo colocar a questão de um ponto de vista mais global, atacando o plano estratégico desenhado pela USSF (United States Soccer Federation), entidade organizadora do futebol norte-americano, e a incompreensível arrogância de quem toma decisões.
O que aconteceu entre o Mundial de 2014 e 2018?
Uma derrota apenas não é suficiente para justificar o falhanço norte-americano no caminho para a Rússia. O que aconteceu em Trinidad e Tobago foi somente o culminar de um período periclitante desta seleção, que nunca foi alvo da devida análise pelas entidades responsáveis. Pairou sempre um clima de positivismo injustificado em redor da equipa, ainda desde os tempos de Jürgen Klinsmann.
A eliminação dos norte-americanos no último Campeonato do Mundo diante da Bélgica acabou por ser elevada positiva e incompreensivelmente à última potência, graças ao recorde de defesas conquistado por Tim Howard, quando essas mesmas defesas foram apenas reflexo da fragilidade extrema da equipa. Seguiram-se quatro anos de inconsistência, indefinições e desilusões.
Em 2015, o quarto lugar obtido na CONCACAF Gold Cup, após perder em casa diante da Jamaica e do Panamá, deveria dar, segundo a lógica, um forte sinal de alerta para o que poderia vir. Contudo, este fracasso nem serviu para dispensar Klinsmann, que já havia esgotado o seu ciclo no comando da selecção há um ano.
Começou a qualificação para o Mundial, e logo com estrondo. Uma derrota inenarrável no campo da Guatemala por 2-0. Só que algumas goleadas impostas a selecções menos capazes, e o quarto lugar obtido na Copa América Centenario, devolveram o cenário ilusório ‘zen’ a uma seleção que continuava desprovida dos instrumentos necessários para se bater contra adversários de calibre semelhante ou superior. Meses depois viajaram até à Costa Rica, para saírem de lá goleados por 4-0. Ponto final oficial na era Klinsmann, e Bruce Arena foi chamado de imediato para tentar arrumar a casa e confirmar o apuramento, com oito partidas por disputar.
Havia tempo e condições, mas nem assim Arena conseguiu inverter totalmente a situação. Empatou no México, Panamá e Honduras, e perdeu em casa diante da Costa Rica. Numa nota positiva isolada, fica a conquista da Gold Cup no último Verão.
Arrogância e formação ineficaz
Apontar o dedo a Klinsmann, a Bruce Arena, ou mesmo aos jogadores envolvidos na qualificação, é demasiado redutor. O problema do futebol norte-americano tem origens estruturais, como o ex-internacional Claudio Reyna tentou explicar numa entrevista recente. “Não temos as atitudes corretas na forma como tratamos o futebol neste país, em comparação com o resto do mundo. Tu vais a qualquer clube do país, e falas com os responsáveis pelas camadas jovens, e eles têm todas as respostas, sabem tudo. Têm a tendência para serem arrogantes, não querem ouvir, e não percebem que aquilo que estão a fazer não é o mais correcto”.
Vários fatores apontam para isso mesmo, sobretudo quando nos referimos ao futebol jovem nacional. Os Estados Unidos falharam a qualificação para as duas últimas edições dos Jogos Olímpicos, e poucos são os jovens jogadores formados no país de origem que conseguem assumir-se na seleção A. Por outro lado, a qualidade dos futebolistas que entram na Major League Soccer através das universidades de elite não têm evoluído positivamente, como se esperaria. Com tanto investimento e recursos envolvidos, há algo que está claramente a falhar neste processo de recrutamento e filtragem dos melhores futebolistas nacionais.
Landon Donovan, a maior figura da história do futebol norte-americano, levanta essa questão. “Penso que existem várias razões para que estejamos a perder os melhores, mas a verdade é que estamos a perder muitos desses miúdos. Isso não deveria ser assim num país com este tamanho, com os recursos que temos, onde os jovens estão a ser dispensados por qualquer razão, seja ela o estatuto socioeconómico, a raça, a religião, ou a proximidade com o clube”.
Ao mesmo tempo, Donovan salienta que esta não é a altura para distribuir culpas, mas sim para reavaliar todas as dimensões do problema, e enfrentá-lo, sem recear as mudanças. A decisão mais breve será a de designar um novo seleccionador nacional, sendo que a natural especulação já começou, e vários nomes estão em cima da mesa, sobretudo norte-americanos.
Mas de que servirá a escolha de um treinador, quando os problemas do futebol nos Estados Unidos têm uma origem mais profunda? Haverá jogadores de qualidade (para além de Pulisic), capazes de substituir o grupo alargado de “trintões” credenciados que vão deixar de representar as cores nacionais num futuro muito próximo? Como seleccionar os jovens mais talentosos do país, sem elitizar o processo de recrutamento, nem abusar da arrogância? Estas são as respostas que os norte-americanos terão de procurar afincadamente, caso queiram recuperar do golpe, e afirmar-se verdadeiramente a nível internacional. Senão, o futebol será sempre o desporto do futuro nos Estados Unidos, como o mítico apresentador David Letterman uma vez disse.
António Pereira Ribeiro é editor da Major League Soccer para o Fair Play, e acompanha tudo o que se passa nos relvados norte-americanos.
O Fair Play é um projecto digital que se dedica à análise, opinião e acompanhamento de diversas ligas de futebol e de várias modalidades desportivas. Fundado em 1 de Agosto de 2016, o Fair Play é mais que um web site desportivo. É um espaço colaborativo, promotor da discussão em torno da actualidade desportiva.
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