O génio de Modric não se vê por golos ou assistências, mas sim pelo requinte que conferiu ao meio-campo, na montagem da ponte entre a defesa e o ataque, na aplicação de pressão à posse de bola do adversário, no comando de linhas de apoio, na leitura tanto ofensiva como defensiva, na genialidade em dar outra forma e contorno às equipas por quem jogou.

Durante anos a fio, a FIFA, e quem votava nos prémios, confundiu o Melhor do Mundo com aquele que marcava mais golos, ou fazia mais assistências ou ainda com quem conquistava mais títulos e recordes no espaço de uma época. Atenção que estas linhas gerais não estão de todo erradas, o Melhor deverá estar pelo menos numa destas categorias e, caso exista mais do que um nessa situação, outros fatores importantes entrem em cena para o desempate e, consequente, decisão final.

Diz-me com quem andas, dir-te-ei em quem votas

Seleccionadores, jornalistas, capitães de seleções e adeptos (estes com um poder de 25%) escolhem o top-3 de cada categoria dos prémios The Best da FIFA e a soma dos votos atribuiu um posicionamento a cada um dos nomeados. É um sistema fácil, apesar de não estar isento de influências externas, uma vez que os capitães e selecionadores dão forma ao seu voto pela via da familiarização com um jogador ou treinador, trocando o Melhor do Mundo pelo Melhor colega, pupilo ou pelo puro "patriotismo".

A favor dessa situação há o voto atribuído pelo capitão da Holanda e jogador do Liverpool, Virgil van Dijk que apostou em Mohamed Salah para melhor do Mundo. Cristiano Ronaldo atribuiu o seu voto, dedicado ao primeiro posto deste top, a Raphaël Varane antigo companheiro no Real Madrid e que somou, no verão, o título de campeão do mundo ao de tricampeão da Europa conquistado ao serviço dos merengues.

Em oposição a este tipo de votação há dois exemplos claros: Carlos Queiroz e Gareth Southgate. O seleccionador do Irão não votou em Cristiano Ronaldo, preferindo Luka Modric, Kylian Mbappé e Eden Hazard (5, 3 e 1 votos respetivamente), recordando que estes votos do Irão são decididos por uma deliberação democrática com os treinadores da liga iraniana. E Gareth Southgate, o homem que guiou a Inglaterra a um improvável 4º lugar, não deu qualquer voto aos seus comandados, optando por Modric, Varane e Hazard, o que prova que há uma identidade humana por detrás de um treinador.

Ou seja, Carlos Queiroz não é obrigado a votar em Cristiano Ronaldo (ou a influenciar os seus pares iranianos nesse sentido) só porque é português ou por ter já guiado a selecção Nacional, assim como Southgate não tem que votar em nenhum jogador de terras de Sua Majestade se não sente que mereceram tal voto (aqui também pode ser visto como uma forma de preservar a equipa e a união de grupo, não destacando uma individualidade).

Contudo, notou-se um clima estranho em redor de Cristiano Ronaldo durante o ano de 2018, com a promoção de imagem de alguns jogadores para tentar ombrear com o avançado português: Eden Hazard, Luka Modric, Harry Kane, Neymar Jr ou Mohamed Salah foram empurrados pela imprensa e colegas de equipa ou ex-jogadores no sentido de que este ano era o ano deles e que mereciam o prémio, apesar de reconhecerem que Cristiano Ronaldo continuava a dominar na Liga dos Campeões ou que Lionel Messi foi importante, senão decisivo, na conquista da La Liga. Montou-se um ambiente de que era a altura certa para "tirar" os extraterrestres da redonda do seu pedestal e colocar uma nova figura no seu lugar, pelo menos durante um ano.

Neymar Jr caiu rapidamente desse pico quando o Paris-Saint Germain saiu prematuramente da Liga dos Campeões ou quando o Brasil foi eliminado pela Bélgica no Campeonato do Mundo. Harry Kane não foi genial na Rússia, não tendo uma avaliação sensacional no final. Eden Hazard teve um ano "encolhido" no Chelsea (com o belga a apontar o dedo a Antonio Conte) mas realizou um Mundial de bom nível, só que pareceu estar sempre na sombra de Kevin De Bruyne (ganhou a Premier League, em que foi um dos melhores citizens e foi um dos atletas que carregou a Bélgica até ao 3º lugar) nesse processo. E Salah acabou por não levantar qualquer título, realizando um Mundial amargo onde ainda apontou dois golos, mas abaixo das expectativas devido à tal lesão complicada sofrida na final da Liga dos Campeões.

Quem resistiu? Luka Modric. É imperial que os adeptos que gostam de futebol reconheçam o valor do croata e o seu "peso" tanto no Real Madrid como na Croácia. Sem ele, a seleção os axadrezados não tinha feito História ao atingir a sua melhor classificação de sempre no futebol. Modric foi a "ferramenta" que pôs todo o sistema a rodar, movendo as peças como quem quer fazer xeque-mate com calma e tempo.

A justiça ao croata, que não foi feita aos reis de Espanha ou ao príncipe da Holanda

De uma forma curiosa, podemos comparar Modric a Iniesta, um dos grandes obreiros do sucesso do FC Barcelona e da Roja nos últimos 10 anos. Todavia, ao contrário de Andrés Iniesta ou até de Xavi, Modric conseguiu meter-se no meio de Cristiano Ronaldo e Messi, somando um título que nenhum dos espanhóis vai alguma vez poder ter no seu palmarés.

E talvez esteja aí o maior "crime" da FIFA nestes prémios no passado: não ter conferido o título de Melhor do Mundo a jogadores como Andrés Iniesta ou Wesley Sneijder. Claro é o exemplo do holandês. Em 2010, o médio-ofensivo foi um dos grandes "obreiros" do sucesso internacional do Inter de Milão de José Mourinho, levando os italianos à conquista da 'Champions'. Ganhou a Serie A e a Liga dos Campeões, para depois no Mundial 2010 levar a selecção holandesa à final da competição, numa altura em que Lionel Messi e Cristiano Ronaldo eram "jovens" e com feitos prontos a desafiar nomes como de Diego Maradona ou Pelé na competição máxima de seleções.

Ambos fracassaram e no final a Holanda chegou à final diante da Espanha de Xavi e Iniesta. Perante o domínio avassalador da formação espanhola, a Holanda sucumbe e Sneijder acaba como vice-campeão Mundial. Por incrível que pareça, o holandês nem no top-3 ficou nos prémios FIFA, terminando atrás de Lionel Messi (22%), Andrés Iniesta (18%) e Xavi (14%), ficando totalmente de lado a influência do mágico formado no Ajax.

Não foi suficiente para destronar Lionel Messi. Em oposição, para Xavi e Iniesta os seis anos de domínio da Espanha - que nunca coincidiram com a conquista da Liga dos Campeões na mesma época (ambos ganharam Liga dos Campeões em 2005/2006, 2008/2009, 2010/2011 e 2014/2015) - foram insuficientes para alcançarem o primeiro lugar do pódio. Mas perante o que Xavi e Iniesta mudaram no paradigma do futebol mundial, da categoria que conferiam às suas equipas e dos bons números que apresentavam, o facto de nunca terem ganho uma Bola de Ouro (o prémio The Best já ficou fora do "tempo" de ambos) é a demonstração que algo mudou com Luka Modric.

As condições criadas para o croata não foram as mesmas para Wesley Sneijder, Andrés Iniesta e Xavi Hernández, que acabaram por ficar à sombra dos monumentais Cristiano Ronaldo e Lionel Messi.

Ironicamente, tanto Messi como CR7 mereciam talvez ter ganho tanto pelos números obtidos em golos e assistências - por incrível que pareça, Cristiano Ronaldo terminou com tantas assistências como Modric - e pelos títulos.

No final de contas, a presença da Croácia na final contou maisdo  que ser Bota de Ouro e vencedor da La Liga ou de quem foi o melhor marcador da Liga dos Campeões. Deu-se a Luka Modric, aquilo que os vários protagonistas do futebol mundial não tiveram coragem para dar a Xavi, Iniesta ou Sneijder. E ao fazer-se isso, gerou-se um burburinho ensurdecedor à validade dos prémios ou da forma como são escolhidos os nomeados e vencedores.

Salah leva o Puskas... com um golo quem o "P" merece

Mas o barulho mais desconcertante foi para a eleição de três prémios que convergiram em dois setores: avançados e guarda-redes. No trio do 11 do Ano paraa  FIFA, Mohamed Salah, que teve um ano extraordinário, acabou por não ter lugar no trio Hazard-Ronaldo-Mbappé. Super goleador, futebol imenso, magia a triplicar, Salah parecia bem cotado para fazer o improvável e ganhar o The Best, mas para isso precisava que o Liverpool tivesse ganho a Liga dos Campeões e que o Egito chegasse a uma fase mais avançada do Mundial.

créditos: AFP PHOTO / Paul ELLIS

Como nenhum destes dois acontecimentos teve lugar, o egípcio não ganhou. Mesmo assim terminou no top-3 do The Best, atrás de Luka Modric e Cristiano Ronaldo. Mas esse feito histórico, de um jogador egípcio de ficar no pódio dos Melhores do Mundo, de nada lhe valeu na hora de formar o Melhor 11... Salah foi "esquecido" depois de uma época extraordinária. Levou para casa o prémio consolação, pelo golo marcado frente ao Everton... ironicamente, um dos golos mais "comuns" do egípcio em 2017/2018.

Infelizmente, o Prémio Puskas funciona através de votação online e não de analistas ou especialistas na matéria. Ou seja, bastou que metade da população do Egito votasse em massa para ganhar Salah.

Cristiano Ronaldo ficou em 2º com o golo de bicicleta contra a Juventus e Giorgian De Arrascaeta em 3º pelo tento feito frente ao América no Mineirão.

Por fim, a discussão final gerou-se à volta do Guarda-Redes do Ano e do guarda-redes que entrou no 11 do Ano. Se Thibault Courtois foi o vencedor por unanimidade do painel de especialistas (Vitor Baia, Gordon Banks, Jorge Campos, Rinat Dasaev, René Higuita, Peter Schmeichel eram alguns do nome do júri) faria todo o sentido que entrasse no 11 do Ano. No entanto foi David De Gea que acabou por merecer esse título, apesar de ter sido um dos piores da Espanha no Mundial. O espanhol foi agraciado com a nomeação depois de um ano excelente pelo Manchester United sem que, no entanto, tivesse ganho nada.

Ou seja, os prémios FIFA acabaram por ter dois guarda-redes como os melhores, numa clara discussão interna de quem merecia lá constar. Nestes prémios The Best FIFA 2018 houve uma tentativa de agradar a todos os fãs do deporto rei, de tentar justiçar Iniesta-Xavi-Sneijder através de Modric, de dar mais democracia a um prémio altamente fácil de "comprar" e de uma confusão geral no 11 do Ano.

Por outro lado, tentou-se abrir outro capítulo em termos de prémios fugindo ao império traçado por Messi e Ronaldo, sem que esse caminho fosse aberto de uma forma limpa e genial, numa tentativa de Gianni Infantino fugir à sombra de Sepp Blatter em termos do que faz um jogador ser o Melhor do Mundo (se são os títulos, números ou influência). Luka Modric mereceu ganhar? Mereceu. Mas Cristiano Ronaldo não merecia também?

Um dos melhores golos de Salah a época passada... não mereceria este a nomeação?