A democracia e os seus instrumentos essenciais são uma coisa fantástica enquanto produzem resultados com os quais concordamos. Mas quando vence o "outro lado" o povo passa de inteligente a estúpido, a lucidez foi vencida pelo medo e a seriedade perdeu para o populismo.
É sempre mais fácil arrumar a questão desta forma e seguir em frente, do mesmo modo, até à próxima batalha eleitoral. O que dá trabalho e demora tempo é identificar as causas do falhanço, entendê-las e tentar alterá-las.
O resultado do referendo britânico foi um abalo que apanhou muita gente de surpresa. As últimas sondagens tinham-nos dito que o "ficar" estaria à frente do "sair" por uma margem que se estava a consolidar. Mas não foi assim.
Entristece-me a potencial saída do Reino Unido da União. Sem eles, a Europa não é a mesma coisa. Não só em questões como a dimensão, o poder económico do bloco, o contributo para a defesa comum ou a diplomacia mas, também, porque a voz crítica e desconfiada que os britânicos sempre fizeram questão de manter no palco europeu é, em si mesma, um contributo positivo.
Não me parece que alguém ganhe com a saída dos britânicos. Nem os próprios, já que ao estarem fora do euro mantêm já um elevado grau de liberdade nas políticas económicas, monetárias e orçamentais.
Mas é mesmo assim. Foi dada a voz ao povo e o povo disse de sua justiça numa decisão de enorme importância que, para muitos, tem contornos trágicos.
Nos últimos dias li e ouvi muita gente diabolizar David Cameron por ter convocado o referendo, vendo aí o pecado original deste tema. Certamente que se os 52%-48% (arredondados) tivessem sido ao contrário, o mesmo Cameron estaria a ser elogiado pelos mesmos por ter vencido e arrumado, por muitos anos, a questão sempre latente no Reino Unido da permanência na UE.
A utilização dos instrumentos de democracia directa, como o referendo, é das mais complexas e sensíveis.
A teoria e o politicamente correcto dizem-nos que quanto mais, melhor. Por princípio, é mais legítimo chamar milhões de cidadãos a tomar uma decisão do que deixá-la nas mãos de umas escassas centenas de deputados que foram eleitos pelo mesmo voto popular mas que podem, em dossiers concretos, fazer um julgamento diferente do da base popular que os elegeu.
Mas, por outro lado, transformar a democracia numa sucessão de referendos levar-nos-á a um mundo melhor? Tenho dúvidas.
Li por estes dias nas redes sociais um comentário com o qual concordo (lamento, mas já não consigo identificar o autor). Dizia, sobre a utilização de referendos, que se em Portugal se consultassem os eleitores sobre a introdução da pena de morte ou o acolhimento de imigrantes e refugiados talvez tivessemos uma surpresa do "povo dos brandos costumes". É muito possível que sim, que uma maioria se pronunciasse a favor da primeira e contra o segundo. E isso seriam, a meu ver, dramáticos retrocessos civilizacionais.
O que para mim não faz sentido são consultas populares sobre direitos individuais que, quando exercidos por alguém, não interferem na liberdade alheia. Casamento entre pessoas do mesmo sexo e direitos associados, eutanásia, interrupção da gravidez até determinado período ou consumo de drogas leves devem, no meu entender, ser legislados no sentido de maximizar a liberdade e equiparar direitos sem me dar sequer a opção de interferir ou opiniar sobre as opções do meu vizinho. A vida dele é com ele. A minha é comigo.
Diferentes são os temas que dizem respeito à organização política do país que, de forma directa ou indirecta, interferem na vida de todos. O grau de envolvimento com a União Europeia, a regionalização ou mudanças profundas no sistema eleitoral são assuntos que a todos dizem respeito porque interferem com a organização da vida colectiva e com as instituições que a decidem e colocam em prática. Ao impacto destas ninguém escapa, para o bem e para o mal.
Mas, ainda assim, estes temas devem ser colocados a consulta popular? Isso terá mais a ver com as forças e fraquezas das lideranças políticas do momento do que com níveis de amor à democracia. Líderes fortes, com uma visão estratégica consolidada e com dimensão pessoal e política para suportar as consequências das suas decisões terão mais facilidade em decidir contra aquilo que são os sentimentos da opinião pública. Das lideranças políticas espera-se que estejam melhor habilitadas a tomar decisões complexas e muitas vezes duras, com longas listas de prós e contras, do que o cidadão médio. Foi assim que Helmut Khol fez a reunificação alemã e levou o seu país para o euro ou que Churchill optou por enfrentar Hitler.
Já as lideranças fracas tenderão mais a "chutar para referendo" as decisões que potencialmente dividam o país ao meio, onde o deve e haver da mercearia eleitoral não é claro. E fica sempre bem dizer que se dá "a voz ao povo".
Seja como for, o que não se pode nem deve é fazer a pergunta quando não se está disponível para aceitar todas as consequências de uma resposta. Voltando ao Brexit, é isso que tem acontecido demasiadas vezes na União Europeia, com a repetição de referendos até que produzam a resposta "certa". Essa é também uma das causas que afasta os cidadãos da Europa e repetir novamente o erro não só seria irónico como podia ser ainda mais trágico.
Outras leituras
- "Brexit" é o novo "o mundo mudou"? Claro que, em termos de comunicação política, é um óptimo pretexto para assumir a deparragem das previsões. Se tem grande ou pequeno impacto de facto é uma questão bem diferente.
- Tudo o que vá para além de uma sanção simbólica a Portugal, sem custo financeiro, por violação da meta do défice do ano passado será inaceitável. A menos que a Comissão Europeia queira brincar com o fogo.
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