No outro dia, Cristina Ferreira perguntou a Miguel Sousa Tavares o que era “blockchain. Em vez de dizer “não sei”, Miguel Sousa Tavares decidiu recorrer à técnica centenária da ars inveniendi, que é a forma erudita de dizer que ele pura e simplesmente inventou. A sua resposta, em 20 segundos, estava errada em pelo menos cinco aspetos, e não estava certa em absolutamente nenhum. É obra.

Aprendi a ter medo de dizer “não sei” na escola. Confessar a ignorância – que tanto poderia ser tida por falta de estudo ou falta de inteligência - causava-me arrepios de vergonha. Antes de me perguntar sequer se devia saber aquilo que me perguntavam, já eu pensava numa desculpa para o justificar, ou numa forma enviesada de responder sem denunciar a minha total falta de conhecimento.

Esse medo, que de tanto repetido se tornou traço de personalidade, acompanhou-me pelo curso de Direito, onde se revelou útil em orais e perguntas nas aulas práticas, e nos primeiros anos como advogado. Eu ter resposta para tudo tornou-se parte da minha identidade, tanto que, depois de uma pergunta no exame oral da Ordem dos Advogados me ter deixado completamente engasgado, o meu patrono fez questão de contar a toda a gente no escritório, em tom de galhofa, que tinha sido a primeira vez que me tinha visto sem palavras.

A sociedade aprecia pessoas de resposta pronta, com jogo de cintura para evitar o que não sabem respondendo ao que não lhes foi perguntado. É uma qualidade útil em políticos, em advogados, em comerciantes, em consultores e em todas as profissões cujo sucesso se mede, sobretudo, pela capacidade de obter a confiança do outro. Nós confiamos em quem sabe as respostas. E por isso eu aprendi a ter sempre “uma” resposta.

Há uns tempos, contudo, dei por mim a achar ridícula esta minha obsessão. Via-a em outros também: o jornalista-comentador a opinar sobre engenharia de materiais, o político-analista a falar de infecciologia, o humorista-empreendedor a discorrer sobre ciência climática.

Quase sempre presos na generalidade, porque quem não sabe do que fala não consegue sair dos lugares-comuns, e nalguns casos cometendo erros de palmatória. A certa altura, uma pergunta mais concreta quase que os desampara e suspende o discurso por meio segundo. Em vez de caírem, contudo, estes funambulistas da retórica logo arranjam uma artimanha para se manterem de pé sem confessarem ignorância. Missão cumprida: enganaram toda a gente.

Não são só os tudólogos na televisão. Somos quase todos assim. No programa do americano Jimmy Kimmel, há uma rubrica humorística que revela, na sua simplicidade, este traço humano de nos sentirmos obrigados a dizer qualquer coisa: um repórter, na rua, pergunta a opinião aos transeuntes sobre uma “notícia de última hora”, sempre falsa e absurda, e estes respondem fingindo estarem completamente ao corrente, e adicionando detalhes sobre onde estavam, o que pensaram, enfim: uma fantasia pegada, tudo para evitar o “não sei, não vi, não conheço” que os livraria do ridículo, sim, mas que os condenaria a um cinzentismo onde ninguém quer viver.

Outro exemplo: o comediante Aziz Ansari, no seu último especial de Netflix, “Right Now”, conta uma história sobre uma polémica com uma fotografia de uma pizza. A polémica, dizia ele à plateia, tinha dividido a internet entre aqueles que acreditavam que as rodelas de chouriço estavam dispostas em forma de suástica e aqueles que achavam a distribuição do chouriço na pizza absolutamente normal. Ansari pede à plateia que dê a sua opinião, por via de aplausos. Os aplausos, para ambas as hipóteses, são tímidos, mas audíveis. A plateia está dividida. Ele pergunta a um membro da plateia que aplaudiu uma das opções onde foi que viu a fotografia: “no New York Times ou no Washington Post?” O outro responde: “foi no Post”. E é aí que Ansari revela a sua farsa: “eu inventei isto tudo”; e, simultaneamente, expõe a farsa do público, que se disponibilizou a opinar sobre uma fotografia que nunca existiu. Conclui Ansari: “Vocês são o problema. Vocês acham que a vossa opinião é assim tão importante que até têm de opinar sobre coisas que nem existem?

Não precisamos de procurar muito para encontrar situações em que nós próprios cometemos o erro de fingir saber daquilo que não sabíamos. “Já ouviste falar do projeto X?”, “já viste o programa Y”, “o que é que achaste do discurso da pessoa Z”? E a estas perguntas inócuas, sem qualquer ameaça real de nos vermos tidos por burros, respondemos tantas vezes “sim”, “gostei”, ou pior ainda “não gostei”, “achei fraco”, “achei ofensivo”.

Apercebi-me que a minha incapacidade para afirmar, sem qualquer tipo de vergonha, que ignorava uma resposta, uma solução, um contexto, uma causa, estava a prejudicar a minha vontade para aprender coisas novas, a deixar-me menos interessado no estudo e na investigação, mais preguiçoso e menos confiável. Afinal, se eu não afirmo a minha ignorância, ninguém me elucida; e passando pela situação incólume, nem sentia já vontade de me ir informar.

Eu próprio comecei a desconfiar de mim: passei tantas vezes pelos pingos da chuva com a minha ignorância, que comecei a perguntar-me se eu de facto saberia alguma coisa. A síndrome do impostor – que muita gente reclama ter – alimenta-se muito desta ideia de que os outros não fazem ideia das coisas que nós não sabemos. Mas isso é impossível. Nós somos, e seremos sempre, ignorantes em relação à esmagadora maioria do conhecimento disponível. Sabemo-lo porque sabemos que o conhecimento que a humanidade já revelou é extraordinariamente vasto, complexo, atravessa campos científicos distintos, requer capacidades e ferramentas diversas e é humanamente impossível dominar senão uma pequeníssima quantidade, e conhecer levemente um conjunto alargado, mas finito de coisas.

Qualquer ser humano, por mais brilhante e instruído, não sabe a maioria das coisas. Dizer “não sei” devia, por isso, ser tão natural como tossir.

Não quero com isto dizer que somos todos ignorantes por igual; nem que o facto de ninguém saber tudo nos exime de dever saber certas coisas. O meu ponto não é um de desvalorização do conhecimento, ou de apologia da ignorância. É precisamente o oposto: acho que quando omitimos a nossa ignorância, fingindo domínio de um tema, estamos a desrespeitar quem nos ouve e confia em nós; a desrespeitar quem verdadeiramente trabalhou para adquirir conhecimento nessa área, muitas vezes com grande custo pessoal; e a desrespeitar a própria busca pelo conhecimento e pela verdade.

A obsessão em omitir o “não sei” é uma obsessão perniciosa, pouco ética, criadora de fragilidades e inseguranças, de vergonhas e obsessões. A possibilidade de obter conhecimento em três segundos no Google, ao invés de tornar mais banal essa confissão, fez de nós autómatos do conhecimento: ao entrarmos em contato com um termo desconhecido durante uma conversa, a nossa mão dirige-se ao telemóvel, os nosso dedos ordenam uma pesquisa, e ainda o nosso interlocutor não se calou e já nós aprendemos o suficiente para podermos tecer de seguida uma resposta suficientemente credível para não passarmos por ignorantes.

Passei a dizer “não sei” com frequência, em conversas com amigos, nalgumas entrevistas, até profissionalmente. Ainda sinto a necessidade de justificar essa ignorância (“não é a minha área”, “ainda não tive tempo para ver”), mas sinto-me menos ansioso antes de falar em público, menos exposto ao ridículo de me descobrirem o logro e mais confiante na forma como me apresento. Procuro sempre saber aquilo que tenho de saber: os mínimos de informação e cultura para exercer ativamente o meu papel de cidadão, e tanto quanto possível para ser um excelente profissional.

Mas dizer “não sei” passou a estar no menu. É um dois em um: enquanto me protejo da ansiedade de não saber a resposta, reconheço aos outros a capacidade de me iluminarem, e dou-lhes oportunidade para isso.
Em termos profissionais, descobri que dizer aos clientes “não sei, mas vou descobrir” não abalou a sua confiança: descobri que eles confiam mais na minha capacidade para encontrar de forma séria respostas aos seus problemas do que na minha memória para as saber de cor à primeira solicitação.

O ímpeto do “sabichão” permanece: é-me quase inconsciente, de tal forma o interiorizei, e de vez em quando, por impaciência ou preguiça, aflora-me aos lábios a retórica que me faz passar rapidamente por grande conhecedor de coisas que não conheço bem. Mas vou tentando emendar esse reflexo, sabendo que a minha disponibilidade para dizer “não sei” também me impele a saber mais coisas. É que eu não passei a gostar de “não saber” coisas; simplesmente, deixei de achar isso um defeito.

Saber falar um bocadinho de tudo é um talento útil que não quero desprezar. Não tenho dúvidas de que beneficiei disso, em certos momentos, e que isso continua a beneficiar muita gente, como várias que vejo na televisão a falar do que sabem e do que não sabem.

Mas conseguir dizer “não sei”, sobretudo em público, é uma qualidade mais rara e muito mais admirável. Revela respeito, curiosidade e amor pelo conhecimento. Numa era em que as opiniões procuram substituir os factos, dizer “não sei” é um belo ato revolucionário; mas no final de um ano que desafiou tudo o que conhecíamos, que obrigou toda a gente a conviver de perto com o desconhecido e com o incerto, também devia ser a coisa mais fácil do mundo.

Miguel Sousa Tavares podia ter dito que não sabia o que era blockchain. Como é uma presença recorrente na televisão, talvez isso o impelisse a informar-se melhor, para responder, da próxima vez, que sim, que sabia o que era blockchain, para logo de seguida o explicar corretamente.

Ganhávamos todos. É esse o maravilhoso poder de dizer “não sei”: quem não sabe, aprende, quem sabe, explica, e a síndrome do impostor, esse medo de que descubram que não somos tão bons como parecemos, passa a ser apenas o que é: a noção, que temos todos, de que aquilo que não sabemos supera vastamente aquilo que temos para ensinar.

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