Exultantes, os ativistas da esquerda ainda mal acreditavam no milagre que nenhuma sondagem tinha sequer admitido.
A escalada poderosa que colocava o Rassemblement de Le Pen e Bardella às portas da maioria absoluta que levaria, de modo democrático, a extrema-direita ao governo de uma potência europeia fez despertar em muita da cidadania francesa a chamada “alma republicana”, forma de cordão sanitário para barrar a direita extrema portadora de fantasmas do colaboracionismo francês nos anos 40 do século XX, tempo da ocupação nazi. Jean-Marie Le Pen, pai de Marine e fundador do Front National (extrema-direita) é personagem dessa linha. Marine, a filha e mais ativa herdeira política, esforçou-se para, ao longo destes últimos 20 anos, normalizar o partido ultra. Mudou-lhe o nome, que passou de Front para Rassemblement. Limpou as teias de aranha sobre muito do programa político do partido, manteve o nacionalismo cristão anti-islâmico e anti-europeísta como estandarte, escavou o sentimento de ameaça securitária causada por estrangeiros e soube cativar massas populares desiludidas com a esquerda sindical comunista. Marine Le Pen conduziu um plano de – como se diz em França – “desdiabolização” do Rassemblement (RN). Conseguiu-o em grande parte, tanto que que juntou 10 milhões de votos em cada uma das três idas dos franceses às urnas neste último mês. Em dois anos, mais do que duplicou a votação no Rassemblement. Escolheu um número 2 jovem, bem encarado, Jordan Bardella, para delfim a encabeçar o partido e um governo RN, deixando-a solta para as tarefas da grande ambição de suceder a Macron na presidência da França.
O plano de Le Pen foi hábil e pacientemente executado, mas a imprevista convocação por Macron de eleições legislativas antecipadas expôs falhas. O Rassemblement não soube selecionar candidatos apresentáveis para os 577 lugares a votos. Precisava de ter gente conforme à estratégia de modernização e normalização do partido, mas falhou. Teve uma candidata que se fez fotografar com uniforme da tropa de Hitler. Vários candidatos intervieram com discursos racistas e xenófobos. Estes abcessos tornaram-se o caso político na última semana antes do voto.
Enquanto as esquerdas se mobilizavam no terreno para travar o perigo de um partido que tinha gente que exibia símbolos do nazismo, Le Pen e Bardella quase não apareceram junto das pessoas, passaram o tempo a justificar as anomalias. Julgaram que lhes bastava comunicar através das redes sociais.
Um herói das periferias mestiças, o futebolista Kylian M’bappé deu o impulso para propagar o alarme e para que os relutantes com a política se mexessem para derrotar a extrema-direita.
As direções políticas à esquerda, ao centro e até em algumas áreas conservadoras, foram capazes de meter na gaveta as profundas divergências que separam os partidos que representam e uniram-se para o essencial de travar o acesso da extrema-direita ao governo. A seis dias das eleições conseguiram aprovar um plano de desistências de candidaturas de modo a que a soma algébrica da candidatura anti-Le Pen se impusesse.
Subsistia a dúvida: o arranjo montado pelas direções gerava uma soma aritmética mas não estava aconchegada por base política robusta capaz de convencer os eleitores. Entre macronistas ao centro e mélenchonistas nas esquerdas há rancores de sempre. Como seria possível o apoiante de um lado votar no outro que sempre maldisse? Foi possível.
Aconteceu sem que os institutos de sondagem pudessem apanhar essa movimentação que se terá tornado profunda nas 72 horas antes do voto.
Muitos dos cidadãos que não ligam a a eleições decidiram ir votar. A participação superou os 67%, vinte pontos percentuais acima das eleições de 2022.
Resultou, com surpresa geral, a França dizer um claro não à extrema-direita.
Nenhuma sondagem tinha admitido a possibilidade de o Nouveau Front Populaire (NFP), apressada aliança de conveniência eleitoral entre partidos da esquerda e do centro-esquerda, sair das eleições como a força política mais votada. Mas foi: os partidos da NFP que tinham 153 deputados passaram a ter 182.
Os macronistas, antes primeiro partido, com 250 deputados, tinham as sondagens e a perceção geral a anunciar-lhes uma derrota estrondosa, reduzindo-os à quase irrelevância. Macron é a personagem política que a imagem de sobranceria faz ser a mais detestada em França. Mas o sobressalto e o pacto de desistências levou a que este Ensemble de centro puxado para a direita sobreviva com 168 deputados. É um bloco sólido que, surpreendentemente, surge como charneira e decisivo para viabilizar um governo puxado pelas esquerdas.
O Rassemblement, de Le Pen e Bardella, que partia como favorito depois da vitória nas europeias, reforçada na primeira volta, fica afinal no terceiro lugar, mesmo assim com grande crescimento de 88 para 143 deputados. É o partido que mais cresce, mas com grande frustração perante as altas expectativas.
Os números não dão maioria absoluta (289 deputados) a qualquer dos três blocos, mas abrem o caminho a uma grande coligação entre as esquerdas e o centrismo macronista com número folgado de deputados para formar governo com amplo suporte parlamentar.
Vai ser necessária muita criatividade política para que seja consensualizado um programa comum de governo. Mas a ocasião vai levar a que se concretize a necessidade.
Já está a ser negociada a seleção de um nome para primeiro-ministro de consenso, provavelmente alguém da esquerda moderada, com perfil capaz de somar o apoio de centristas. O radical Jean-Luc Mélenchon é o oposto a esse perfil de consenso. Mas o ex-jornalista François Ruffin, alinhado com o partido insubmisso (LFI) de Mélenchon, mas crítico do líder e com discurso social-democrata é uma das mais hipóteses mais fortes para próximo primeiro-ministro da França. Tal como o socialista plural Raphael Glucksman.
O novo parlamento francês reúne-se pela primeira vez na quinta-feira da próxima semana. A eleição, nesse 18 de julho, do presidente da Assembleia Nacional vai dar indicação sobre as alianças formadas. Logo a seguir, é previsível, o presidente Macron vai designar o primeiro-ministro com quem vai coabitar.
O próximo governo vai aplicar um programa político ancorado à esquerda, com prioridade para a recuperação do poder de compra e a procura de aproximação entre o governo e os cidadãos. Vai certamente ser notório o esforço de reconquista de parte dos 10 milhões de eleitores que alinharam com Le Pen. A extrema-direita, desta vez, com surpresa, voltou a perder, mas já se prepara para o próximo combate, nas presidenciais de 2027.
A ver se a maioria anti-Le Pen que levou a esta revolução francesa aprendeu a lição.
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