O que está sobre a mesa hoje em Genebra é o futuro da Europa. Sobressalta constatar que a Europa esteja a ser discutida entre os Estados Unidos e a Rússia em negociações sem a participação da Europa.
O que é que explica esta ausência da Europa nas negociações que envolvem hoje apenas as delegações chefiadas pelos vice-ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países – Wendy Sherman pelos EUA e Serguei Riabkov pela Rússia? É Putin que está a pôr trunfos na mesa e a ditar condições: colocou 100 mil soldados e armamento pesado nas imediações da Ucrânia. Putin mandou avisar Biden que queria falar com ele, negociaram por uma hora ao telefone e ficou assente esta negociação técnico-diplomática de hoje em Genebra.
Putin quis que o encontro fosse apenas bilateral entre americanos e russos e, perante a ameaça de 100 mil soldados à beira da Ucrânia, Biden achou que deveria aceitar.
É uma primeira vitória para Putin nesta negociação: a Rússia recoloca-se como superpotência, a negociar com os EUA de igual para igual.
Para a Europa é um fracasso: na cimeira europeia de junho passado, Merkel e Macron propuseram uma reunião entre Putin e os líderes europeus. O presidente russo ignorou o desafio.
É assim que a Europa está hoje pendente do que os Estados Unidos negoceiem com a Rússia. Por mais robustas que sejam as propostas de articulação dos americanos com os líderes europeus, a verdade é que os EUA estão a negociar nas costas da Europa.
Na prática, sob o efeito da pressão militar russa no terreno, Biden consente a Putin que esteja a atirar a União Europeia para fora do clube das superpotências. É também uma espécie de castigo aos europeus pelo apoio a quem no antigo mundo soviético (sobretudo na Ucrânia e na Bielorrússia, também na Rússia) se opõe às vontades do Kremlin.
Parece evidente que o plano negocial russo tem um ponto prioritário: a garantia de que a Ucrânia, que para Putin é parte vital do antigo império soviético, nunca adira à NATO.
Talvez seja essa reivindicação o que leva a que a negociação EUA-Rússia desta segunda-feira em Genebra tenha continuação dois dias depois em Bruxelas com uma rara reunião do Conselho NATO-Rússia – desta vez a Europa está à mesa através dos países europeus que integram a Aliança Atlântica, mas a Comissão Europeia continua excluída.
O mesmo no dia seguinte quando esta inédita maratona diplomática ficar concluída com a reunião da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), a única instituição multilateral que inclui todos os 57 países do hemisfério norte e que tem a missão de promover o diálogo e a paz.
Estamos numa semana que se mostra como o momento decisivo na aspiração de Putin de reinstalar a antiga esfera de influência de Moscovo sobre todos os países que integraram a União Soviética.
Pode ser metida nesta ambição muito da crise da última semana no Cazaquistão.
A antiga república soviética do Cazaquistão é o maior país da Ásia Central e tem as maiores reservas de urânio em todo o mundo.
O subsolo do Cazaquistão esconde o motivo para o país ser muito pretendido. Tem um tesouro em forma de matérias-primas: além do urânio, também os maiores jazigos de gás natural e de petróleo descobertos no século XXI. Mais ainda, as chamadas “terras raras”, minerais determinantes para os mais inovadores setores da transição ecológica e digital, das telecomunicações aos automóveis elétricos.
O Cazaquistão era a fonte de 60% das matérias-primas da ex-URSS.
O atual presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, é um filho da elite soviética que se revelou diplomata hábil, com relações privilegiadas com dirigentes chineses e ocidentais. Nos últimos tempos, o Cazaquistão mostrava muitas aberturas à China e aos Estados Unidos.
A crise da semana passada foi um oportuno pretexto para que, perante o caos nas ruas de algumas cidades, fosse acionada a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, patrocinada por Moscovo e que levou à deslocação para o Cazaquistão de tropas “amigas” da Rússia e da Bielorrússia. Assim, o Cazaquistão voltou à órbita do Kremlin.
Os protestos tinham começado no domingo, 2 de janeiro, em contestação ao aumento de 100% no preço do gás, o que fez disparar o custo dos alimentos e de quase tudo o mais.
O povo do Cazaquistão é orgulhoso descendente de Gengis Khan. Os antepassados foram pioneiros, há 5 mil anos, a domar cavalos selvagens. Mas é um povo que tem amargado o domínio exercido pela vizinha Rússia. No começo do tempo soviético, os nómadas foram primeiro sedentarizados depois russificados.
A história também nos conta que, quando Estaline iniciou a prática intensiva de deportações, escolheu a estepe do Cazaquistão onde o clima é extremo (chega a -40ºC no inverno e tem calor sufocante no verão). Foi para lá que mandou Trotski em 1928.
O Cazaquistão é peça-chave na aspiração de Putin de ser o reconstrutor, 30 anos depois, do antigo império soviético.
O patrão do Kremlin está, para já, a conseguir ser tratado por Biden como interlocutor prioritário. Putin, hábil jogador, terá a perceção de que este é um bom momento para negociar com os EUA: Biden está focado na competição estratégica com a China, pode ser este o bom momento racional para redefinir zonas de influência na Europa e assim permitir aos EUA que se concentrem na instável região do Pacífico.
Putin deve estar a contar que Biden, presidente por certamente um só mandato, queira compromissos, com estancamento da zona de influência da NATO e assim evitar novas guerras na periferia leste da Europa.
Resta saber se esse provável compromisso salvaguarda bases para liberdade democrática nesses países como a Ucrânia e a Bielorrússia.
Não é de crer que possa eclodir uma guerra armada no território da Europa mas é inquestionável que estamos numa semana decisiva para o relacionamento entre a Rússia e o Ocidente. A tensão nunca, desde o fim da Guerra Fria em 1989, subiu a nível tão alto, com tanto em jogo sobre a mesa.
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