Como só conseguimos lembrar-nos da resposta certa quando já é tarde demais (l’esprit d’escalier chamam-lhe os franceses), fiquei a ruminar naquilo que devia ter dito e feito. Veio-me à cabeça que estava de calças, embora estivessem 30 graus. Pensei que devia ter fotografado a matrícula, mas como, se aceleraram logo?
Estava enfurecida com a cobardia de quem me tinha assediado, mas parte de mim também se debatia com a minha reacção, ou falta dela. Por que não fui mais rápida? Mais assertiva? Mais eficaz a defender o meu corpo de olhares, comentários e sons guturais alheios?
Este episódio não constitui a primeira vez que fui assediada na rua. Desde a minha pré-adolescência que existir num espaço público implica estar sujeita a situações semelhantes. Algo comum a milhares de mulheres em todo o globo, como prova o projecto Everyday Sexism iniciado por Laura Bates com o objectivo de partilhar testemunhos de sexismo quotidiano.
Percorrer os testemunhos deste site é uma experiência agridoce. Por um lado, fico assoberbada com a quantidade de crimes perpetuados todos os dias contra as mulheres. Por outro, há uma sensação de alento e uma comunidade que surge quando nos apercebemos que a nossa dor não é única.
Mas voltemos à reacção. Fiquei frustrada por não conseguir dar uma resposta no momento, mas sei bem que o verdadeiro problema não é esse. O problema está em alguém sentir-se no direito de comentar o corpo de uma mulher na via pública, sem pensar duas vezes. No entanto, quando um crime de assédio ganha mediatismo, continuamos a focar-nos no comportamento da vítima em vez de questionarmos o do agressor. O que tinha vestido? Estava bêbeda? Chamou alguém? Por que não foi à polícia?
Para parafrasear a escritora Ruth Manus: as mulheres não são chatas, estamos só mesmo muito exaustas. Em Abril falávamos das acusações feitas a Boaventura de Sousa Santos. Meses depois, a futebolista Jenni Hermoso teve de esclarecer o que devia ser óbvio: foi vítima de violência sexual. Mais recentemente, chega-nos a notícia de que o actual Presidente da República Portuguesa decidiu comentar o decote de uma jovem aquando de uma visita ao Canadá. Não são incidentes isolados, é um padrão.
Em 2022, a APAV recebeu 160 queixas de assédio moral e/ou sexual, 776 de ameaça e/ou coacção e 21,588 de violência doméstica. Podemos tentar reduzir esta realidade a uma nota de rodapé, ou assumir que é um assunto sério e é preciso agir.
Nesse dia quente de Agosto, ao chegar a casa, pensei em todas as coisas que já deixei de fazer por não me sentir segura. Abri o caderno com a intenção de escrever uma lista, mas acabei por apontar uma única frase. Só quero andar na rua descansada.
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