Sabe o que lhe dizemos. Agora, dizemos que são dez feridos. Agora, dizemos que já há um morto. Daqui a um minuto, no próximo agora, dizemos que afinal são onze feridos. Depois dizemos que o morto é sírio e que terá sido abatido. Mais um agora, e afinal já se sabe que se suicidou. Dizemos que um padre foi morto por mulçulmano. Dizemos que um miúdo matou outros dez, porque era muçulmano. Começou por ser turco, passou por alemão, agora parece que é iraniano e de extrema-direita. Afinal não, era só manipulação para dividir a opinião. Mais um agora e afinal há menos feridos. Melhorou. Mas afinal o padre foi degolado. Piorou.
É isto que se sabe. O que não se sabe é como hoje a informação se tornou, provavelmente, a área mais difícil e ao mesmo tempo mais fácil para se trabalhar. Tudo depende da perspectiva. É fácil publicar – fácil como nunca foi. É estranho o que significa hoje "publicar" – significa, em grande medida, seguir o que outros escrevem, nos seus sites, ou em redes sociais, onde no que respeita a primeiras notícias (ou últimas horas, como quiserem), o Twitter é rei. Quem é rei no Twitter? Depende. Há reis encartados pela reputação de anos, há oportunistas malévolos e há súbitas fontes de informação directas – como foi o caso da página de Twitter da polícia de Munique, na sexta-feira passada, que foi a referência de muitos jornalistas para seguir o tiroteio que teve lugar na cidade alemã.
Mas é mais difícil do que nunca trabalhar informação naquilo que distingue o jornalismo de um outro qualquer produto de consumo. Num negócio que luta por novas receitas e por novos modelos de negócio, tudo parece boa ideia a alguém em algum momento. Jornalistas, gestores, vendedores de publicidade, tecnólogos, gestores de redes sociais, por aí fora. E é legítimo – é preciso experimentar, é preciso testar, é preciso não desistir. O problema é que a linha que separa o que se pode fazer quando se trata de informação do que não se pode fazer é ténue para muitos, mas quase sempre está preparada para electrocutar. Uma vez passada, já alguém se fritou. E não tem problema – há muito lugar na selva dos media contemporâneos para produtos fritos, provavelmente até mais do que para o jornalismo saudável. Mas, é tal qual escrevia Katherine Viner, a directora do The Guardian, num artigo sobre a verdade nos tempos da tecnologia. "Nos últimos anos, muitas empresas jornalísticas afastaram-se do jornalismo de interesse público e apostaram em notícias junk-food, correndo atrás de pageviews e com a vã esperança de atrair cliques e publicidade (ou investimento) – mas, tal e qual como acontece quando comemos junk food, odiamo-nos por ter feito isso".
Ser rápido tornou-se o requisito principal de uma profissão que tem como missão reunir factos e propor interpretações sobre os mesmos. Agora é suposto fazer isso em menos de 30 segundos, porque numa janela qualquer do nosso computador já outro editor em qualquer outro site ou rede está a ser mais rápido a teclar. Com erros inevitáveis, demasiadas vezes sem confirmação, cheios de verbos no condicional, aí vamos nós, em direcção ao precipício da publicação. Mas é preciso publicar, rápido.
Ao compasso impiedoso de cada tweet, de cada trending topic, de cada post, de cada link, de cada última hora.
E é também assim que estamos a deixar fermentar a selvajaria – a pior de todas, aquela que nos vai deixar selvagens perante a selvajaria do mundo lá fora.
Em muitas redacções, não se pensa, tecla-se. Quem quer discutir princípios e consequências, não tem perfil. Há métricas para avaliar quantos artigos são publicados ou produzidos – curiosamente o termo "escritos" quase caiu em desuso nesses espaços – por hora. Publica, publica, publica. O que conta é chegar primeiro e publicar muito. Não é um problema só nosso – é um problema da maior revolução de sempre na forma como comunicamos, informamos e nos relacionamos.
A New York Magazine entrevistou mais de quarenta jornalistas e profissionais de media sobre a sua profissão. Vale a pena ler os resultados integrais, mas deixo um pequeno aperitivo.
Dos inquiridos, 75% acham que a internet foi boa para o jornalismo. Mas 44% respondem que o jornalismo é hoje pior do que há dez anos versus 36,7% que consideram que está melhor. 75,2% afirmam que sentem pressão para produzir histórias que sejam atractivas para a audiência. E de onde sentem a principal pressão? Da audiência? Não. Do patrão (41,07%) e aquela que o próprio jornalista exerce sobre si próprio (36,5%). Audiência só conta 17,8% nesta equação.
Já agora, 81,5% destes inquiridos dizem que os media ajudaram a "criar" Donald Trump.
E é aqui que me lembro de uma pergunta que há sempre alguém que faz. Qual é o mal? Apetece-me hibernar cada vez que ouço esta pergunta. Não pela sinceridade e mesmo ingenuidade com que alguns a farão. Mas, mais uma vez, pela inconsequência. Qual é o mal de não ter mal perguntar sempre qual é o mal? É que nada tem importância, porque tudo só dura uns escassos minutos e depois ninguém se lembra. São Dorys, o peixinho de águas quentes, feliz porque desmemoriado.
Tenham um bom fim de semana
Outras sugestões de leitura:
Hoje as sugestões de leitura de ficam integralmente em casa, ou seja, no SAPO24. Porque a oferta é boa e vale a pena o vosso tempo.
A primeira sugestão é um artigo da Helena Oliveira sobre uma nova epidemia, a do narcisismo. Qual Narciso, há cada vez mais pessoas apaixonadas pelo seu próprio reflexo e assim se multiplicam posts, fotos, streaming da vida diária. Psicólogos, filósofos e outros cientistas sociais estão preocupados com uma epidemia que cresce mais depressa que a da obesidade.
A segunda gestão, na semana em que Hillary Clinton se tornou a primeira mulher candidata à presidencia americana por um dos grandes partidos, é a leitura do artigo do José Couto Nogueira sobre as mulheres que antes dela tentaram lá chegar.
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