Num vídeo de 15 segundos, que imediatamente se tornou viral, o rei ainda não coroado, que sempre mostrou uma atitude pedante por aquilo que não lhe agrada, recebe Liz Truss com um enfático “Ai, ai, lá vem você outra vez...” (“So you’ve come back again?” / “Dear, oh dear. Anyway …”). Pode surpreender a atitude real perante uma visita de rotina institucional, sobretudo se comparada com as da senhora sua mãe, que nunca mostrava sentimentos em público. Carlos, cuja sobranceria blasé há muito é reconhecida pelos súbditos, certamente caminha para um reinado cheio de gaffes, grandes e pequenas. Mas desta vez não fez mais do que ecoar os sentimentos da população, aterrorizada com o mini-programa económico que o novo governo conservador apresentou logo na grelha de partida. E não foi só a população; os agentes económicos, desde o Banco de Inglaterra aos empresários e fundos de pensões, reagiram em pânico. É que Kwasi Kwarteng, o Ministro das Finanças (Chancellor of the Exchequer) logo no dia 23 de Setembro tomou um conjunto de decisões realmente surpreendentes, não só para a situação do país no mundo como para a estrutura económica do Reino Unido. Para já, um abatimento de impostos para os ricos (os que ganham mais de 150 mil libras anuais) que reduz as receitas do Estado em 45 mil milhões de libras. Depois, um limite para as contas de energia, que não chega para os consumidores mas aumenta a despesa pública. O total dá qualquer coisa como 150 mil milhões de libras, sem que fosse apresentada uma maneira de cobrir essa combinação de despesa e redução de receita. 

Quanto às despesas, Liz Truss afirmou que não haveria cortes, contradizendo o seu próprio ministro, que se propunha a reduzir 14 mil milhões nos investimentos do sector público e nos serviços públicos (no pessoal do ensino pré-escolar, ou nas casas de renda popular, por ex.), com excepções para a saúde e as forças armadas.

A redução de impostos para os ricos, assim como uma série de mudanças nos apoios à produção de bens (“suply-side reforms”) está dentro das receitas há muito desacreditadas da chamada “Escola de Chicago”, que considera que, se os ricos ficarem mais ricos, vão gastar mais e portanto “aquecer” a economia. Já foram tentadas, e ainda são, em vários países, nomeadamente nos Estados Unidos de Trump, sem resultados reais. 

Até o “The Economist” uma revista excelente e conservadora, ficou chocada com estas medidas.

O Banco de Inglaterra teve de intervir imediatamente para acalmar os mercados, comprando obrigações do Tesouro a curto prazo, o que levou as obrigações a 30 anos a perder 1% do rendimento. Essas obrigações compõem a carteira de fundos de pensões, que assim vêem diminuída a sua capacidade de acompanhar a inflação - inflação essa a atingir níveis preocupantes.

Não surpreende que neste momento os trabalhistas estejam 25 pontos à frente sondagens. Também não surpreende que esta sexta-feira o ministro Kwarteng tenha sido sumariamente demitido. Ele diz que se demitiu, Liz diz que lhe “pediu” para se afastar. E acrescentou que não se criassem expectativas, que o programa do Governo não mudará no essencial, o que é um contra-senso — se não é para mudar o programa, porque despedir que o inventou?

No imediato, a saída de Kwarteng, ao fim de 38 dias de pânico, não representará nenhum alívio para o Governo; se as suas propostas económicas eram assustadoras, agora não há propostas económicas nenhumas, pelo menos até Jeremy Hunt, o novo ministro, dizer o que quer. Hunt, um brexiteer convicto, foi Secretário de Estado da Cultura, Olimpíadas, Comunicação e Desporto entre 2010 e 2012, Secretário de Estado da Saúde e Segurança Social entre 2012 e 2018, e dos Negócios Estrangeiros em 2018-19. Uma carreira versátil (tal como a de Truss) que não se sabe o que dará nas Finanças. Quer dizer, os mercados e os cidadãos não têm razões para acalmar.

Entretanto, há outras figuras no Governo muito pouco consensuais. Por exemplo, Jacob Rees-Mogg, com a pasta dos Negócios, Energia e Estratégia Industrial. O conhecido campeão do Brexit é a favor da exploração de petróleo por “fracking” e em zonas marítimas  e contra a energia solar. “Fracking” é uma técnica de extração de petróleo muito controversa e detestada pelos ambientalistas, que consiste em injectar pressão em terrenos rochosos para extrair petróleo. Ele e Truss estão de acordo que as terras aráveis não podem ser desperdiçadas com painéis solares.

Outro exemplo é Suella Braverman, a ministra do Interior (Home Secretary). Filha de goeses - o nome de solteira é Fernandes - segue a linha anti-imigração da sua antecessora, também de origem indiana, Priti Patel, famosa por mandar os imigrantes ilegais para o Ruanda, apesar da enorme falta de mão-de-obra no país.

A Grã-Bretanha está a atravessar um período realmente difícil. O Brexit provou ser uma má aposta; tudo tem corrido mal, desde a burocracia espinhosa nas trocas comerciais com o maior parceiro do reino, a UE, passando pela falta de mão de obra derivada dos travões à imigração e terminando com os custos energéticos derivados da guerra na Ucrânia. O que os ingleses esperam, neste Inverno, é uma opção entre comer e aquecer-se (“eat or heat"), num clima onde simplesmente não se pode sobreviver sem aquecimento e a inflação atingiu quase 10% em Agosto.

Há ainda o problema da Irlanda do Norte, cujo protocolo com a UE está longe de resolvido, com crispação das três partes envolvidas - IN, GB e UE. E a Escócia, que continua a querer separar-se do Reino Unido.

Liz Truss, escolhida por uma minoria de eleitores em congresso do Partido Conservador, tem uma carreira errática - já foi de esquerda, anti-Brexit e pró-Brexit - e pouca experiência executiva. Nestas poucas semanas como primeira-ministra mostrou que não sabe o que quer, ou melhor, sabe o que quer mas não como fazer. Neste momento, o que os ingleses apostam é que terá uma carreira mais curta do que Theresa May, aquela senhora que esteve no cargo ente Julho de 2016 e Junho de 2019 e acabou cilindrada por Boris Johnson, porque não conseguiu resolver a questão do Brexit - que Boris resolveu à sua maneira, isto é, dando voltas para nada do que interessava se resolver.

Ai, ai, Reino Unido.

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