Para já, e para evitar as habituais confusões, a capital do Estado de Nova Iorque é Albany, uma cidadezinha com 95 mil habitantes que fica a 217 quilómetros da grande metrópole e uma das cidades mais simbólicas do mundo.

O Governador passa pouco tempo na desinteressante capital e tem um apartamento em Nova Iorque, cujo Presidente de Câmara (mayor) é Bill de Blasio. São ambos italo-descendentes, democratas, mas detestam-se. Esta antipatia não é só pessoal, mas, digamos, histórica; o cargo de edil da cidade sempre teve muito mais visibilidade do que o de governador. Aliás, no mundo inteiro, quando alguém fala de Nova Iorque pensa logo em Manhattan, nos arranha-céus icónicos e na babel de mais de oito milhões de pessoas de todas as nacionalidades. Ou então na grande área urbana, com 19 milhões de habitantes, 40% dos quais, vindos de outras origens. Antes da pandemia, Nova Iorque tinha uma população flutuante – isto é, de curta permanência – de um milhão por dia. Ninguém conhece os governadores, embora alguns, como os dois Roosevelt, que viriam a ser presidentes, e Nelson Rockefeller o milionário, tenham estatuto internacional. Em compensação, quase toda a gente já ouviu histórias de Fiorello La Guardia, John Lindsey, Ed Koch, David Dinkins, e Michel Bloomberg – além do famosíssimo Rudolph Giuliani.

Aliás, Giuliani, que foi mayor entre 1994 e 2001, tem uma história parecida com a de Cuomo, no que toca a ascensão e queda, só que num tempo mais alargado e por razões diferentes. Giuliani tornou-se um herói nacional aquando do atentado às torres gémeas, em 11 de Setembro de 2001; em seguida, fez uma tentativa falhada de candidatura à presidência dos Estados Unidos e desapareceu. Voltou à ribalta na Era Trump (2017-21), como um caricato advogado oficial do Presidente, não só defendendo o mito do resultado falsificado das eleições, como fazendo-o da maneira mais ridícula possívelUma carreira que atingiu o apogeu em 2001 e foi completamente estraçalhada no ano passado. 

Andrew Cuomo é um caso diferente. Eleito governador do Estado em 2011, era conhecido apenas pelos nova-iorquinos e somente pelas suas disputas frequentes com Bill de Blasio (eleito em 2014). Ambos controladores e de mau feitio, desentendiam-se sobretudo porque Cuomo não queria dar a Blasio as verbas – e o prestígio inerente – de que a cidade precisa para, por exemplo, recuperar a rede de metropolitano em péssimo estado.

Tudo mudou em Março do ano passado, quando a cidade se tornou o maior foco de Covid-19 dos Estados Unidos, antes da pandemia alastrar pelo resto do país. Cuomo começou a fazer conferências de imprensa diárias com uma energia e uma franqueza notáveis, que se tornaram um sucesso televisivo nacional. Enquanto Trump minimizava a gravidade da epidemia, só se vangloriando do seu suposto sucesso a combatê-la e ridicularizando a incompetência dos governadores democratas, Cuomo falava com o coração nas mãos, não escondia a gravidade da situação e apresentava medidas concretas. Era emocional e racional ao mesmo tempo, com tal capacidade de comunicar que começou a ser apontado como o próximo candidato democrata à presidência do país. Disputava taco a taco o palco mediático com Trump – e estava a ganhar-lhe. 

De facto, enfrentou sozinho a calamidade que se abateu sobre a cidade, comprando material médico por sua conta (quer dizer, com o orçamento estadual) mandando abrir rapidamente centros de tratamento e procurando soluções de emergência. Um governante à altura da desgraça.

Nova Iorque lá conseguiu reduzir a pandemia a proporções geríveis, enquanto o resto do país assistia à subida exponencial dos números de infectados. Bill de Blasio, se teve algum papel – e certamente terá tido – não se deu por isso. Antes pelo contrário, a sua insistência em manter as escolas abertas (Nova Iorque tem a maior rede escolar do país) irritou muita gente, e ficou a impressão de que não estava à altura do desafio.

De repente, em Janeiro deste ano, as perspectivas de uma carreira brilhante para Andrew Cuomo levaram uma machadada; descobriu-se que o Governador escondeu os números da mortalidade nos lares, para não provocar uma investigação judicial e para não dar força aos seus adversários políticos. A princípio negou, mas depois teve de admitir que tinha dourado a pílula um bocadinho, quando uma assessora confirmou o facto. Imediatamente, o Parlamento estadual pediu que lhe fossem retirados os poderes especiais atribuídos em nome do estado de emergência, e a Procuradora Geral de Nova Iorque abriu uma investigação (que ainda está a decorrer.)

Em Fevereiro, uma assessora, Lindsay Boylan, acusou Cuomo de avanços sexuais indevidos. (Nos Estados Unidos, este tipo de acusação é mais devastador que aldrabar números...) Logo a seguir, outra assessora, Charlotte Bennett, proferiu acusações semelhantes, acrescentando que o Governador, que é divorciado, se comporta de modo “inapropriado” com mulheres jovens. Em Março, outra rapariga, que nem sequer trabalhava para ele, contou que o encontrou num casamento e foi por ele agarrada, contra sua vontade. Por coincidência, um fotógrafo captou o momento em que Cuomo a segura pela nuca.

Relativamente aos dois primeiros casos, Cuomo alegou que é assim mesmo, um italiano bem-disposto e à vontade com as mulheres, mas que o fez inadvertidamente e sem más intenções. Mas quanto ao terceiro, na fotografia indiscutível, publicada no “The New York Times”, vê-se perfeitamente o gesto dele e a expressão incomodada dela.

Esta semana, Cuomo reconheceu publicamente que se portou mal. Quase lacrimejante, contrito, com uma atitude completamente diferente das famosas conferências que lhe deram tanto sucesso, pediu desculpa, prometendo que vai ser uma melhor pessoa.

A questão do assédio sexual, sobretudo relacionado com a chamada “reverência institucional” (quando o “atacante” é socialmente superior à vítima) pode ser discutida – e tem sido discutida, de muitas maneiras. É evidente que as consequências na Europa em geral são muito diferentes dos Estados Unidos. Vale a pena lembrar a famosa carta assinada no “Le Monde” por cem francesas mediáticas – sendo a mais famosa Catherine Deneuve – a dizer, com uma certa elegância que “a liberdade de importunar é indispensável à liberdade sexual.”

Pode concordar-se, ou não, com este ponto de vista; afinal, cada caso é um caso e calibrar uma atitude inoportuna nem sempre é fácil. Ninguém em seu perfeito juízo defende que um homem possa incomodar uma mulher, mas a mulher também tem o poder de lhe dar um estaladão. Quando não tem, nos casos da tal reverência institucional (uma aluna e um professor, por exemplo), pode ignorar e seguir em frente, e pode legitimamente denunciar e fazer queixa formal ao abrigo da legislação já existente. A discussão que talvez valha a pena ter é em que sede é que a ação deve ter lugar: se nos media ou se em sede própria, leia-se a justiça nos seus vários níveis. O contexto é decisivo para definir que tipo de situação aconteceu e se foi assédio ou não. A bem de quem se sente legitimamente assediado e a bem de quem possa ser injustamente exposto, ganhava-se que a discussão decorresse noutros fóruns.

Quaisquer considerações que se façam, o facto, indiscutível, é que nos Estados Unidos estas atitudes, ou mesmo a suspeita delas, liquida qualquer homem (menos Donald Trump, mas isso é outra história...).

Resumindo, Andrew Cuomo desgraçou-se.

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