A notícia da morte de Anthony Bourdain, na sexta feira, dia 8 de junho, anunciada num comunicado da CNN, trouxe imediatamente uma reacção à escala mundial, sob a forma de incontáveis comentários, especulações, obituários e considerações. Incontáveis, porque não houve nenhum órgão de comunicação social, desde os ditos de referência aos tablóides que escorrem sangue, que não falasse no seu suicídio. E nas redes sociais não houve quem não comentasse, desde elogios superlativos à constatação de que não sabia quem ele era.
Mesmo nesta época de divulgação em tempo real, é surpreendente como a notícia se viralizou em 24 horas, considerando que nem sequer houve, ou há, uma definição unânime de quem era Bourdain, ou de qual a sua importância neste mundo.
Numa definição restrita, técnica, digamos, Anthony Bourdain fazia um programa de televisão sobre culinária. Mas há dezenas, se não centenas, de programas de televisão sobre culinária. No entanto, não há nenhum como o dele. Porque, como o próprio disse: “Realmente, nunca foi sobre culinária”. A cozinha, os diversos pratos e acepipes que se comem à volta do mundo, cada cultura com os seus, era apenas a desculpa para falar sobre a diversidade da espécie humana. Bourdain, que fez cerca de 300 programas em 120 países, falava com as pessoas, ouvia-as, trocava impressões sobre tudo e mais alguma coisa, interessava-se pela História e pela situação dos locais que visitava. Era uma viagem cultural e civilizacional, usando como desculpa a culinária. E, como tinha a rara capacidade de observar e relatar tudo sem preconceitos, ideias feitas ou hierarquias, acabava por produzir retratos simples e profundos dos lugares por onde passava.
Veja-se, por exemplo, o seu programa sobre Lisboa. Há a comida portuguesa, em refeições organizadas ou preparadas por dois chefs portugueses, Henrique Sá Pessoa e José Avillez, com quem fala não apenas da nossa cozinha, mas da nossa atitude perante a comida. Não o que comemos, mas como e porque comemos assim. E há uma conversa, com António Lobo Antunes, que relata à sua maneira a neura lusitana, os rapazes do Dead Combo, que contam como é o mercado musical nacional, e o produtor José Brito, que revela como escapou da Guerra Colonial. Há também um jogo de chinquilho e uma pescaria no Tejo. Tudo com excelentes imagens de ruas e pessoas, do clima da cidade. Nenhum outro programa de uma hora resume Lisboa tão despretensiosamente e com tanta pontaria.
Quem diz Lisboa, diz qualquer outra cidade que Bourdain visitasse. Procurava sempre os locais mais típicos e não os mais caros, as pessoas mais genuínas e não as mais famosas – embora às vezes fossem interessantes e famosas.
As deambulações de Bourdain fazem-me lembrar outro grande cronista do mundo e das suas idiossincrasias, o jornalista, cronista e poeta australiano Clive James, que nas décadas de 80 e 90 fez uma série de programas para a BBC – este, sobre Nova Iorque, é um bom exemplo.
Bourdain começou como cozinheiro, de facto, numa vocação que misturava já a sua paixão pela aventura e pelo inusitado. Vindo de uma família culta e bem na vida, podia ter seguido uma profissão académica depois de frequentar boas escolas; mas abandonou tudo para ir lavar pratos num restaurante e a partir daí foi subindo na carreira, frequentando o Culinary Institute of America, a mais antiga escola profissional dos Estados Unidos, e trabalhando em vários restaurantes, bons e maus. Viciou-se em drogas e desviciou-se. Casou e descasou. Vivia intensamente. Também tinha pretensões literárias e escreveu dois romances policiais, “Bone in the Throat” (1994) e “Gone Bamboo” (1995).
Mas foi em 1999 que tudo mudou, quando publicou na “The New Yorker” um artigo intitulado “Don’t eat before reading this”.
E mudou tudo, não apenas para Bourdain; mudou também a percepção que o mundo tinha da cozinha profissional. Era a primeira vez que um cozinheiro contava cruamente, numa revista de grande prestígio e larga audiência, o que era ser cozinheiro. Ainda me lembro que o li na altura e como fiquei perplexo. Começava assim:
“A boa comida, como a boa culinária, é sobre sangue e órgãos, crueldade e apodrecimento. É sobre gordura de porco pejada de sódio, queijos com mau cheiro e excesso de gordura, as glândulas macias e os fígados abertos de animais jovens. É sobre perigo – o risco das bactérias escuras da carne de vaca, de galinha, dos mariscos e do queijo. As suas primeiras duzentas e sete ostras Wellfleet podem levá-lo a um estado de êxtase, mas a número duzentos e oito pode atirá-lo para a cama com suores, arrepios e vómitos”.
Violento, desagradável, mas real. Bourdain sempre escreveu as coisas como elas são, ousada e provocadoramente. Indirectamente, mas sem sombras, o artigo também desencadeou formalmente a passagem da profissão de cozinheiro – obscuro, fechado na cozinha, ignorado – para a de chef, um artista da culinária com credo, estatuto e consideração dos gourmets.
Não sei exactamente quando se operou esta transformação social do empregado menor para o criador apreciado; provavelmente foi um processo lento, que terá começado com os poucos chefs famosos franceses, mas certamente que o artigo de Bourdain pode ser considerado como a referência histórica dessa mudança.
Em 1998 Bourdain tinha conseguido emprego como chef principal num restaurante sólido, mas pouco imaginativo de Nova Iorque, “Les Halles”. Foi também quando se tornou amigo dum chef já de grande reputação, Eric Ripert (que viria a ser o seu melhor amigo e quem o encontrou morto). Ripert apresentou-o à sua segunda mulher, Ottavia Busia, que lhe daria uma filha, Ariane, em 2007.
Mas foi em 2000 que Anthony conseguiu reunir a sua vontade de escrever com o talento de contar sem rebuço, num livro antológico, “Kitchen Confidential”. Tive a sorte de o traduzir para português e, tal como terá acontecido a muita gente que o leu, mudou completamente a minha maneira de ver a profissão e de cozinhar. Durante a tradução mandei vir o livro oficial do Culinary Institute of America, um calhamaço cheio de normas técnicas, como desossar costeletas ou pesar um bife, e a Enciclopédia Larrousse de Culinária, na versão inglesa. Duas bíblias caríssimas, que provavelmente me custaram mais do que o que ganhei com a tradução, mas que com a desculpa de serem necessárias para compreender melhor o texto, me satisfizeram a enorme curiosidade pelas artes culinárias.
Não que o livro fosse um agradável elogio à profissão; antes pelo contrário, era uma autobiografia crua que mostrava a violência do trabalho na cozinha e o espírito inconsciente da época, com drogas, sexo, e muitas das taras que tornam a vida interessante e insuportável. Os fracos não aguentam, mas Bourdain aguentou, como ele próprio diz, a certa altura: “Percebi que, dos quatro ou cinco que ali estávamos, só eu iria sobreviver.”
Por ter traduzido o livro não me tornei chef nem drogado, mas a sua influência perdura até hoje, quando, diletantemente, faço um pâté, ou filosoficamente, penso no sentido da vida. É esse o mérito de Bourdain: sendo franco e real, mostra como todos somos, fortes e fracos, gulosos e frágeis.
O sucesso do livro levou aos programas de televisão, que inicialmente, eram mais sobre culinária, embora Bourdain sempre reconhecesse que não era um chef excepcional. Sabia fazer bem o tradicional, sem ser muito criativo.
Começou, apropriadamente, no Food Network, em 2002, mas passou para o formato que o tornaria mundialmente famoso no Travel Channel, onde não cozinhava mas avaliava as cozinhas dos países e regiões. Em 2006, numa entrevista a Marlow Stern, explicou a sua visão:
“Gosto de comida. Foi o centro da minha vida durante 30 anos e olho sempre para o mundo por esse prisma, mas não é a única coisa. Se estamos a comentar como uma salada é deliciosa de trincar enquanto o nosso anfitrião não tem as duas pernas, sentimos vontade de lhe perguntar o que aconteceu, e amiúde obtemos uma história que é muito mais interessante que o prato à nossa frente.”
Alan Richman, o exigente e precioso critico da revista GQ, disse de Bourdain: “Não conheço ninguém que seja mais um homem do século XXI. O modo como age. A maneira como fala. A sua insanidade. O seu lado vulgar.”
Mas não há nada de vulgar em Anthony Bourdain. A sua morte auto-infligida, num homem que parecia ter todo o sucesso, todo o mérito e o segredo da felicidade, é também um fenómeno do século XXI, onde as aparências e a realidade se misturam e confundem.
Como ele próprio disse, “Mesmo o homem mais interessante do mundo, sofre.”
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